Separação amigável
Desceu a rua de calçada esburacada a procura do endereço indicado pelo setor de assistência judiciária aos necessitados. Olhava para os prédios também em busca de alguma placa que identificasse o advogado público nomeado para resolver sua causa. Em meio a vários anúncios frenéticos de prestação de serviços e oferecimento de produtos, achou o nome do dito cujo. Conferiu o número do prédio e entrou no corredor estreito que levaria ao escritório.
Sentou-se na sala de espera e esperou. A secretária anunciou-a pelo interfone, embora o tamanho do local permitisse ouvir a conversa dos dois - advogado e secretária. Bastaria um tom de voz um pouco mais alto entre eles, o que não parecia apropriado. Algumas revistas desatualizadas empilhavam-se na mesinha de canto, mas a mulher não se empolgou em apanhar nenhuma delas. Não tinha sido fácil chegar até ali, não pela localização, mas pela decisão de levar adiante a causa engasgada há anos, muitos anos. As mãos da mulher suavam e sua impaciência era notória, apesar de nenhuma reclamação pela demora tivesse escapado daquela insegura personalidade.
Lá dentro, o advogado ajeitava-se para iniciar mais um dia de trabalho. Ainda era cedo, faltavam dez minutos para as nove horas, e a desconhecida cliente poderia esperar mais um pouco, até ele limpar sua mesa, ligar o computador e guardar meia dúzia de papéis nas pastas de processos em andamento.
A mulher foi chamada. O documento que segurava nas mãos fez o advogado logo identificar a origem da causa. Tratava-se de beneficiária da assistência judiciária a pessoas que não possuem condições financeiras de pagar pelo serviço, ou seja, a causa e os honorários do advogado seriam custeados pelo Estado, ou melhor, pela grande parte da sociedade que paga tributos.
- Sente-se, por favor – disse o advogado.
Sem pronunciar uma palavra, ela entregou o documento e abaixou a cabeça, parecia envergonhada. O advogado olhou-a e, rapidamente, notou que se tratava de uma pessoa bem cuidada – aparentava mais de trinta e cinco e menos de quarenta anos. Cabelo, unhas, pele, roupas, tudo demonstrava que aquela mulher não passava necessidades, muito pelo contrário.
- A senhora deseja separar-se de seu marido?
- Sim, doutor.
- Trouxe uma cópia da certidão de casamento?
A mulher abriu a bolsa e entregou um papel dobrado em quatro partes.
- A senhora está casada há vinte anos!
- Sim, casei-me muito nova, com dezessete anos de idade.
- Possui filhos?
- Cinco.
- Qual a idade deles?
- O mais velho tem dezoito, e o caçula tem quatro anos.
- Vou precisar de cópia da certidão de nascimento de todos eles.
- Eu não as tenho agora, mas trarei em breve.
- Possuem bens?
- Apenas uma casa e um automóvel.
- Também providencie uma cópia da escritura do imóvel e do documento de propriedade do veículo. Qual o motivo da separação?
A mulher baixou novamente a cabeça e passou a mão no rosto.
- Eu preciso saber o motivo – insistiu o advogado - a menos que a separação seja consensual. Em outras palavras, se o seu marido estiver de acordo, não precisa me dizer o motivo.
- Não, doutor, meu marido sequer sabe que eu estou aqui. Acontece que eu não gosto dele, nunca gostei.
- Mas isso não é motivo para fundamentar um pedido de separação judicial – esclareceu o advogado.
- Como eu disse para o senhor, eu casei muito nova. Na época, meus pais me entregaram ao meu marido; eu fui obrigada a casar.
- Entendo...
- Nunca amei meu marido, mas somente agora tive coragem de tomar essa decisão.
O advogado voltou a olhar a certidão de casamento e verificou que o marido era dezesseis anos mais velho do que ela. A mulher continuou a história.
- Meus pais gostavam dele, ele já tinha emprego e casa própria, era a melhor pessoa com quem eu poderia me casar, pensavam meus pais.
- Sei..., mas depois ele se revelou...
- Como assim, doutor?
- Depois do casamento, a senhora descobriu os defeitos dele.
- Não, ele não bebe, não fuma, é ótimo pai, trabalhador, chega cedo em casa...
- E a senhora quer se separar dele?
- Eu já disse o motivo, doutor. Eu nunca o amei.
- E ele, a ama?
- Ele é uma pessoa muito boa e simples, me trata com respeito, mas não chega a ser carinhoso. Para ele, cumprir as obrigações de homem basta.
- E ele as cumpre?
- Todas.
- O caso da senhora não é comum. Para lhe dizer a verdade, é a primeira causa desta natureza que eu enfrento.
- O doutor nunca fez uma separação judicial?
- Não, não se trata disso. Já fiz inúmeras separações judiciais, mas sempre em circunstâncias diferentes. Normalmente, são as mulheres que procuram o advogado para pedir a separação. Contudo, há fortes motivos de descumprimento dos deveres do casamento por parte do marido, tais como: agressões físicas e verbais, alcoolismo etc. A senhora não possui nenhum motivo que fundamente o descumprimento dos deveres do casamento por parte de seu marido.
- Então não posso me separar?
- Não é isso, mas acho difícil fundamentar a separação no fato da senhora ter sido entregue por seus pais há vinte anos.
- E qual a solução?
Antes de sugerir uma solução, o advogado quis saber mais.
- A senhora disse que ele trata bem os seus filhos. Não teme que as crianças fiquem traumatizadas com a separação?
- Sim, eu penso em tudo isso. Mas a minha vida está passando ao lado de uma pessoa que eu nunca amei.
- Há quanto tempo a senhora tomou a decisão de se separar?
- Penso nisso há mais de dez anos.
- E quando tomou a decisão de procurar um advogado?
- Há dois meses.
- A senhora está segura dessa decisão?
- Sim, estou.
O advogado achou melhor não insistir, embora constatasse que a mulher ainda estava insegura. Na última resposta, os olhos dela marejaram.
- Então, doutor, qual a solução?
- Acho melhor eu conversar com o seu marido. Será que ele concorda em fazer a separação amigável?
- Não sei...
- A senhora teme alguma reação violenta, caso eu entre em contato com ele?
- Não, quanto a isso não há a mínima possibilidade; ele é muito pacato, nunca foi violento com ninguém.
“Sempre há uma primeira vez..., a ira dos mansos...” - pensou o advogado.
- Pretende ficar com a guarda dos filhos menores?
- Sim, pretendo.
- A senhora trabalha?
- Não, sou dona de casa.
- Nunca trabalhou?
- Nunca.
- Ele a proibia?
- Não. Ocorre que, com cinco filhos, nós decidimos que eu cuidaria das crianças.
- Então eu vou ligar para ele e fazer a proposta. Quanto ele ganha por mês?
- Ele é marceneiro, dos bons. Nunca deixou faltar nada em casa.
- Na hipótese dele concordar, temos que estabelecer um valor de pensão alimentícia para a senhora e seus filhos.
- Veja primeiro se ele concorda em conceder a separação consensual.
O advogado ligou para o marido da sua singular cliente e não antecipou o assunto. Do outro lado da linha, uma voz calma comprometeu-se em comparecer ao escritório no dia seguinte. E assim foi.
- A sua mulher esteve aqui na quinta-feira.
- Eu soube, ela me falou.
- Ela contou para o senhor?
- Sim, ela me contou tudo, doutor.
- E o que o senhor acha da situação?
O homem começou a chorar; um choro contido, de gente sofrida. As lágrimas caíam uma após a outra, dos dois olhos, alternadamente. Enquanto ele as enxugava, uma voz firme saiu de sua garganta.
- Tudo bem, eu concordo em dar a separação.
- Eu estou chocado com a situação de vocês – desabafou o advogado. Nunca peguei um caso assim antes. A sua mulher só fez elogios ao senhor...
- Mas ela não me ama, nunca me amou, doutor.
- O senhor não é o único marido que não é amado pela mulher – disse o advogado.
- Eu tenho pena das crianças – disse o marido.
- Fique tranquilo, suas crianças também não serão as únicas do mundo cujos pais são separados.
O advogado tentava aliviar aquela constrangedora situação de todas as maneiras possíveis. Um homem de mais de cinqüenta anos de idade, forte igual a um touro, de mãos grossas e pele curtida pelo sol, de personalidade serena, ali, a chorar diante do advogado, concordando em desfazer a sua família e o casamento de vinte anos, e ainda admitindo que não era amado pela própria mulher.
O homem saiu do escritório em passos lentos e de cabeça baixa. O advogado permaneceu prostrado em sua cadeira, com vontade de desistir da causa. No dia seguinte, ele ligou para a mulher.
- Seu marido esteve aqui ontem.
- Eu sei, ele me falou.
- Qual foi a reação dele?
- Ele está muito quieto. Somente disse que concordava com a separação amigável.
- E a pensão, vocês já conversaram sobre o assunto? Eu não consegui tratar disso com ele.
- Ele falou que paga o quanto for preciso para o bem estar dos filhos.
- E a casa?
- Ele disse que eu posso ficar na casa com as crianças. O automóvel fica com ele.
- Aonde ele vai morar?
- Aqui mesmo na cidade, no bairro vizinho, na casa de um irmão solteiro.
- Então eu vou preparar a papelada. A senhora precisa me trazer os documentos que eu lhe pedi.
- Levarei amanhã.
Na audiência, a promotora de justiça e o juiz interrogaram o casal sobre a certeza da decisão. Em poucos minutos, aquele casamento de vinte anos estava desfeito.
Dois anos após a separação, o advogado foi procurado pela mulher. Numa tarde cinzenta e chuvosa, a secretária anunciou a ex-cliente.
- Doutor, eu fiz a minha separação com o senhor, lembra-se?
- Sim, claro, aquela separação amigável. Seu marido é marceneiro. Eu até o indiquei para um colega meu...
- Pois então, preciso novamente dos serviços do senhor?
- Converter a separação em divórcio?
- Não, antes fosse...
- O que aconteceu?
- Faz seis meses que o meu marido, ou melhor, meu ex-marido não paga a pensão alimentícia. Preciso entrar com um processo para cobrá-lo.
- E onde ele está?
- Ninguém sabe. O irmão disse que ele resolveu ir embora. Num certo dia, fez as malas e deixou a casa, sumiu.
- Mas nós precisamos de um endereço para encontrá-lo, senão não há como receber os atrasados. Dê-me o telefone do irmão dele, que eu vou tentar extrair o atual endereço do seu ex-marido.
A mulher informou o número do telefone ao advogado. Antes de sair do escritório, ele notou que a aparência dela já não era igual ao do primeiro encontro. O cabelo estava descuidado, as roupas desgastadas e a pele sem o mesmo viço de dois anos atrás.
O advogado ligou para o cunhado da mulher. Do outro lado da linha, uma voz serena e grave respondeu:
- Meu irmão foi embora, desgostoso da vida. Não sei o paradeiro dele. Desculpe-me, doutor.
Eduardo Rotger