Madame Entreferas

Dona Ruth pega o ônibus para fazer um programa diferente. Deseja sair da rotina, mostrar a si mesma seu alto senso social. Ela precisa estar mais e mais atualizada.

Na realidade ficou entediada à espera do carro. O motorista deveria chegar em meia-hora. Saíra da consulta mais cedo. Não custava nada fazer uma incursão rápida pelas calçadas. Observar a careta sofrida e aflita do povaréu ao redor. Uma aventura. Depois, rapidamente voltar para a segurança do automóvel.

— Sim, pegar um ônibus, por que não? Uma oportunidade de chegar perto e esnobar essa cambata de filhos da mãe que aceitam salários medíocres para se estressarem a vida toda no transe das ruas e avenidas de Sampaulo. A vida deles é como um metrô que nunca chega à estação final. Sempre girando em volta da mesma roda-viva.”

Foi entrar no coletivo e logo murmurar de si para consigo: “Nossa! Quanta cara de frustração e ansiedade. Esses passageiros mais parecem habitantes de um manicômio deserdado pelas verbas do Fernandinho. Credo, a coisa está mesmo feia.”

As expressões passam ameaça, raiva, ira ou enfado, parecem prontas para revidar a qualquer tentativa de aproximação, com um chute, um malefício brusco, intimidativo. Ainda dizem que brasileiro é povo hospitaleiro. Esse folclore é pragmático, turístico. Ainda bem que ela não tem saco, o mesmo pode dizer do marido, senão poderia levar um pontapé neles. “Rodar de coletivo por necessidade, nem morta”. Não se sentiu bem no interior do veículo, próxima ao odor desses desodorantes de sovacos baratos, “gente que, Deus me livre Karl Marx, chega em casa vai ver Ratinho Livre, a novela das sete, ou o José Luís Datena”.

Começa a sentir-se mal, entre essas caretas de eleitores, frustradas, em parte, pelas promessas de palanque do marido. Muitas parecem estar usando máscaras de desempregados, doentes, malamados. Céus, não deveria ter saído sem a companhia de seus seguranças.

A aparência de necessidade ampla, total e irrestrita dos passageiros. “Que náusea sartreana”. Mal tinham passado dois pontos de ônibus, estava quase arrependida. Um trombada esbarrou nela, enquanto uma mulher tratava de puxar seu colar amarelo, no que foi impedida, por seus gestos de defesa. A estocada do canivete do marginal, de menor, feriu-lhe a testa.

O motorista pára o coletivo para ela descer. Madame dá meia volta e desce pela porta da frente, sem pagar a passagem, não se aventura a chegar até a roleta em meio a tantas intenções hostis.

O moleque abre o canivete e olha para a mulher que está no comando dos roubos dentro de coletivo. Ela faz uma leve movimentação no canto do olho, ele entende que não é para descer atrás, e cortar a garganta daquela dona não. A mulher que controla o trombadinha sonda-se: Nem sabe aonde, mas já tinha visto ela em algum lugar, talvez até já tivesse assaltado ela, consolando-se, diz de si para consigo que ela deve estar usando bijuterias, jóis de aparência, sem valor.

A malamada mulher ainda hesitou:

— Deixava ou não aquela mulherzinha "chic", apavorada, pelada das bugigangas? Mas ela se acha prestes a reconhecer a primeira dama. Esse colar é ouro de tolo, esse relógio quem sabe vale alguma merreca. Não, shiishii, será ela mesmo? Vou livrar a cara da madame, senão vai sobrar pra mim, vai dá manchete, o pau vai quebrar no meu terreiro.

Não quer forçar a barra. O marido dela é capaz de tudo contra o povo, daqui um ano ele vai dar outro aumento de cinco ou dez reais para os assalariados do mínimo como se tivesse fazendo um grande favor. Prefiro acreditar que a madame vai se dá por agradecida, ao sair dessa ilesa.

Dona Ruth agradece ao motorista por ter parado. Ao descer, esbarra no meio-fio e dá de cara nos joelhos de um negão. As pernas dobram e encostam no chão imundo, escarrado e urinado da calçada. “Que trauma”. Riram dela. “Esse povim é um nojo”. O negão ajudou-a a levantar-se.

— Que gentinha mais mal educada. Dona Ruth avia-se, esquece por um momento seu background ateu e clama para vir um táxi pelo amor de Deus. Quer voltar logo à porta do consultório do ginecologista. “São apenas cinco ou seis quadras, mas daria todos os meus salários desse semestre, com décimo terceiro e tudo, para sair o mais rapidamente possível dessa ratoeira violenta que é o interior de um coletivo na metrópole paulista”. Não quer permanecer indefesa à mercê de outros marginais na calçada, nem por mais um minuto.

Afinal, a “tiazinha do FMI”, como é conhecido o presidente, não está investindo nada em saúde, educação, habitação, nessas coisas sem as quais a cidade explode em todos os lugares, em violentas manifestações sociais da necessidade e da paranóia coletiva. O Fernandinho devia estar no meio deles pelo menos duas horas por dia. Essas duas horas modificariam sua sensibilidade social, ele seria tentado a investir nestes setores, dissesse o que dissesse o bêabá do Fundo.

Murmura: “Mas para o Fernandinho, investir no social é sair na coluna do Zózimo pelo menos uma vez por semana.”

Acredita-se uma mulher de coragem, fazendo pesquisa de campo. Ainda que se censurando por ter saído e tido o pulso de expor a garganta para o canivete afiado do maldito pivete, aquele criminosozinho filho da mãe Sampa.

— Ainda bem que ele tem respeito por alguém ou alguma coisa. Imagina se aquela mucama desgraçada cisma em não me reconhecer, e autoriza o menor a cometer o delito.

As manchetes seriam um escândalo: “Mulher do presidente assaltada num ônibus da linha Anhangabaú/Vila Mariana”. Uma irresponsabilidade arriscar fazer mais propaganda negativa do governo.

Uma mulher fina como ela, não pega bem estar em meio ao povão mal banhado em cosméticos baratos. Essa maldita mania de se fazer personagem dos anos setenta. Exagera na autocensura:

— Você cresceu Ruth, essa coisa de ônibus era no tempo de estudante. Você é uma dama da alta sociedade. É mais do que uma cidadã, é uma burguesa, faz parte da elite econômica desse país globalizado pelos patrões do Fernandinho. O tempo passou, você agora é sexagenária. Dá um tempo nos condicionamentos de juventude.

Resolve fazer um exame para outra reposição hormonal na próxima semana.

O táxi a deposita, agora não mais tão aflita, na porta de entrada do edifício do consultório médico. Vai de passinho miúdo mas apressadinho, até à sala de espera. O porteiro faz um agrado:

— Dona Ruth, quando o motorista chegar eu aviso pelo interfone.

— Obrigada. E repete para o próprio ouvido: Tivesse de ficar mais tempo naquela roda vida... Afinal, de volta ao lugar dela, ao bem-bom da sala com ar refrigerado e reproduções de pinturas cubistas.

— Aqueles poucos minutos no burburinho neolítico, na certa poderiam ter causado um mal-estar bem maior: sofrer um assalto, um seqüestro ou outro tipo de sinistro. Povo é um conceito sociológico que só fica suportável nos tratados de Sociologia, nos planos altruísticos que gerencia como mulher do chefe do Executivo. Julgou-se uma grande e corajosa heroína. Não precisava ter-se embrenhado na selva de pedra, mas queria ter tido essa experiência, pelo menos uma vez nessa década.

Uma vez só basta: Cansou a beleza nessas incursões perigosas para o outro lado do muro da vergonha que separa os discursos bem-intencionados da realidade, do contexto onde pipocam as manifestações sociais virulentas da grande cidade. Numa Democracia todos têm direito ao ato constitucional de ir e vir. Certo, mas dentro de seus competentes nichos sociológicos.

Dona Ruth aproveita a comoção intestina. De volta do banheiro à confortável poltrona da sala de espera, maldiz o maldito motorista que ainda não chegou. E continua dialogando com seu alter-ego:

É certo que os prisioneiros dos campos de concentração da II Guerra, locomoviam-se dentro do direito restringido a espaços relativamente bem menores. Sim, porque com o que a renda familiar desses desgraçados pode comprar, sobra muito pouco após o supermercado da cesta básica.

— A classe média está no caminho da proletarização. Locomove-se dentro do círculo vicioso do apartamento até o ônibus, do coletivo à igreja, da igreja ao cinema, do cinema ao MacDonald’s, e vice-versa. E o Fernandinho viajanto, fazendo turismo diplomático. Aceitando a corte dos bundões do colarinho branco internacional, a puxar os cordões fáceis de seus sorrisos forçados, de tubarão simpático.

— Como é fácil sensibilizar a marionete sem cordões que é o Fefê. Qualquer cortesão do Planalto faz ele se derreter quando de um elogio à sua elegância, travestido nos seus ternos de grife à francesa.

Afinal, era mais audaciosa e corajosa que suas amigas que nunca se aventurariam sozinhas em meio à massa, como ela tinha feito. “Só mesmo eu”, afirmou-se.

Vai contar a aventura no chá das cinco, escandalizar as amigas. Comentarão por longo tempo sua incrível coragem em submeter-se à aventura de, por breves momentos que pareceriam intermináveis, ter estado neste safari heróico, por esta África neolítica da selva de pedra paulistana.

Na reunião do chá no Alvorada, uma amiga íntima, que havia feito por duas vezes inclusões de silicone para aumentar o tamanho das mamas, comentou ser ela muito corajosa:

— Não tenho peito para isto, queridinha.

— Não se arrisque tanto, minha querida, comenta a Cláudia Cow.

— O Fefê não vai gostar de saber, exclama em tom de censura a Denise Gestunken Gestalt. E todas, por consenso, a elegem a Indiana Jones feminina, mulher de extraordinário valor, desafiou a sociopatologia chic da nacionalidade, desceu aos infernos por quinze longos minutos.

— Santas amenidades, exclamou, estou finalmente em casa. Ente elas sente-se outra vez uma Madona: inteligente, plástica, corajosa, irreverente, sensível, invisível e protegida.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 03/04/2010
Código do texto: T2175793
Classificação de conteúdo: seguro