CRIPTOANÁLISE
Dona Cecília cai ao sair do coletivo. O filho da mãe do motorista parece que queria ver a velhinha derrubada. Mal pisou o degrau de baixo para o chão do asfalto, ele acelera. Ela perde o equilíbrio, cai.
— "Maldito paraíba", injuria ela. — "Não fosse essa praga de imigração nordestina, São Paulo seria uma cidade mais pacata".
Nem de longe lhe ocorreu que o motorista era filho da Capital paulistana. Para ela, toda espécie de facínora e marginal só poderia ser proveniente do nordeste. Ensinaram-na a estigmatizar os nordestinos, ela aprendeu bem a lição. A cidade continua a despejar seus dejetos traumáticos sobre minorias indefesas. Faz parte da covardia humana.
No fundo, no fundo, ela adora ver os policiais descendo o malho em trabalhadores sem-terra, nos sem-teto, ou em greve. Nos jornais TV visíveis da noite, ela vestia a camisa da violência policial. Indefesa e simpática, a velhinha se exime de qualquer culpa. "Os culpados são os outros", como diria aquele existencialista: “O inferno são os outros”.
Detestou os vereadores que votaram a favor da CPI da Máfia dos Fiscais. A boa “velhinha de Taubaté” tem especial admiração pelo “chefe dos chefes” da corrupção, em quem vota religiosamente em todas as eleições. Quer que o mal Maluf se candidate a prefeito, governador ou a presidente da República. É a simpatia de praxe.
Fica horrorizada que os detratores de seu ídolo tenham tanto espaço nos programas comentados de jornalismo na TV.
— “É o fim do mundo”.
Acredita que todos os fiscais, vereadores e os barões aproveitadores, que sugam o sangue aguado dos marreteiros, cobrando-lhes altas propinas para que vendam suas bugigangas nas ruas, estejam certos. Eles traem a cidade ao acusar seu político favorito de nomear funcionários intocáveis nas administrações regionais da prefeitura. Ela mesma conhece um desses rapas, filho de uma amiga do peito, o "Bebeto Barra Funda", que é também promissor jogador de futebol de várzea.
A velhinha, apesar de velhinha, sabe ser covarde. Não tem força física, mas seus preconceitos têm muita força, ainda. O motorista era crioulo, e como dizia sua bendita mãezinha, “crioulo quando não suja na entrada suja na saída”.
Como boa vovozinha, está passando para sua descendência todos os conceitos moribundos que aprendeu dos ancestrais. Apesar da idade, confia que ainda mantém influência sobre os filhos e netos. No tempo dela as coisas não eram assim. Até a Marta, ex Suplicy, parece ter perdido a noção das coisas. Veja só, ruminou: “Não se fazem mais políticos como antigamente”.