INHATIUM.
Inhatium.
É mosquito, mas pra mim era liberdade, alegria, férias. Desde bem pequeno, todos os verões minha mãe me levava para passar na fazenda do meu avô. Ano inteiro do apartamento para o colégio, do colégio para o apartamento. Estudando com vontade para passar por média e logo seguir pra Inhatium.
A viagem de trem; saia de Porto Alegre no inicio da noite, de manhã chegava a Santa Maria. De Santa Maria ao Cacequi. No Cacequi trocava de trem e saia do Cacequi e o coração aos pulos; Azevedo Sodré, Três Divisas, Bela União e o Inhatium.
Mundo grande, bastante horizonte; O campo, cavalos, bois, as galinhas, os perus da avó e as ovelhas, quando eu chegava já era o tempo da esquila e era bom. Chegava à comparsa de esquiladores e tinha o serviço de juntar as ovelhas e ajudar a pegar pra tosquiar e almoçar no galpão; arroz de esquilador, a graxa grudava no beiço.
Na fazenda o avô a avó, El Capitan, Zé do Inhatium, Severo, Julio casado com a Maria e pais do meu amigo Chico.
Nas primeiras idas ainda morava na fazenda o Lalico, mas depois ele andou se envolvendo com roubo de gado, foi preso, fugiu da cadeia e matou um homem em São Gabriel.
El Capitan fugiu do Uruguai motivo de políticas, uma noite de temporal chegou à fazenda o avô deu pouso, ficou, ficaram amigos e organizaram uma cabanha de ovelhas pra produzir reprodutores da raça Corriedale. Cabanha Z que era a marca do meu Avô Zenóbio.
Zé do Inhatium e Severo moravam no galpão e eram peões da fazenda. Julio e Maria moravam numa casa atrás do galpão e trabalhavam com a minha Avó; tiravam leite, fabricavam queijos, cuidavam a horta, os porcos, as galinhas, os perus e o Julio dirigia o jipe.
Inhatium dos meus amigos; Chico, Sapo, Marco Aurélio, Tidão e a Tida. Quanta correria, quanta brincadeira. Jogava baralho, à medida que a gente ia crescendo mudava o jogo: rouba monte, burro tisnado, tranca. Jogava bola; o jogo de golo a golo era entre dois e cada um ficava no golo, chutava e defendia. E tinha o jogo do taco. No jogo do taco a Tida era a melhor de todos. E os banhos no açude e depois passava na venda e tomava gasosa de limão.
Marco Aurélio morava na vilinha dos ferroviários na beira dos trilhos, a mãe dele era muito caprichosa e muito braba, ele tinha três irmãs. Tidão e a Tida, também moravam na vila dos ferroviários e eram filhos da dona Pivica que gostava de nos dá café com roda de carreta frita. O pai do Sapo tinha uma fazendinha.
Alegria da preparação da viagem, o pacote de gibis que levava para emprestar ou negociar com meus amigos: dez gibis por um bodoque... Rolo de cordão e tubo de cola pra fazer pandorgas... Bolinhas de gude que no Inhatium eram chamadas de bolitas.
Todos os anos tinham as carreiras nas Três Divisas, a gente ia a cavalo, pra comer bastante pastel, meu avô ia pra jogar o osso que era seu maior divertimento.
Tinha o torneio de futebol na vila do Tiaraju à gente ia por cima dos trilhos; mulheres e crianças na vagoneta e o resto a pé.
Sol queimando a gente por cima dos trilhos até o povoado da Bela União pra ir roubar melancia.
O pai do Sapo era meio esquisito e cheio de manias, enquanto os outros fazendeiros faziam a marcação do gado no fim do outono, ele fazia no fim do verão e isso me possibilitava participar da marcação; junta o gado, para rodeio, aparta, laça peala, trás a marca quente, capa, ovo de touro na brasa, guri gineteando terneiro.
Fim de fevereiro tinha a matança de porco da dona Pivica que juntava gente pra ajudar e tudo era festa.
El Capitan todos os anos fazia um torneio de tranca; durante uma semana todas as noites tinham jogo. Sempre eu e a Tida formávamos uma dupla.
Os dias grandes do verão; sobrava energia e faltava tempo.
Melancia, melão, pitanga, doce de abobora, milho verde assado no galpão.
O tempo passa; já viajava sozinho, já brincava menos e ajudava mais nos serviços da fazenda.
Conversava muito com El Capitan que foi capitão da Marinha Uruguaia, viajou muito, contava das viagens. Viúvo tinha duas filhas e netos e sabia que breve teria que voltar pra Montevidéu; deixar a liberdade do campo pra viver confinado na cidade. Como ele não tinha documentos no Brasil, viajava numa carroça onde carregava os carneiros e ovelhas que ia vender nas feiras das cidades daquele trecho de Santa Maria a Bagé e de Caçapava do Sul a Santa Ana do Livramento. Como eu colecionava chaveiros, nestas andanças ele ia juntando chaveiros pra mim, até mandou fazer uns chaveiros bonitos da “Cabanha Z- Corriedale -Inhatium”, me deu dois; um eu tenho na coleção o outro eu uso.
O avô já planejava entregar os campos que ele alugava e vender o pedaço que era dele e ir morar em Porto Alegre. Tudo passa e tudo passou.
Já andava com outros pensamentos; inseguranças, planos. No último dia de aula meu colega de aula contou que já conhecia mulher. E o Tidão também me contou que tinha ido a Bagé visitar umas tias e por lá umas primas dele o ensinaram a fazer.
Naquele sábado juntou toda a turma e fomos pescar lá no açude perto do mato. Era a primeira semana de março já estava com jeito de outono, céu nublado, segunda feira eu ia embora. Tidão já ia para o quartel, Marco Aurélio ia pra Santa Maria onde já estava estudando.
Tida foi ao mato e voltou contente avisando que tinha araçá maduro. A gente correu pra comer araçá. Lembro da imagem do grupo voltando, alegres por tá juntos, tristes pela separação; era o fim de um tempo, um tempo que foi bom. O último dia juntos. Vinte anos depois encontrei o Marco Aurélio em Porto Alegre, que até estava voltando de São Gabriel onde tinha ido ver negócios de documentos, ele morava em São Paulo onde estava bem empregado, até conversamos bastante, contou: Chico morava em São Gabriel onde tinha um mercadinho, Tidão e Tida moravam na cidade do Rio Grande e o Sapo continuava no Inhatium. Quando chegamos à vendinha pra tomar a gasosa de limão a noticia: tome cuidado que o bandido do Lalico anda por ai e anda com uma china na garupa. Na vilinha dos ferroviários as mães preocupadas: vocês andam por aí e o bandido do Lalico anda ai na volta. Cheguei a casa e a avó preocupada rezando: o bandido do Lalico e uma puta...
Domingo: amanhã eu vou embora. Dia triste, depois do almoço andei, pensei, deu vontade de ir ao mato buscar araçá, convidei o Chico, não quis ir; estava com medo do Lalico. Eu fui; ia chegando ao mato escutei conversas, olhei e vi ao longe um grupo a cavalo: policiais. Em seguida ouvi gritos, um tiro. Do mato saiu um, a cavalo, a toda corrida. Eu corri pra perto do mato, fiquei encostado numa arvore assistindo a correria. Gritos, tiros. Os policiais perseguindo o Lalico. Sumiram no horizonte. Escutei barulho no mato, tremi, ouvi um “ei”, olhei por entre os galhos, uma pessoa sentada no chão; mulher fez sinal. Cheguei desconfiado. Ela sentada nos pelegos, o vestido levantado deixando aparecer às coxas, olhei aquelas pernas, senti um calor. Ela sorriu, alcançou uma caneca e pediu pra trazer água do açude. Fui e voltei ligeiro com vontade de olhar as pernas dela. Alcancei a caneca e fiquei olhando e sentindo calor, ela sorriu; o brilho nos olhos dela eu tremi. O perfume dela. Soltou a caneca pegou as minhas mãos, eu ajoelhei e ela me fez pegar as pernas dela... Pega...