Causa mortis
Morreu. Isto era um fato. Faltava definir-lhe a causa mortis. Não que alguém fosse ler ou se importar com esta definição, mas era necessário posto que em sua certidão de óbito haveria de constar uma causa, como se a morte, legítima dona da vida, que dela se apropria a seu bel prazer, necessitasse mesmo de algum motivo para justificar seus atos. Os diagnósticos foram muitos, tanto de curiosos próximos ou nem tanto, como do médico que examinava displicente o corpo gélido e pálido. Alguns disseram de um profundo amor outonal, que impregnou-se-lhe no corpo, alma e coração, não lhe dando paz nem de dia nem de noite, nem em sonhos nem em vigília, tornando as lembranças tão ávidas e vivas quanto a saudade voraz e faminta de seu amor, ambas igualmente suicidas, que se alimentavam de todas suas forças vitais sem compreender que isso significava também o seu fim. Alguém cochichou que amor é veneno sutil e fatal, quando ingerido pela alma que faz dele a causa maior e a única razão do existir. Amor nunca mata, que isso é coisa de loucos e poetas que inventam histórias de se morrer de amor, a iludir os tolos, disseram outros, e entre falas e murmúrios abriram-lhe o corpo à procura dos causadores daquela que se impunha soberana a quaisquer causas. Percorreram todas as suas cavidades e órgãos, que inertes não ofereciam nenhuma resistência à procura das possíveis causas, indiferentes a toda e qualquer mão. Examinaram-lhe com a curiosidade incrédula e mórbida, típica dos seres humanos, quando não entendem os motivos das coisas comuns que acontecem às pessoas comuns. Veio por fim o veredicto. Morrera de indigestão. A indigestão que se embota nas veias, empelotando todas as palavras que deveriam ser ditas e que nunca foram pronunciadas; a indigestão que petrifica os sentimentos e os transforma lentamente em pedra, e que entope as artérias por onde o sonho deveria fluir livremente. Morreu de uma indigestão tão séria, daquela que faz da esperança bolhas de vazio a sufocar os pulmões impedindo a respiração da vida, daquela causada pela extrema lucidez que permite ver além das míseras emoções camufladas, a verdadeira realidade da ausência de sentimentos verdadeiros, que viu nos olhos das almas daqueles que lhe pousaram o olhar. Morreu de indigestão profunda e simples, do simples fato de existir a vida e de se ter que diariamente beber de sua fonte e de se ingerir pacientemente sua cruel e inerente solidão. Morreu de indigestão. Indigestão de vida.
Morreu. Isto era um fato. Faltava definir-lhe a causa mortis. Não que alguém fosse ler ou se importar com esta definição, mas era necessário posto que em sua certidão de óbito haveria de constar uma causa, como se a morte, legítima dona da vida, que dela se apropria a seu bel prazer, necessitasse mesmo de algum motivo para justificar seus atos. Os diagnósticos foram muitos, tanto de curiosos próximos ou nem tanto, como do médico que examinava displicente o corpo gélido e pálido. Alguns disseram de um profundo amor outonal, que impregnou-se-lhe no corpo, alma e coração, não lhe dando paz nem de dia nem de noite, nem em sonhos nem em vigília, tornando as lembranças tão ávidas e vivas quanto a saudade voraz e faminta de seu amor, ambas igualmente suicidas, que se alimentavam de todas suas forças vitais sem compreender que isso significava também o seu fim. Alguém cochichou que amor é veneno sutil e fatal, quando ingerido pela alma que faz dele a causa maior e a única razão do existir. Amor nunca mata, que isso é coisa de loucos e poetas que inventam histórias de se morrer de amor, a iludir os tolos, disseram outros, e entre falas e murmúrios abriram-lhe o corpo à procura dos causadores daquela que se impunha soberana a quaisquer causas. Percorreram todas as suas cavidades e órgãos, que inertes não ofereciam nenhuma resistência à procura das possíveis causas, indiferentes a toda e qualquer mão. Examinaram-lhe com a curiosidade incrédula e mórbida, típica dos seres humanos, quando não entendem os motivos das coisas comuns que acontecem às pessoas comuns. Veio por fim o veredicto. Morrera de indigestão. A indigestão que se embota nas veias, empelotando todas as palavras que deveriam ser ditas e que nunca foram pronunciadas; a indigestão que petrifica os sentimentos e os transforma lentamente em pedra, e que entope as artérias por onde o sonho deveria fluir livremente. Morreu de uma indigestão tão séria, daquela que faz da esperança bolhas de vazio a sufocar os pulmões impedindo a respiração da vida, daquela causada pela extrema lucidez que permite ver além das míseras emoções camufladas, a verdadeira realidade da ausência de sentimentos verdadeiros, que viu nos olhos das almas daqueles que lhe pousaram o olhar. Morreu de indigestão profunda e simples, do simples fato de existir a vida e de se ter que diariamente beber de sua fonte e de se ingerir pacientemente sua cruel e inerente solidão. Morreu de indigestão. Indigestão de vida.