Fui Interrompido
Não quero escutar, não é querer ao certo, na verdade eu não posso mais. O grito de socorro era dilacerante, ele quebrou o meu doce faz de conta. O pedido era dinheiro para comprar remédio para si próprio e alimentação para os filhos.
Não quis olhar de onde vinha o pedido de socorro e também não queria escutar, tive a sorte de estar ouvindo som. Mas, o grito foi mais forte que a minha vontade de não escutar. Diante desse abuso comecei a prestar atenção no pedido de socorro. Olhei para seu rosto. Repugnei–me diante daquilo. Os olhos quase não se abriam, sombreados ao redor como se tivesse tomado um soco em cada olho. A sua face era toda machucada, era extremamente rugosa. Agora descrever a sua boca! Essa boca que ficou próxima ao meu olfato. Eu não sabia o que era mais nefasto, ver aquela imagem ou sentir aquele cheiro. Na verdade eu estou com nojo de descrever aquela boca que clamou por socorro às seis horas em pleno coletivo. Não, descreverei. A boca quase não se abria, os lábios eram finos, quase não tinha vida alguma. Os dentes todos eles eram amarelos. Aquela estética me empurrou para o abismo.
Quando eu vi todos os dentes amarelos naquela boca sem vida olhei para o chão do coletivo com a culpa do mundo todo nas minhas costas. No momento que tentei me esconder, o socorro veio mais forte. Em baixo estavam infinitas feridas a minha espera. As suas pernas, o seu pé todos eles tinham feridas abertas e mosquitos ao redor fazendo curativos. Ao ver a ferida eu não sabia mais de onde estava vindo aquele forte mau cheiro. Cair no abismo quando quis me esconder da sua boca. Estava preso às seis horas no coletivo. Eu não tinha como fugir, porque os meus sentidos estavam todos perseguidos pelo grito. Minha visão não tinha para aonde desviar, a sua face me angustiava o seu capote que lhe protejia do frio estava imundo, não mais que seu corpo.
O meu olfato não tinha como fugir do seu cheiro e a minha audição era dele. O som que estava escutando se perdeu e o seu pedido de socorro venceu. Nisso eu estava olhando para as suas feridas e queria encontrar outro lugar para colocar a minha visão. O pior que não conseguia fechar os olhos, porque eu fui cair no erro de olhar nos olhos do dono daquelas chagas. O olhar me cobrava uma providência para a sua situação. O Olhar me cobrou uma contribuição. Eu não tenho pra dar. Eu não sei o que dá. Eu não tenho saída.
Sem ver uma resolução do seu grito de ajuda, aquela boca começa a tossir e dizer que coloca sangue por ela, ao tirar a mão da boca, sua mão vem recheada de sangue. Os mosquitos que velavam aquela ferida se assustaram com a tosse e diante da força que fizera para tossir as feridas começam a “gritar” também, pois suas feridas começaram a sangrar, assim como sua boca. Os dentes que no começo do pedido estavam amarelos começaram a ficar vermelhos. Dentes esses que já foram brancos e com o decorrer da vida ficaram amarelos e naquele momento estavam vermelhos.
Agora o cheiro era insuportável. O cheiro forte que tem o sangue misturado com o mau cheiro das suas feridas e com o seu hálito era nauseante. Eu não agüentava mais, a minha vontade era levantar e me libertar daquela situação, mas as minhas pernas não respondiam ao meu comando de ir embora daquele lugar. Ela ficou atônita sem ação.
Diante do sangue e do cheiro forte daquele pedido de socorro apareceram algumas soluções para aquele problema. Uma luz no fim túnel apareceu para mitigar o grito. Dentro do ônibus tinha um estudante de medicina, um pastor de certa igreja protestante, um padre e uma senhora que prometeu lhe empregar. Pronto, um problema resolvido. O socorro encontrou quem lhe ajudasse, e não era só uma solução tinha agora cinco possibilidades de ajuda.
O formando em medicina prometeu conseguir um internamento para aquele corpo ferido e ensangüentado. Deu-lhe seu cartãozinho e ainda tomou seu número para contato. O doutorzinho estava realmente interessado em dar uma solução para aquele caso. O pastor prontamente convidou aquele grito que uivava por socorro, para gritar juntamente com ele uníssono pelo nome do Senhor Jesus Cristo. O pastor levantou do seu lugar e deu um papelzinho com a palavra (era assim que ele se referia ao papel que entregou ao moribundo). – “Pegue a palavra, só ela pode lhe ajudar”. O padre ao ver aquilo prontamente levantou e disse que a solução do problema daquele ser seria o seu encontro com o Espírito Santo. A senhora que lhe prometeu o emprego colocou como proposta que aquele corpo cura-se das chagas expostas o quanto antes, e outra imposição era que os funcionários dessa empresa não poderiam ser de qualquer religião. Não era permitido, ordem de cima, como ela mesmo disse.
Nesse momento instalou–se um conflito dentro do ônibus. O formando em medicina tentando convencer o Pastor e o Padre que não era em nenhuma Igreja que o problema daquele corpo iria se curar e sim com a ciência. Diante disso, os dois religiosos se voltaram contra o doutorzinho e na medida em que os dois falavam eles discordavam entre si. Todos ficaram prestando atenção na discussão e esqueceram-se das feridas, do mau cheiro e do sangue que estava na frente do ônibus gritando. E com toda discussão o doutorzinho tentava também convencer à senhora que aquele corpo ferido não poderia ficar bom dos seus problemas o quanto antes, isso iria levar algum tempo.
Os quatros elementos que seriam a solução do problema acabaram gerando um conflito ainda maior.
Para resolver aquela situação, o cobrador tonto da discussão e do mau cheiro cobrou uma posição do corpo. – “O que você vai escolher?”
Os religiosos perguntaram em uníssono: “É, o que você quer?”
O doutorzinho imediatamente perguntou também: “Você não tem tempo, seja rápido!”
A senhora emendou. “Sua hora é agora!”
O olhar atônito, os joelhos feridos ficaram ao chão. O corpo se ajoelhou. E gritou: “Eu só quero dinheiro para comprar remédio para mim e comida para minhas crianças. Eu não quero várias possibilidades, escolher é difícil”.
Vendo a espera da sua resposta diante das quatros possibilidades que aparecera, as feridas foram parar no asfalto. Diante das possibilidades o corpo ensangüentado correu em direção à frente do ônibus, que se encontrava em alta velocidade e jogou-se no vidro da frente, perto do motorista.
A velocidade que veio só se parou no asfalto de baixo das rodas do ônibus. As suas feridas confundiram-se com o asfalto e com as rodas do ônibus.
Naquele momento eu senti que a ferida era minha, ela se penetrou em mim. Todos naquele ônibus lhe esmagaram. Eu era o coletivo e as rodas dele se misturaram com as feridas, o sangue e o odor daquele corpo. O moribundo dessa maneira começou a fazer parte do meu ser. Eu depois daquele dia me transformei e com isso me tornei uma ferida.
Luis Carlos.
28/07/2008.