O Sorriso
Sorriso no rosto.
Assim desprende-se de sua personalidade usual e inicia sua jornada de trabalho como recepcionista de hotel. O cabelo engomado e o impecável corte do uniforme completam sua personagem. Atenta às horas que absorvem sua rotina profissional, mantém o largo sorriso colado à face. Organiza as tarefas de maneira automática pelo simples medo de ser consumida pelo desgaste imprevisível. Ereta atrás da trincheira que separa seu corpo do avanço inimigo, ouve o primeiro grito de guerra:
- VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?
Ainda com o sorriso no rosto se dispersa por alguns segundos. Com quem realmente estou falando? Com o pai de família desprezível que solicita o “apoio profissional” das devassas urbanas enquanto mostra as fotos de suas admiráveis crianças? Com o respeitado empresário que pede, com naturalidade hipnotizante, para que seus consumos pessoais sejam lançados na conta da empresa? Com o político incoerente que pisoteia quem o atende, mas que esbanja simpatia e carisma quando está em campanha? Com o alcoólatra imerso na tristeza peculiar que somente o vazio obscuro do seu quarto pode proporcionar? Com o esquizofrênico momentâneo que espalha sorrisos na mesma proporção que despeja desaforos? Com o caloteiro melodramático que se sente ofendido frente a qualquer cobrança, mas que foge no silêncio da madrugada?
Tenta selecionar do caricato cardápio de bizarrices a personalidade que lhe confronta. Longe do glamour que marcou o ápice hoteleiro no poço da memória, assiste ao surgimento, vergonhosamente constante, dos hóspedes nos mais reprováveis perfis.
- Desculpe-me senhor. Resolverei seu problema.
Seu sorriso brilhante persiste, mas parece não perceber que a naturalidade ao engolir o esbravejo aumenta a dor da figura calada. Ao assistir ao desrespeito gratuito, aceita a condição de vassala operacional e estimula, mesmo sem qualquer grunhido, a força do algoz.
Mas nada disso parece incomodá-la. Os colegas invejam seu sorriso, pronto a cativar mesmo nos momentos mais inquietantes. Aos olhares de “como ela consegue?” e “gostaria de ser como ela!” o ponteiro segue esmagando as horas. O tempo transcorre lentamente, mas, felizmente, segue para o desfecho ensaiado.
Fim de turno.
Ainda sorrindo caminha em direção ao relógio de ponto, visto por muitos como o aparelho responsável pelo estancamento da dor diária. Desliza sem pressa o cartão e aproxima-se do banco, praticamente escondido, em um canto pouco iluminado na garagem. Desmancha o sorriso que sustentou sua face durante todo o dia, acende um cigarro e cola os lábios para intoxicar-se lentamente.
Pensa por um segundo nas vezes que fora criticada por preservar o vício da nicotina, enquanto assiste ao sutil desenho da fumaça. O principal argumento, vociferado pelos entendidos, estava relacionado aos malefícios que aquele simples canudinho trazia à saúde.
Fingia-se de surda e não ligava.
Sabia que o sorriso mais infeliz do mundo merecia aquele veneno.