O universo conspira
Quarta-feira
Eu detesto anões de jardim. Na verdade, eu detesto apenas um anão de jardim, o meu vizinho. Desde que aquele tampinha de garrafa mudou para a antiga casa dos Sousa, a minha paz acabou. E eu senti o gosto amargo do adágio pigmeu que diz que os melhores perfumes vêm nos menores frascos, assim como os venenos mais letais. No meu caso, posso afirmar que a parte do veneno é a pura verdade. Mas eu nem sempre fui tão azarado, antes do projeto inacabado de gente habitar a casa ao lado, até me considerava um feliz pai de família. A Matilda diz que eu exagero, mas ela tem um coração muito bom para ver a ameaça que aquele pintor de rodapé vem fazendo à minha coronária nos últimos meses.
Quinta-feira
Como é possível uma amostra grátis daquela ter um carro melhor que o meu? Não só mais novo, mas mais caro! As únicas profissões que consigo imaginar um nanico daqueles trabalhando é como jóquei de calango, piloto de autorama, cantor de rádio de pilha, ator de microfilme, segurança de berçário, lenhador de bonsai, salva-vidas de aquário, atacante de futebol de botão, Tarzan de samambaia ou paraquedista de meio-fio. Ah, e tem também o bom e velho pintor de rodapé. Ha ha ha, eu me divirto. Mas me deixa triste saber que eu, logo eu - que dei duro durante vinte e seis anos como segurança de supermercado ajudando velhinhas a carregar sacolas plásticas cheias de enlatados e espantando maconheiros do estacionamento - não consigo me olhar no espelho sabendo que um pouca sombra qualquer vai me esnobar, com um carrão na garagem ao lado da minha. Me diga porquê, meu Deus, as pessoas boas têm de sofrer? Será esta a minha penitência?
Sexta-feira
Aquele toco de amarrar bode não me engana. Pensa que sou bobo em acreditar nas suas bajulações vazias, quando traz presentes para todos aqui em casa dizendo que está voltando de viagens ao exterior? Nã-nã-ni-nã-não, ninguém engana o papai aqui. Na certa ele foi para o Paraguai, isso sim! Mesmo que a garrafa de Blue Label pareça original e que a Matilda diga que o perfume que ganhou seja francês. São mercadorias roubadas, só pode! Também, com aquele tamanho todo, o anão de jardim só pode trabalhar invadindo casas, entrando pela portinha do cachorro ou descendo por alguma chaminé. Taí, não tinha um filme que treinavam macacos para fazer isso? Pensando bem, não, não pode ser, pois todo mundo sabe que macacos são mais espertos que qualquer Barney Rubble.
Sábado
Eu bem que desconfiei quando a Matilda fez churrasco E vitela. Os dois são os meus pratos favoritos, mas ela simplesmente nunca fez ambos no mesmo dia! Era esmola demais. Antes do almoço ela serviu dois copos do Blue Label, que não posso negar, estava saborosíssimo! Foi só quando me chamou para a mesa que percebi que tínhamos convidados, ou melhor, a metade de um convidado, o bendito pigmeu. Só não o expulsei de casa porque Matilda me beliscou e cochichou ao meu ouvido que ele é quem tinha fornecido as carnes. Na certa era para me envenenar, o capetinha! Mas como achei que ele não faria isso com a Matilda e com as crianças - que parecem apreciar a companhia dele - resolvi experimentar. Estava maravilhosa a carne e, só para dar o maior prejuízo para o pitoco, repeti o prato várias vezes. Seria a minha vingança silenciosa, comeria toda aquela carne até ele ficar pobre. Mas era muita carne, e parei quando já estava empanturrado. Quando pensei que ele iria embora, vi ele se aproximar da Julia, a minha Julinha, pegar na mão dela e dizer que os dois tinham algo importante a anunciar. Disse que ela estava grávida dele e que iriam se casar em três meses! Não sei se foi o excesso de carne que eu havia comido ou se foi imaginar a cena daquele anão cavalgando em cima da minha Julinha ou de ver sete nanicos pulando aos meus pés me chamando de vovô Branca de Neve que me fizeram mal naquele dia, mas o fato é que infartei ali mesmo, espumando de raiva, apesar de todos acharem que era o antiácido voltando.
Domingo
Dizem que ter anões de jardim no jardim traz sorte ao morador. Isto porque reza a lenda que eles enterram ouro e só eles sabem o lugar. Não acreditem nisso, os anões de jardim só trazem sorte para eles mesmos, enquanto amaldiçoam todos ao seu redor. Mas hoje eu estou me sentindo com sorte, pois termino a tarefa que o psiquiatra deu semana passada e finalmente vou poder voltar à minha rotina de descanso por causa do estresse. Até porque eu odeio ter de escrever neste maldito diário tudo o que me frusta. No fundo, acho que é vingança daquele psicólogo gordinho rolha-de-poço parente de uma orca comedora compulsiva, só porque eu sou mais magro do que ele. Descobri que odeio psiquiatras. Também odeio escrever diários. Não tanto quanto odeio os anões de jardim, é claro, mas odeio.
(texto escrito originalmente em www.jefferson.blog.br em 05.04.2010)