O almoço na casa da Mãe Joana

-Toninho, menino danado! Corre até o quintal da comadre Florinda e colhe bastante folha de jambu (1), pegue a quantidade de mais ou menos uns quinze “móios” (2), depois pegue a bicicleta, vá até o Mercadinho do Um e compre seis litros de tucupi (3) e um saquinho de pimenta murupi (4), compre tudo na banca de comadre Maria Bonita, aquela lá entrada do Mercadinho, a banca número um. Presta atenção, criatura de Deus! Nada de ficar correndo atrás de bola pelos campinhos do caminho. Olhe bem, vou cuspir no chão, chegue aqui antes do cuspe secar, senão já viu né!

Zefinha! Vá pegar os patos no quintal. Depressa menina. Não vê que a gente tem de deixar tudo pronto senão amanhã vai atrasar o almoço e vai ter menino espalhado por toda a cozinha bulindo em tudo o que é panela.

-Ô Mariquinha! Já colocou o pão dentro da bacia com leite? Olha que o pão tem que estar bem ensopado para ficar bem molinho para amassar com a mão. Mariquinha! Verifica se ainda tem azeite de dendê, amendoim, goma (5), castanha do Pará e camarão seco, esse vatapá tem que estar supimpa. Quero ver o povo lambendo os beiços amanhã na hora do almoço.

-Mãe Joana, a senhora acha que o povo vai gostar? Vai ter somente “pato no tucupi” e “vatapá”, não é muito pouco não?

-Sabe que tu tens razão? Pronto! Vamos fazer também quinhapira (6), dê uma olhada no “friza” e veja se tem tucunaré? Lembro que da ultima pescaria do Tonho, ele deixou uns dois ou três congelando no “friza”. Aproveite e tire as duas matrinxãs (7) que sobraram do mês passado. Enquanto a gente prepara os patos, o vatapá e a quinhapira eles vão moqueando (8) as duas matrinxãs para o almoço de hoje, aproveite e tire do “friza” também aquelas costelas de tambaqui.

Mãe Joana após olhar para Mariquinha parada à sua frente, a instigou.

-Anda menina, faça o que lhe mandei e deixe tudo lá no jirau do quintal, debaixo da mangueira. Bornéu já deixou as grelhas preparadas no moquém (9) lá no quintal, debaixo do abacateiro. Ele separou limão, carvão e já amolou as facas para limpar os peixes.

E Mãe Joana parando por um momento, ficou no meio da cozinha com uma mão na cintura e a outra segurando o queixo, e com ar pensativo murmurou.

-Acho que dois patos, uma panela de vatapá e uma panela de quinhapira junto com arroz branco e sobremesa de “môsse” de açaí vai dar para deixar o povo de ”bucho” cheio, e mesmo, eles vão ficar tomando caipirinha e cerveja e tirando gosto com piaba frita até a hora do almoço. De qualquer forma o que a gente está preparando deve sobrar um pouco para a janta dos vão ficar até mais tarde.

-Zefinha, minha filha! Tire as piabas do “friza” para descongelar, mais tarde temos que tirar as buchadinhas delas e deixar as piabinhas de molho na água com limão junto com o tucunaré para tirar o pitiú (10). Ô minha filha, se apresse pelo menos uma vez na vida, pelo amor de Deus!

A matrona franziu o cenho e levou as mãos aos ouvidos tapando-os numa tentativa de reduzir as estridências dos gritos de Mariquinha.

-Mãe Joana, o dendê, tem um litro. O amendoim tem bastante, acho que dá. Castanha-do-pará também. Camarão tem mais ou menos meio quilo, acho que vai precisar mais um quilo ou dois. A senhora sabe nué! Depois que se tira a casca não sobra quase nada. E continuou aos gritos.

-E a castanha de caju vai depender da quantidade que o Toninho apanhar lá no cajueiro do quintal.

Toda essa azáfama prenunciava os preparativos para o almoço de reunião da família de Dona Joana; uma negra bonachona, avó de inúmeros netos, bisnetos e agregados. Mãe Joana era matriarca de muitos filhos, naturais e de criação. Os filhos e agregados foram criados em um sobrado no Bairro Nossa Senhora das Graças, perto da igreja do mesmo nome em Porto Velho.

O sobrado conhecido como Casa da Mãe Joana, fora construído no final dos anos sessenta e início dos anos setenta, fruto do bamburro (11) do “Seu” Bornéu nos garimpos de cassiterita do Jacundá. “Seu” Bornéu foi garimpeiro de cassiterita durante vários anos, abriu muita cata (12) para tirar cassiterita. Mãe Joana, no início da aventura do marido ficou em Porto Velho, morando de favor na casa de amigos. Com o tempo e à medida que o marido ganhava dinheiro, Mãe Joana foi comprando lotes de terra até comprar uma quadra inteira. Depois foi construindo o sobrado. Despachada, era empreiteira, capataz, peão, eletricista, pedreiro e tudo o mais que precisasse. Supervisionava tudo. Depois que o sobrado foi construído mudou-se com os cinco filhos, uma escadinha que ia dos dois aos onze anos. Cada filho tinha um quarto para si. Depois, empreendedora, com o dinheiro mandado pelo marido comprou um sítio, algumas cabeças de gado e com a volta definitiva do “Seu” Bornéu e a administração deste, o sítio transformou-se em fazenda, base da sustentação financeira da família.

À medida que os filhos foram ficando adultos e casando foram se desgarrando, cada um seguindo o seu destino. De um dia para o outro o sobrado ficou vazio, só o casal avançado nos anos e algumas agregadas que Mãe Joana chamava carinhosamente de minhas “fias” ocupavam o imenso casarão. A felicidade de Mãe Joana é que todos os filhos moravam na mesma cidade, Porto Velho.

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Tudo tinha começado quando um dia, de manhã cedo, Mãe Joana ao abrir a porta da frente quase tropeçou em uma caixa de papelão. Espantada, já ia pegar a caixa para jogar no lixo quando ouviu um choro, quase um gemido. Abriu a caixa e encontrou uma criança. Com os olhos arregalados chamou o marido e juntos entraram no sobrado acalentando o bebê. A notícia do achado se espalhou pelo bairro e como nem a mãe e nem o pai da criança apareceram, o bebê foi ficando, foi ficando e acabou sendo adotado pelo casal recebendo o nome de Alberto. Alberto foi o primeiro de muitas outras crianças que voltaram a povoar o sobrado. Mãe Joana virou referência para as crianças enjeitadas do bairro e até da cidade. Mãe solteira que não queria criança, à surdina da madrugada deixava na varanda da Mãe Joana. Com o tempo o sobrado virou a “Casa da Mãe Joana”, a casa dos enjeitados. Enjeitados pelo mundo, acolhidos e amados por Mãe Joana.

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Dona Joana desceu os degraus da porta da cozinha, caminhou para o quintal e recolheu os dois patos que estavam caídos, bêbados, debaixo de uma frondosa jaqueira de tanta cachaça empurrada pela goela abaixo, na marra, e os levou consigo para a cozinha.

O amplo quintal do sobrado, nos tempos em que os filhos naturais ainda eram pequenos, fora transformado em pomar. “Seu” Bornéu plantara muda de cajueiro, jaqueira, berimbá, azeitona preta, jambo, mangueiras, abacateiro, cajá, fruta do conde, abiu e cajarana. Rente ao muro, em toda a sua extensão, por capricho, plantara diversos coqueiros anões. De longe, o sobrado parecia cercado por coqueiros. Na Casa de Mãe Joana tinha fruta o ano inteiro para gáudio da garotada, da casa e das redondezas.

O marido de Dona Joana, “seu” Luis Bornéu, cedo da manhã tinha entornado quase um litro de aguardente goela abaixo dos dois patos, eles não eram perus, mas ficaram tão bêbados quanto estes em véspera de Natal.

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Antigamente, era costume dar aguardente para os patos que seriam cozidos no tucupi. Os antigos diziam que era para amolecer a carne, a exemplo dos perus.

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Mãe Joana sentiu novamente uma pancada nos tímpanos ao ouvir os gritos esganiçados de Toninho.

-Vó Joana, as compras que a senhora pediu “tão” aqui. E pode espiar, cheguei antes do cuspe secar. Agora posso ir jogar bola?

Toninho falou tudo atropeladamente já escapulindo pela porta lateral da cozinha.

Dona Joana apanhou no armário da cozinha um coité (13) grande, despejou na vasilha uma pitada de cominho; uma colher de chá de pimenta do reino; meia dúzia de pimenta de cheiro picada; uma medida de xícara com vinagre; uma colher de chá de açúcar, para tirar a acidez; picou seis tomates grandes, seis cebolas grandes, seis molhos de cebolinha; macetou duas cabeças de alho, uma para cada pato, jogou dentro algumas folhas de manjericão, coentro picado, alguns ramos de arlequim, uma folha de louro esmigalhada e um pacotinho de cheiro verde picado miudinho; picou uma pimenta murupi; colocou sal a gosto, despejou uma xícara cheia de azeite, misturou todos os ingredientes, com as mãos, despejou-os em um caldeirão, regou com tucupi até o líquido cobrir todos os temperos, cobriu tudo com um guardanapo de pano e deixou para descansar ou marinar como a filha Maria Júlia gostava de dizer. Depois depenou os patos, retirou as vísceras, separou os corações, as moelas e os fígados; lavou os patos com suco de limão, para tirar o pitiú e os mergulhou no caldeirão com molho à base de tucupi até ficarem cobertos pelo espesso molho amarelo, para pegar gosto como costumava dizer.

Olhando pela janela lateral da cozinha Dona Joana viu Toninho escapulindo pelo portão da frente e gritou para Zefinha.

-Acode Zefinha, minha filha! Corre até a rua e chama o Toninho antes que ele suma de vez no mundo. Se deixar o curumim (14) escapulir, ele só aparece na hora do almoço.

Zefinha correu atrás do Toninho, porém, daí a pouco voltou dizendo que o moleque já havia sumido. Disse que chamou e chamou, à toa. O garoto tinha evaporado. Parecia até jabuti de quatorze malhas, era tirar a vista e o bicho sumia.

“Seu” Bornéu, deitado na rede estirada na varanda, deixou o jornal debaixo da rede, levantou-se, ajeitou o bermudão na cintura, esticou a camisa, calçou as chinelas e foi para a cozinha falar com a companheira.

-Pode deixar minha “velha”, ele deve ter ido para o campinho. Deixa comigo que eu vou buscar o menino.

Pouco tempo depois “Seu” Bornéu entrou pela cozinha com o Toninho resmungando.

-Vó, eu fiz tudo o que a senhora pediu. Me deixe ir jogar bola, ta faltando um no time da rua. É por isso que o time ta perdendo.

-De jeito nenhum! Vai torrar as castanhas de caju e os amendoins e depois vai ralar as castanhas do Pará para tirar o leite para o vatapá.

-Vóóóóooo! Mas...!

-Sem nem mais e nem menos. Vai fazer direitinho o que eu estou mandando ou você quer que eu reclame com o seu pai e diga que você anda fazendo “malcriação” comigo além de querer escapulir de suas obrigações.

Muito a contra gosto Toninho se encaminhou para o quintal a fim fazer uma pequena fogueira para torrar as castanhas e os amendoins.

-Zefinha, Mariquinha? Ô meninas lerdas... Avia meninas, amassem o pão, botem o restante do tucupi para ferver, lavem as pimentas murupi e as folhas de jambu. E prestem atenção, não se esqueçam de deixá-las de molho na água com vinagre depois de lavadas. A televisão disse que mata uns tal de “fibrão de cólera”. Eu não sabia bem o que era isso não até a Das Dores me explicar que é um bichinho danado de ruim que causa “caganeira” e vômito no cristão que comer ele junto com verduras e legumes. Andem, se apressem que o tempo passa e a gente tem muita coisa ainda por fazer.

-Mãe Joana? Por que o pão para fazer vatapá tem que ser pão dormido de uma semana?

-Me digam uma coisa? Vocês lavaram bem as mãos? Deixem-me ver? E as unhas? Estão bem limpas? Maravilha! E os pães, já estão molinhos? Que beleza! Menina, o melhor pão para fazer vatapá é o pão dormido de uma semana. É melhor porque ele desmancha sem fazer bolota. O pão fresco quando absorve o leite, a casca não desmancha direito e vira bolota estragando a consistência do vatapá. Estão prestando atenção, Mariquinha, Zefinha?

-Ô Mariquinha, quase ia me esquecendo, depois de lavar as folhas de jambu não se esqueça de colocar água para ferver e escaldar as folhas. Preste atenção, minha querida! Ponha para escaldar por pouco tempo. As folhas têm que cozinhar é junto com o pato e não separadas.

-Mãe Joana, por que é que a senhora, toda vez, manda ferver as folhas de jambu antes de botar ele pra cozinhar com o pato?

-Oxente, menina! Eu já não de falei? Eu fervo as folhas pra tirar o gosto de mato e deixar as folhas e os galhos mais macios e travosos. Agora, anda, vai cuidar dos seus afazeres.

Mariquinha foi atender às ordens de Dona Joana falando baixinho para a prima Zefinha, as duas, crias e agregadas da casa.

-Vote! Quando mãe Joana ta fazendo almoço pra família comer no domingo ela fica impossível, briga e chama a atenção da gente por qualquer “dê cá aquela palha”.

-Pois é! Quem não conhece mãe Joana até estranha tanta brabeza. Num se apoquente não Mariquinha, depois do almoço tudo volta ao normal e ela torna a ser a mãezona de sempre.

Era tradição na Casa da Mãe Joana o almoço familiar no ultimo domingo de cada mês. O sobrado regurgitava de gente. Filhos, filhas, noras e genros; netos, bisnetos, suas namoradas e amigos de escola. A imensa prole já sabia que na semana que antecedia o almoço todos contribuíam com o que podiam e os freezers iam enchendo de carnes, peixes, aves e bebidas em geral. A azáfama começava no sábado e se estendia até altas horas na noite. Naquele sábado as mulheres da família estavam na maternidade. Uma das noras estava em trabalho de parto desde a sexta-feira e a expectativa é que o almoço domingueiro serviria também para dar as boas vindas ao novo membro do clã.

As duas primas, Mariquinha e Zefinha, filhas ou agregadas, agregadas ou filhas, Mãe Joana não fazia distinção entre naturais e adotados, amava-os todos, com igual devoção.

Às vezes, conversando com o velho companheiro no refúgio da alcova, dizia que sentia que, benza a Deus, achava que gostava mais dos adotados que dos naturais, para espanto de “Seu” Bornéu.

-Vixe Maria! Que bestage que você está falando Joana? Como é que pode gostar mais dos adotados do que dos meninos e meninas que saiu de dentro de tu? Dos nossos filhos?

-Nossa Senhora, Bornéu! E não é tudo igual? A Gente não criou e ta criando todos eles com todo o nosso carinho? Quando eu disse que às vezes eu acho que gosto mais de um do que de outro, é só da boca para fora. A diferença é que nossos filhos sempre vão saber quem é o pai e a mãe deles. E os outros, meu Deus? Nestes anos todos nunca apareceu sequer um parente deles para dizer: “olha, eu sou o teu tio, teu pai, teu avô, avó”. Nem mesmo uma mãe sequer, desnaturada ou não, nunca se sabe o que leva uma mulher a abandonar um filho na porta dos outros. O que sei é que despejaram os coitadinhos na nossa porta e pronto. Lamentou-se Mãe Joana com uma lágrima sentida escapando-lhe do canto do olho.

-Pode até ser. Mas pergunta para qualquer um deles, quem é mãe deles...! Joana, outro dia eu fiquei emocionado até as lágrimas. Perguntaram para o Bastião se você era mãe de verdade dele. E olha que ele estava nervoso com alguma coisa lá na oficina. Aquela lá, onde ele levou o carro para ver aquele defeito. Quando o mecânico falou no teu nome, o homem ficou com cara de bobo, esqueceu a raiva e um sorriso de orelha a orelha estampou na cara dele. Estufou o peito e disse ‘claro que ela é minha mãe’. E quando o sujeito disse ‘de que jeito se Dona Joana e “Seu”Bornéu são negros e você é branco ‘polaco’’? Ele disse ‘meu camarada, eu só não tive a sorte de sair de dentro dela, de resto, não existe melhor mãe no mundo e nem pai. Nem mesmo a tua para você, e olha que foi ela quem te pariu’.

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Pois bem, Zefinha e Mariquinha estavam assoberbadas de trabalho, corriam de um lado para o outro atendendo as ordens de Mãe Joana.

-Meninas, parem de tagarelar! Criaturas do céu... Já foram ver se os peixes, a matrinxã e as piabas já descongelaram? Já tiraram os talos das pimentas? Toninho, menino lerdo, mexe essas castanhas e amendoins senão torram somente de um lado. Bornéu, meu ‘dengo’, tire os patos do molho e lambuze de óleo por dentro e por fora, corte umas pimentas de cheiro, bem miudinhas e jogue por dentro deles, embrulhe os bichinhos com papel alumínio e depois acomode eles na bandeja e ponha no forno. Meu ‘dengo’ cuide de deixar o forno em fogo baixo, espere mais ou menos uma hora e meia, depois ponha em fogo alto por mais meia hora. Obrigada, querido!

Concentrada em descascar os camarões secos, Dona Joana por pouco não caiu da cadeira ao ouvir os gritos de Mariquinha e Toninho.

-Vó! A castanha de caju e o amendoim tão torrado. Depois de moer as “bichinhas” posso ir jogar bola? Toninho ouviu como resposta ‘que não, que ainda teria que descascar as castanhas e os amendoins’

-As piabas tão descongeladas, a matrinxã ainda não, ta quase.

Recuperada do susto, Mãe Joana levantou do banco, foi até a pia e depois de lavar as mãos, respondeu para Mariquinha.

-Ponha a matrinxã debaixo da torneira, descongela mais rápido. Ô meu Jesus Cristinho! Menina, me faça um favor, abra a torneira... Meu Jesus amado...! Não precisa abrir toda a torneira, só um pouco. Pronto! Isso, agora vá ajudar o Toninho, com a pressa que ele está de ir jogar bola é bem capaz de ele descarcar as castanhas ao ”Deus dará”.

De repente todos largaram o que estavam fazendo. Uma comitiva de filhos, filhas, noras e genros acompanhados de uma chusma de crianças, inopinadamente invadiu a cozinha, todos falando ao mesmo tempo.

-O menino nasceu!

-Que gracinha!

-Interessante! O bruguelo (15) não se parece nem com o pai e nem com a mãe.

-Bebeu todas, é...? Quem já viu menino novo se parecer com alguém.

Todos riram ao mesmo tempo enquanto Toninho com as faces avermelhadas pelo calor do fogo se meteu na conversa fazendo com que as risadas aumentassem ainda mais.

-Pelo menos o branco dos “óios” te que se parecer, né?

Novas risadas jocosas irromperam do grupo.

Sempre preocupada com o bem estar de todos os membros da família, Dona Joana despejou um monte de perguntas para o grupo invasor da cozinha que rapidamente se dispersou pelo ambiente destampando panelas, abrindo garrafas de cafés, beliscando um biscoito aqui, um pedaço de bolo ali; pegando um camarão de cima da mesa; outro grupo se espalhou pelo quintal descobrindo as castanhas de caju torradas e rapidamente tiraram as cascas de algumas para degustar a iguaria.

-E o menino está bem? Nasceu com saúde? Tomara que sim. Dodora enjoava tanto... Mãe que enjoa muito geralmente a criança nasce gorda e bem. Também, fica sugando a saúde da mãe. Pesou quantos quilos? Chorou muito? Gritou bem alto? Criança que chora e grita alto quando nasce é sinal de saúde. Me digam, e Dodora? Está bem? E a criança? Ai, que vocês me deixam numa aflição. E o Augusto? Como é que ele está? Agora a tosse dele piora de vez. Quantos cigarros ele fumou? Ai, meu Deus! Eu vivo dizendo para ele parar de fumar. E o parto? Foi normal ou foi cesárea?

A filharada respondeu as perguntas da matriarca também de uma vez só.

-Calma mãe, a Dodora está bem. O menino chora mais que bezerro desmamado. Está vendendo saúde. O parto foi demorado, mas foi normal. O Alberto queria que o médico fizesse uma cesárea, mas Dodora fez questão que fosse normal. Vamos ter que levar remédio para tosse sim. O cara ficou tão nervoso que parecia que era um caipora (16), fumava um cigarro atrás do outro. As enfermeiras terminaram expulsando o ‘Guto’ do corredor. Saiu sob protestos reclamando com todo mundo. A senhora sabe como ele é quando está preocupado com a Dodora. Ficou do lado de fora, no pátio, e a toda hora enchia todo mundo de perguntas.

-Mãe, fique tranqüila, Dodora está bem. Tão bem que quer sair amanhã mesmo. Quer participar do almoço. O Augusto não quer, disse que ela tem que ficar de resguardo no hospital, para prevenir qualquer coisa. A senhora conhece a Dodora e o Augusto. Ele vai terminar atendendo a mulher dele. Pode preparar mais um prato e forrar o velho berço. Os três, amanhã, vão fazer parte da festa.

-Nesse caso, vamos lá! Vou preparar uma merenda para vocês. Devem estar com fome. Depois, as mulheres ficam comigo e os homens e os meninos eu quero todo mundo fora da minha cozinha. Homem e menino na cozinha além de fazer besteira de vez em quando ainda causam desastre. Deus me livre e guarde! Ave Maria! Vote!

De repente Mãe Joana parou no meio da cozinha e ficou segurando o queixo, depois foi até janela e gritou para o Toninho:

-Ô Toninho! Chama os outros meninos e peguem uma galinha bem gorda. Pronto, pegue aquela pedrês, ela ta tão gorda que quase não agüenta andar. Preciso fazer uma canja para a Dodora, mulher de resguardo não pode ficar comendo peixe reimoso (17), ainda mais com jambu e tucupi. Pato também não.

O relógio na parede da cozinha indicava que a manhã ia ao meio. A azáfama na cozinha divertia os homens da família aboletados em tamboretes, bancos e cadeiras debaixo da frondosa mangueira do espaçoso quintal. Os homens, agora em grande número, com a presença de vizinhos mais chegados, bebericavam caipirinha, cerveja e chope. O chope era cortesia do futuro padrinho do recém nascido, amigo de infância do orgulhoso pai. Como tira-gostos degustavam piabas fritas, crocantes, que de vez em quando alguma irmã ou cunhada trazia em bandejas guarnecidas de sal, limão e pimenta murupi.

Em meio aos gritos agudos das crianças que corriam por todo o quintal ouviam-se retalhos das conversas das mulheres da família.

-Acho que tem pouco leite nesse pão para o vatapá.

-E o arroz? Faz hoje ou amanhã?

-Claro que é amanhã! Tu gostas de comer arroz dormido, é?

-Eu gosto! O cascão do fundo da panela é o que é o melhor do arroz.

-Deixem de conversa fiada e amassem bem amassado esse pão. As castanhas de caju e os amendoins já foram descascados?

-Tão aqui, mãe! Tão descascados e separados nestas duas vasilhas.

Em meio à azáfama da cozinha Mãe Joana foi até a porta e gritou para os filhos que estavam no quintal.

-Atalíbio! Zé Augusto! Ô Renatinho, meu amor! Baixem o volume dessa música! Ô meu Deus do céu! É pagode, é axé, é forró... Tudo em alto volume... Deixa todo mundo surdo. Os ouvidos da gente ficam zunindo... Chega dói. Ave Maria!

-Nossa! O pato ta cheirando, hem? E por falar em pato, Mãe Joana vai fazer é pato assado, é?

-Ô mulher! Deixa de bestaje. Mãe Joana vai fazer é pato do tucupi. Tu não viu os temperos prontos naquele caldeirão em cima da mesa grande? Vote! Com tu é alesada, Margarida.

Margarida, uma mulata classuda que desfilava na escola de samba do bairro, riu alto, com deboche da brincadeira da irmã.

-Alesada não! Devagar, talvez! E sacudiu os ombros com ar de pouco caso abraçando a irmã, as duas soltando gostosas gargalhadas.

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Mãe Joana depois de supervisionar o piseiro (18) na cozinha foi até onde os homens da família estavam reunidos jogando dominó e bozó, bebendo e jogando conversa fora. Entregou uma bandeja repleta de piabas fritas, crocantes, guarnecidas de rodelas de limão, molho de pimenta murupi e deu um aviso incisivo.

-Ta aqui. Vão comendo devagar essas piabas e vão segurando a fome até a hora do almoço.

-Mas Mãe, e a hora que acabar as piabas fritas, a gente vai comer o quê para tira-gosto?

-Não come. Chupa o dedo. Oxente! Onde já se viu? Não vou querer ninguém renegando comida na hora do almoço. A matrona fez ar de zangada franzindo os sobrolhos, depois sorriu e voltou para a cozinha.

-Meninas, meninas? Todas aqui, já. Temos que terminar esse almoço de hoje e deixar tudo pronto para o domingo.

Neste instante Mãe Joana chamou um dos homens que inadvertidamente piruava pela cozinha na expectativa de filar algum petisco, quem sabe uns camarões do vatapá para comer com farinha, quem sabe até um bom punhado de castanha de caju, guloseima preferida desde os tempos de criança.

-Nonato, meu filho! Vá até a despensa, pegue a lata de tinta azul e dê uma mão de tinta no berço de balanço e depois ponha lá no sol, para secar. Da última vez nasceu uma menina e o Bornéu, seu pai, pintou o berço de rosa. E como esse berço é o mesmo que foi usado pelo “Guto” quando ele era criança, é claro que ele vai querer que o filho também fique nele.

-Pois é! Ia ser muito engraçado ver a cara do “Guto” quando a gente entregasse o berço cor de rosa para ele deitar o filho dele. Do jeito que o cara é metido a machão...

-Então, meu filho! Ande logo, ande. Vá fazer o que eu lhe mandei.

E pegando uma mão cheia de castanha de caju torradas entregou para o filho e sorriu dizendo.

-Deixe de besteira. Não quero saber de arenga entre irmãos.

-Mas eu não ia arengar com ele. Ia só tirar um sarro da cara do macho.

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-Meninas, atenção! Quem quiser aprender de vez como é que se faz um pato no tucupi se achegue aqui na mesa grande. Quem já sabe ou num quiser saber, que vá lá pra fora cuidar das crianças ou que vá atentar os homens, que é o que mulher faz de melhor, mesmo sem querer.

Neste instante uma das crianças entrou correndo na cozinha, trombou em uma cadeira e por pouco não foi de encontro ao fogão onde fumegava uma panela cheia de caldo de tucupi.

-Minha mãe do céu! Asdrúbal? Ô Asdrúbal? O Chiquinho quase causa um desastre aqui na cozinha. Pegue seu filho e dê um jeito de controlar esse menino fora da minha cozinha. Sabe o que mais? Fora você também! Fora daqui! Tudo o que é de menino, menina, os de pequenos e os homens também. Tudo... Tudo fora da cozinha. É para ficar somente adulto e mulher, somente mulher. O menino ou menina que entrar na cozinha sem permissão vai ficar de castigo, trancado lá no quarto. Onde já se viu! Menino zanzando pela cozinha... Ou quer cascudo do cocuruto ou petisco, e como os petiscos já foram distribuídos sobrou o cascudo... Vai querer um Chiquinho?

E acalmando-se um pouco, o coração aos pulos devido ao quase desastre, Mãe Joana retornou ao comando da cozinha.

-Zefinha, minha neguinha, pegue o coité com os temperos. Bornéu, meu dengo, tire os patos do forno e deixe em cima da bancada. Isso, essa bancada aí perto da janela. Assim eles esfriam mais rápido. Mariquinha dê um adjutório aí pru Bornéu. Isso, cuidado, não vão se queimar...

-Vixe, Mãe Joana! Os patos tão assados por demais. Tão vermelim, vermelim. Dá até pra comer assim mesmo, assados do jeito que estão.

-É, mas eles vão é ficar cozidos no molho de tucupi e aí sim é que vão ficar no ponto. E Mãe Joana fazendo um gesto para uma das noras, pediu.

-Lindaura, minha flor, pegue o panelão ali na prateleira. Não, esse é muito pequeno, pegue o outro, isso, esse aí, de alumínio. Aproveite e pegue a tampa também.

A matriarca pegou o coité com os temperos e despejou dentro do panelão, e com uma colher de pau macetou os tomates, a cebola, o coentro e a cebolinha.

Uma das noras presentes, vendo a ação de Mãe Joana perguntou.

-Vixe Maria! Por causa de quê que a senhora amassou os temperos?

-Oxente! Não vê que eles, amassados assim, ficam mais fáceis de cozinhar até desmanchar... E vamos parar de jogar conversa fora. Tu, Lindaura e mais tu, Das Dores... Vocês duas, vão buscar os patos e cortem em pedaços... Prestem atenção, cortem do jeito que eu ensinei pra vocês... Asa, dois pedaços, asa e sobre asa. Coxa, dois pedaços, coxa e sobre coxa. Titela, ou melhor, o peito, corte ao meio e depois ao meio de novo, de atravessado, ou seja, quatro pedaços. Costela, dois pedaços de cada lado. Pescoço, dois pedaços. As cabeças e os pés joguem fora.

Depois das instruções, Mãe Joana parou ao meio da cozinha com as mãos à cintura coordenando as ideias, depois se dirigiu para o jirau localizado no terreiro... Ao meio do caminho virou-se para as duas noras encarregadas de destrinchar os patos e fez uma última recomendação.

-Lindaura... Das Dores, não se esqueçam de tirar os sobrecus dos bichos. Nunca gostei de comer essa nojeira. E atenção, hem! Cortem os pedaços com muito cuidado para não esmigalhar a carne

-Credo, Mãe Joana! Pois eu gosto, e gosto muito do sobrecu. Reclamou com um muxoxo a nora Lindaura.

Os homens da família e amigos que jogavam dominó e bozó à sombra da frondosa mangueira pararam de jogar quando Mãe Joana se aproximou e ficou parada à frente deles, com as mãos na cintura.

Alguns sorriram cumprimentando a matrona, outros espicharam os olhos numa indagação muda. Outros ainda perguntaram em tom de brincadeira.

-E aí, mãe? O almoço já está pronto?

-Vai esperando sentado... “Tô” precisando de dois valentes pra limpar os peixes. O almoço de hoje vai ser de costela de tambaqui assada no forno e matrinxã moqueada, por isso eu preciso de dois para limpar os peixes para o moquém, as matrinxãs e os tucunarés pra fazer a quinhãpira e passar sal grosso nas costelas de tambaqui. Vamos meninos, levantem a bunda do tamborete e vão cuidar da vida, senão em vez do almoço sair uma da tarde vai sair é lá pelas três ou quatro, e aí sim, vocês vão ver o que é aperreio de curumim chorando querendo almoçar. Aliás, o de comer dos moleques eu e as menina já vamos preparar, os adulto que esperem.

Foi a senha para o grupo reunido sob a sombra da mangueira se dispersar. Em dois tempos os peixes estavam limpos e tratados e o moquém acesso. Alguém correu até a despensa e trouxe um saquinho de sal grosso. Sobra do ultimo churrasco da família.

Satisfeito, João Pedro, um morenão espadaúdo, mãos grandes e calosas, vestindo um bermudão com o escudo do Flamengo e uma camiseta regata com escudo do Vasco entrou na cozinha com um sorriso de orelha a orelha, marca registrada do rapagão espigado.

-Mãe Joana, os peixes estão prontos. A matrinxã ta no moquém, o Oswaldo já salgou as costelas dos tambaquis. Costelas grandes né mãe? Ele ta perguntando se já pode trazer para o forno. E os tucunarés estão aqui. A senhora vai fazer quinhãpira, é? Gosto muito! Faz tempo que a senhora não faz, né Mãe?

-Virge Maria do Céu! E tu andas por aqui, é? Mas me conta, menino! Você não estava em São Carlos com a Jurema, tua tia? Quando foi que o barco chegou? Ai, meu Deus! Ninguém me avisa nada. E que roupa estranha é essa? Flamengo misturado com Vasco? Que doideira é essa, menino...?

João Pedro continuou com o sorriso largo, divertindo-se com o espanto da mãe. Depois de abraçá-la e cobri-la de beijos, com uma gargalhada explicou para a mãe a razão de ter chegado à casa vestido de Flasco, segundo o Adonias, o mais gozador da turma de irmãos quando viu a estranha indumentária do irmão andarilho.

-A senhora se lembra daquela toalha do Flamengo que estava em cima da minha cama da última vez que eu estive aqui?

-Claro que lembro, fui eu que guardei na tua mala.

-Pois é! A toalha não era minha. Era daquele amigo que eu trouxe comigo lá de Costa Marques. Então... Quando eu cheguei a São Carlos a Tia Jurema abriu a minha mala para tirar a roupa suja, encontrou a toalha, lavou e estendeu no varal junto com a minha roupa. Daí, uma namorada que eu arranjei por lá, cismou de me dar um presente, viu a toalha no quintal, achou que eu era flamenguista e me deu esta bermuda. A senhora sabe e Porto Velho inteira também que eu torço pelo Coringão, e, daí, só para sacanear e homenagear os flamenguistas e vascaínos da família, resolvi comprar essa camisa do Vasco e vim fantasiado de Flasco, para homenagear os dois times no clássico de hoje. Mas o boné a senhora viu, né? É do Timão.

Depois das explicações, mãe e filho se abraçaram e trocaram beijos carinhosos e entre gargalhadas e afagos caminharam em direção às panelas que fumegavam no imenso fogão.

Uma das irmãs ao ver o rapagão abraçado à mãe gritou para as outras mulheres na cozinha:

-Valei-me meu Padre Chiquinho! Meninas... Olhem quem está aqui, João Pedro! Resolveu dar o ar de sua graça! Mas me conta meu mano, quando foi que você chegou? Tu tá sabendo que a Das Dores teve neném e que foi um menino... O “Guto” ta tão inchado de orgulho do filho e da Das Dores que o peito dele ta mais estufado que titela de pombo. Gracejou uma das irmãs.

Depois do gracejo todas riram e correram para abraçar e beijar o irmão andarilho e querido de todos.

-Minha Mãe do Céu como você está queimado de sol

-E que arrumação é essa de misturar Flamengo e Vasco? Tu não torces não é para o Coringão como tu diz?

-Pois é! A razão dessa mistura a mãe explica para vocês depois. O queimado de sol é de ficar subindo e descendo rio montado em voadeira (19). Tá pensado... Vida de Fiscal do IBAMA não é mole não... Então quer dizer que a Das Dores enfim conseguiu, hem? Graças a Deus! Também... Depois de quatro meninas... Já estava na hora de ter um macho na casa do “Guto”... Até agora o único macho que tinha lá era o Jolí, o cachorro deles... E depois de muito rirem da piada do irmão se abraçaram mais uma vez sob as broncas de Mãe Joana.

-Parem de arengar com o “Guto”, se ele ouvir uma bestage dessas é bem capaz de ele ficar muito chateado.

-Fica não, Mãe! Ele sabe que eu falo assim é só da boca para fora. Ele sabe que eu gosto muito dele. Dele e da Das Dores e das meninas, aliás, eu trouxe presente para as quatro meninas, como eu não sabia do nascimento do bruguelo, ele ficou sem.

-Tem importância não, depois a gente vê isso. E a tua mala? Deixou aonde?

-Deixei lá no quarto. E não é mala não, é uma mochila, é mais fácil de carregar. Não se preocupe não, Mãe. A senhora ta precisando de alguma ajuda? De alguma coisa?

-Se preocupe não, João Pedro, meu filho. Vá se juntar aos seus irmãos... Vá...! Meninas, comigo, vamos aprontar essa comida. Na verdade, vamos fazer pouca coisa, somente arroz branco; salada de alface, tomate, cebola e pimentão, mais farofa.

Os rapazes acenderam uma pequena churrasqueira, cobriram-na com uma grelha e colocaram as matrinxãs em cima. Disputaram no palitinho quem ia ficar pastorando para ir virando de um lado para o outro os peixes no moquém e voltaram para o jogo de bozó, tirando sarro do perdedor e soltando altas risadas de deboche.

Mãe Joana untou com manteiga de garrafa e pasta de alho as costelas de tambaqui, salpicou coentro moído por cima, cobriu-as levemente de pimenta de cheiro picada, depois derramou sal grosso por cima das costelas, acomodou-as na bandeja, cobriu-as com folhas de bananeira, acendeu o forno deixando-o em fogo baixo, em torno de 240 graus e falou para Lurdinha, uma das noras que passava por perto:

-Lurdinha, minha filha, marque aí no seu celular e daqui a mais ou menos uma hora me avise para tirar as costelas do forno, é o tempo para elas ficarem no ponto e também a hora de servir o almoço desse povo.

Mãe Joana foi até a janela e perguntou para o grupo que jogava bozó:

-Quem foi o azarado que ficou cuidando do moquém?

-Foi o Joaquim... Mãe!

-Tá bom! Então fala para ele ficar cuidando também do fogo. Cuidar para o fogo não ficar nem muito alto e nem muito baixo. As costelas vão ficar prontas daqui a mais ou menos uma hora. É quando vamos servir o almoço. E avisa para ele ficar virando os peixes, senão vão assar só de um lado.

Depois de dadas a instruções, Mãe Joana foi até o fogão onde fumegava a panela com caldo de tucupi, chamou as mulheres interessadas em aprender a fazer o famoso prato e instruiu:

-Prestem bem atenção! Olhem... Estão vendo todos estes temperos que estão nesse coité? Pois bem, vou jogá-los dentro dessa panela com molho de tucupi fervendo que para eles cozinhem até desmanchar. Depois, daqui a mais ou menos uns vinte minutos, eu vou despejar os pedaços de pato dentro da panela, e por último, depois de cinco horas de fervura é que vou colocar as folhas de jambu.

-Mãe Joana, qual a razão de esperar tanto tempo para colocar as folhas de jambu?

-É que a carne do pato é um pouco dura. Precisa de cozimento mais demorado. As folhas e as florzinhas de jambu devem cozinhar até o ponto certo senão elas desmancham. Minha filha, cinco horas de fervura dissolve qualquer vegetal. Desmancha até macaxeira, imagine folha e flor de jambu.

-O bom da flor de jambu é que dá uma dormência gostosa na boca. Eu gosto por demais. Opinou uma das mulheres em volta de Mãe Joana.

Após as instruções para filhas, netas e noras, Mãe Joana as conduziu para outra mesa para lhes ensinar outro prato da culinária amazônida, a quinhapira.

-Zefinha, meu doce! Pegue os tucunarés lá na pia, os meninos já escamaram e cortaram em pedaços. Pois bem, prestem atenção, este prato é muito fácil de fazer. Vocês viram que eu coloquei duas panelas para ferver tucupi. Uma foi para o pato que já está no fogo, a outra, naturalmente foi para fazer a quinhapira.

-Esse prato eu quero aprender. Estou meio que, tipo assim, ficando com um carinha lá na empresa e ele ouviu falar desse prato e disse que ficou com vontade de provar. Ele é paulista e diz que gosta de comida típica. Eu falei que a minha avó de vez em quanto fazia e ele ficou muito interessado.

-Glorinha, o cara ficou interessado na quinhapira ou foi em você? E como é que ele ficou sabendo que esse prato existe?

-Sei lá eu! Acho que viu na internet ou me ouviu comentar na hora do lanche com as meninas do escritório. Como é que vou saber? Não perguntei e nem ele me disse como é que soube desse prato típico. Na verdade, a gente estava tomando um chope, a turma do escritório, lá no Mirante Dois e Meio, aquele barzinho bacana que serve comidas típicas lá nas barrancas do Rio Madeira, ali no Bairro Arigolândia.

-Sei onde é mulher, continua...

-Então... A gente estava falando do Arraial Flor do Maracujá, das danças de quadrilha, boi-bumbá e comidas típicas quando ele chegou, pediu um chope e no meio da conversa ele manifestou o desejo de provar esse prato.

-Estranho né! Um paulista interessado em prato típico que pouca gente, inclusive aqui na Amazônia, já ouviu falar.

-Pois é... Muitos que estavam na mesa, naturais de Porto Velho, também nunca tinham ouvido falar. Para mim foi bom, engatei um papo legal com o carinha e a gente está assim, meio que ficando...

Mãe Joana aproveitando a deixa da pausa involuntária da conversa, deu um abraço na Glorinha, beijou-lhe a testa e sugeriu que a neta convidasse o tal “ficante” para o próximo almoço da família, quem sabe não faria quinhapira novamente.

-Muito bem meninas. Vamos terminar logo com essa quinhampira que as costelas de tambaqui e as matrinxãs já estão quase prontas. Pois bem... Vamos lá... Vocês viram que os meninos já deixaram os pedaços de tucunaré mergulhados no caldo de limão, né? É bom deixar os peixes, qualquer peixe descansar no sumo de limão. Tira o pitiú e dá gosto na carne. Olhem só, essa quantidade de peixe equivale a três tucunarés de um quilo, um quilo e meio cada um. É suficiente para a quantidade de gente que vai almoçar amanhã. Ainda mais que vamos servir os patos e o vatapá juntos.

-Mãe, não é muita comida não? Dois patos, uma panela grande de vatapá e três tucunarés de quase um quilo e meio cada um... É comida prá dedéu... Ave Maria!

-Tem razão Glorinha, mas o que sobrar o povo come na janta... Mesa boa é mesa farta, mesa com comida caindo pelas beiradas. Ninguém pode dizer que comeu pouco e mal na mesa de Mãe Joana. Mas, vamos deixar de conversa e vamos ao peixe. Zefinha, dê cá aquelas pimentas murupi. Isso, junto com o prato. Vamos ver... Temos mais ou menos uns cinco quilos de peixe... Acho que seis ou sete pimentas é o suficiente... Vamos juntar uns três tomates picados, uma cebola, uns dois molhos de cebolinha com coentro, uma cabeça de alho, umas quatro ou cinco folhas de chicória e pronto... Vamos colocar tudo dentro da panela com o caldo de tucupi, deixar ferver por uns trinta minutos e depois colocamos o peixe por mais uns vinte a trinta minutos e o peixe fica no ponto. Depois é só apagar o fogo e deixar esfriar naturalmente para o tempero e o molho de tucupi penetrar bem na carne e amanhã é só esquentar e servir com arroz branco e farinha d’água bem torradinha.

Algumas das filhas, noras e netas que circundavam a matriarca e que não conheciam ainda o preparo do pato e da quinhampira quedaram-se abismadas com a simplicidade das receitas.

-Mãe Joana, é só isso? É botar o peixe de molho no caldo de limão, depois ajuntar alguns tomates, cebolas, cheiro-verde, alguns dentes de alho; algumas pimentas murupis, algumas folhas de chicória, botar tudo para ferver por uns trinta minutos e depois colocar o peixe e deixar ferver por mais trinta minutos, e depois servir com arroz branco e farinha... É somente isso?

-É minha querida, é somente isso. O certo seria fazer o peixe com pimenta jiquitaia (16) e servir com beiju, na falta da pimenta jiquitaia coloquei murupi e como não tem beiju, vai com farinha mesmo. O milagre da receita está na simplicidade e não na complicação. Venham cá minhas filhas, como já está quase tudo pronto e eu estou com tempo de folga vou aproveitar para contar uma historinha para vocês. Esse prato, quinhampira, dizem que vicia ainda mais com pimenta jiquitaia que dá fogo nos homens. Dizem que quem come uma vez quer comer sempre. Tem uma história lá da minha terra, no Alto Solimões, no Estado do Pará...

-É Mãe Joana, conta pra gente, conta...

-Dizem que lá pras bandas do Alto Solimões, na região de Tiquié, os índios contavam uma história sobre um padre salesiano que comeu quinhampira uma vez e ficou viciado. Ficou tão viciado que, diziam os índios do Alto Solimões, ele só celebrava missa em determinada localidade se o povo do lugar servisse quinhampira. Diziam que quanto ele chegava às aldeias ele perguntava ‘tem quinhampira?’. Se a resposta dos índios fosse ‘não’, ele se vingava e dizia ‘então não tem missa’, voltava para o barco, dava meia volta e ia embora.

-Gostei foi da parte da história que fala que a tal pimenta jiquitaia dá fogo nos homens. Falou Glorinha, revirando os olhos e dando uma risada gaiata.

-Menina deixe de assanhamento... Anda, me ajuda a servir o almoço que o povo deve de estar morrendo de fome.

-Mãe Joana, e o vatapá? A gente vai fazer que hora? Perguntou Zefinha.

-Ora o vatapá é coisa rápida, em dois tempos a gente prepara. E mesmo, os meninos já comeram ou você esqueceu de dar comida para eles, Zefinha?

-Não sinhora, estão todos comidos e bebidos. Tá todo mundo de bucho cheio.

-Menina, tenha modos. Isso é jeito de falar... "comidos”... “bebidos”... Ora essa... Era só o que me faltava. Venha Glorinha, meninas venham também. Quem já sabe está dispensada, quem não sabe e quiser aprender fica aqui, e quem não sabe e não quiser aprender também pode ir embora.

Todas se acercaram da matrona, mesmo porque gostavam de estar na companhia da velha senhora, além da curiosidade que sentiam em saber como seria feito aquele vatapá. Mãe Joana toda vez inventava novidade na hora de preparar seus quitutes.

-Olhem aqui, em cima da mesa. Temos mais ou menos uns trinta pães dormidos de uma semana descansando dentro de quatro litros de leite. Vejam que já estão bem ensopados... Temos também uns dois quilos de camarão seco sem casca; cinco dentes de alho e três cebolas picadas miudinho; meio litro de leite de castanha-do-pará fresquinho, ralados pelo meu dengo Bornéu; um vidro de dendê, uma lata de creme de leite, cheiro verde, coentro e pimenta murupi. Tem gente que tem preferência por cubo de caldo de peixe ou de camarão, eu não. Eu pego umas duas xícaras da água que desalgou o camarão e uso para complementar o sal a gosto...

Mãe Joana foi interrompida por uma das noras, Maria Cristina.

-Não te falei? Eu sabia que Mãe Joana usava alguma coisa diferente de cubo de caldo de peixe ou camarão. Eu te disse Lindaura. Desculpe mãe, continue.

-Pois bem, continuando... Deixem-me ver a mão de vocês, as unhas. Que maravilha! Tudo limpo. Que diferença de quando vocês eram crianças, hem? Beleza! Me ajudem a amassar o pão... O pão tem que ser amassado é com a mão. Tem gente que gosta de bater o pão no liquidificar, eu não... Não fica com o mesmo gosto... Fica pastoso... O vatapá tem que ser feito com gosto, com amor... É esse carinho que dá o gosto especial no vatapá. Na cozinha não pode ter preguiça, tem que seguir a receita tradicional... Prestem atenção, a minha bisavó ensinou essa receita para a minha avó, que ensinou para a minha mãe que me ensinou e eu estou ensinando para vocês. Pois é, no tempo delas não existia liquidificador. Dava mais trabalho? Dava. Mas a comida ficava mais gostosa.

-Nossa...! Mãe Joana. Eu sempre faço batendo o pão no liquidificar, é mais fácil e não estraga as unhas.

-Pois é, minha filha! Cada um tem o seu jeito. Fazer o quê? Vamos continuar... Pronto! O pão já está amassado. Agora, Lindaura, pegue aquela panela ali no canto, leve ao fogão e acenda duas bocas.

-Duas bocas, Mãe? Nós vamos usar duas panelas pra quê?

-Filha, fique observando com as outras e você vai entender.

Em uma boca de fogão Mãe Joana colocou a panela com a massa acrescida de leite de castanha-do-pará e duas xícaras com a água que desalgou o camarão, ajustou a chama para fogo médio e pediu para umas filhas ficarem mexendo o conteúdo sem parar, para não grudar no fundo da panela. Na segunda panela, Mãe Joana despejou metade do azeite de dendê, a cebola e alho picado e os dourou, depois acrescentou o camarão e refogou a mistura por uns dez minutos. Depois da mistura refogada, Mãe Joana colocou tudo dentro da outra panela contendo a massa de pão, mexeu bem e com a ponta da colher de pau retirou um bocado e provou a consistência. Achou que estava um pouco grosso, colocou mais leite até achar que estava no ponto ideal. Quando começou a ferver acrescentou o cheiro verde, pimenta murupi, castanha de caju e amendoim picados. Deixou ferver por mais uns cinco minutos, desligou o fogo, acrescentou o creme de leite e misturou bem. Colocou a tampa na panela, se virou para as filhas e com um largo sorriso falou:

-Ta pronto! Agora é deixar descansar e amanhã no almoço a gente vai ver se ficou bom ou não.

-Mãe Joana, a senhora não vai deixar a gente provar nem um pouquinho. Só pra ver se ficou bom mesmo?

-Não! De jeito nenhum. Provar... Só amanhã, no almoço.

Depois de pronto o vatapá, todas saíram para o quintal e sentaram-se ao redor da grande mesa onde imperava uma confusão alegre. Todos os homens da família e convidados riam e falavam ao mesmo tempo. Saudaram com alegria a chegada das mulheres, levantaram brindes e gritaram vivas para a matriarca.

Depois que todas saíram da cozinha, Toninho que voltava do jogo de futebol, passando pela cozinha e vendo-a deserta sentiu o cheiro gostoso de vatapá, não teve dúvidas, esgueirou-se na ponta dos pés, serviu-se de um bom bocado da iguaria, correu para debaixo de um pé de jaqueira e esbaldou-se. Lambeu os beiços e pensou: “pois sim que eu vou esperar o almoço de amanhã”.

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O domingo amanheceu radioso, coisa rara em Porto Velho, o céu estava azul, limpinho, sem uma nuvem no céu. Os passarinhos nos galhos das árvores no quintal pipilavam que redobravam o canto. O dia prometia ser um dos mais bonitos. Coisa esquisita, uma brisa gostosa vinha do quintal, entrava pela porta e janelas da cozinha e se espraiava por toda a casa. Mãe Joana e “Seu” Bornéu, cada um com uma caneca cheia de café fumegante esperavam os filhos para o desjejum. À mesa, farto café da manhã os esperava. Cuscuz com leite, macaxeira cozida coberta de manteiga de garrafa, ovos fritos, carne moída e tapioca untada com manteiga. “Seu” Bornéu depois que bebericou o café fumegante falou para a companheira que iria até a padaria comprar o jornal. À porta da casa, acendeu um cigarro e já ia descendo as escadas da casa quando olhou para um canto da varanda e viu uma pequena caixa de papelão coberta com uma pequena manta azul. Levantou a manta, sorriu, pegou a caixa e voltou para dentro da casa. Entrou na cozinha e falou para Mãe Joana:

-Acho que hoje vamos recepcionar dois bebês.

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Glossário:

01 – Jambu: Erva típica da Região Norte do Brasil, mas precisamente do Pará, Amazonas e Rondônia, também conhecida como agrião-do-pará. É muito utilizada na culinária do norte no país, especialmente nas iguarias ‘tacacá’ e ‘pato no tucupi’. A sua flor ao mordida deixa uma leve sensação de dormência e tremilica os lábios.

02 – Móios: Pequeno amarrado de hortaliças, tais como cebolinha, coentro, alface, couve, etc...

03 – Tucupi: é um tempero e molho de cor amarela extraído da raiz da mandioca brava, que é descascada, ralada e espremida (tradicionalmente usando-se um tipiti). Depois de extraído, o molho "descansa" para que o amido (goma) se separe do líquido (tucupi). Inicialmente venenoso devido à presença do ácido cianídrico, o líquido é cozido (processo que elimina o veneno), por horas, podendo, então, ser usado como molho na culinária.

04 – Murupi: Pimenta pequena, amarela, dividida em gomos e com formato alongado. É a pimenta brasileira mais forte, com grau 9 na escala de ardume, e deve ser usada com bastante moderação. Muito comum na Amazônia e no Pará, é usada para temperar o apreciado tacacá com tucupi, caldo à base de goma de mandioca vendido nas ruas das cidades. Servida também para acompanhar peixes de água-doce.( Werner Mathi)

05 – Goma: Massa feita de amido extraído da mandioca e/ou aipim.

06 – Quinhampira: tucunaré cozido no caldo de tucupi, com o toque especial da pimenta murupi. (Sabores da Amazônia - http://portalamazonia.locaweb.com.br/sites/saboresdaamazonia/noticia.php?idN=1859)

07 – Matrinxã: Designação comum a algumas espécies de peixes teleósteos, caraciformes, caracídeos, do gênero Brycon [cf. piracanjuva], especialmente o B. brevicauda, o B. hilarii, o B. matrinchao e outros, de dentição forte, carne saborosa, e com até 50cm de comprimento. Coloração geral oliváceo-dourada, com nadadeiras caudal e anal lavadas de vermelho; algumas espécies são prateadas. Habitam águas limpas, e sua pesca se faz com anzóis com isca de frutas ou carne de outros peixes.

08 – Moqueando: Secando ou assando em moquém.

09 – Moquém: Grelha de varas para assar ou secar a carne ou o peixe.

10 – Pitiú: Cheiro forte, característico do peixe; cheiro de maresia.

11 – Bamburro: Expressão típica do garimpo. Designa um achado, neste caso, refere-se ao garimpo de cassiterita em Rondônia, que teve seu auge durante as décadas de 1960 e 1970. Referia-se ao garimpeiro que enriquecia da noite para o dia.

12 – Cata: Escavação mais ou menos profunda, conforme a natureza do terreno, para mineração.

13 – Coité: Cuia. Vasilha confeccionada do fruto da árvore coité, cujo fruto em forma de cabaça quando partida recebe a denominação de cuia, coité.

14 – Curumim: o mesmo que menino.

15 – Bruguelo: Menino muito novo, recém nascido.

16 – Caipora: Ente fantástico oriundo da mitologia tupi, representado, segundo as regiões, ou com a forma de uma mulher unípede que anda aos saltos, ou como uma criança de cabeça grandíssima, ou como um caboclinho encantado, ou como um homem agigantado, montado num porco-do-mato, ou com um pé só, redondo, seguido do cachorro papa-mel, etc.; caapora. (Auréio)

17 – Reimoso: Que prejudica o sangue. Que faz mal à saúde.

18 – Piseiro: Expressão típica de Rondônia, especificamente de Porto Velho. Significa aglomeração de pessoas em alegre algaravia.

19 – Voadeira: Barco com motor de popa, muito veloz. (Aurélio)