O mal de Seu Natalino
Naquele dia Natalino saiu de casa de manhãzinha com alma aos frangalhos. Ia à cidade tratar de uma doença nova. Já beirando aos setenta, ele nunca sofrera de mal maior, a não ser algum desarranjo intestinal provocado por abuso no comer. Nem gripe suína o abatia, pois era um sertanejo forte. Proprietário de um sítio no Boqueirão do Teiú, Seu Natalino – como era conhecido por muitos e por todos respeitado – era muito considerado na comunidade por ser um homem sério nos negócios e benquisto na família. Era uma espécie de conselheiro. O que lhe conferia grau de liderança política entre os cento e poucos eleitores da localidade. Porém aquele incômodo estava deixando-o nervoso e abatido. Principalmente quando, ao se queixar a um amigo, este, experiente em caso semelhante, descreveu o tipo de exame que ele, Natalino, precisava fazer.
– Iiiih.... compadre! Iiiih é mesmo!? – exclamou Natalino, arregalando os olhos.
– Com certeza. É o único jeito, compadre Natalino.
– E doi munto, compadre?
– Doi nada. Só fica um pouco de ardulência e uma saruga no fim. Lá no fim mesmo. Mas passa logo.
Então naquele dia lá se foi seu Natalino para a cidade a procura de tratamento daquele mal. Principalmente porque a noite anterior havia sido das piores. Não conseguira dormir direito, levantara umas dez vezes para ir até as porta dos fundos da casa para urinar pingado. Um pouquinho de cada vez. E a bexiga congestionada e dolorida ao toque.
Ao desembarcar do ônibus, antes de qualquer providência, a primeira coisa que pensou foi procurar aconselhamento com alguém que, além de conhecido, fosse de sua inteira confiança. Então se lembrou de seu amigo Juravão Prudente, o prefeito da cidade, que, além de ser seu compadre de longa data - pois havia segurado as velas no batismo de seu filho mais velho - era também o único político que o visitava em época de eleições pedindo os votos (todos) do Boqueirão do Teiú. E os obtinha, é claro. “Home bão é o compadre Jura. Home séro e cumpridor taí.“ – dizia Seu Natalino sempre que se referia ao amigo Juravão Prudente.
Já na antesala do gabinete do prefeito, Seu Natalino falou à secretária:
– Diz pro compadre que eu estou aqui e quero falá co’ele.
A secretária que já o conhecia e sabia que Natalíno tinha carta branca com o prefeito, fez um gesto apontando a porta do gabinete, dizendo:
– Pode entrar, Seu Natalíno. O prefeito está atendendo um grupo de senhoras da sociedade. Vai demorar um pouco, mas ele o recebe assim mesmo.
– Não carece pressa dona. Meu assunto é palticulá. – e quedou-se a esperar que as mulheres saíssem do gabinete. Só depois entrou.
– Meu amigo Natalício. Que bom vê-lo por aqui. Que é que manda desta vez? Em que posso servi-lo?
– Pos óia compadre, num sabe que eu ando cum uma incomodação. Vim inté a cidade percurá um dotô que me cure. Mas tem que ser de cunfiança. Num sabe?
- É claro, compadre Natalino. Em matéria de doença não se brinca. Tem que ser um médico de inteira confiança, mesmo. Possivelmente um especialista. Mas diga lá qual é o mal que lhe aflige?
Natalino olhou para um lado e para ouro, certificou-se que estavam sozinhos no gabinete, só então segredou, à meia voz, usando a mão em concha para abafar qualquer desvio de som:
– É prósta, meu compadre.
– Ora compadre Natalino, isso é muito simples. Pensei que fosse doença mais grave. E o exame também é muito simples. É o tal toque anu-retal. Simples, simples como uma piscadela para uma mulher bonita - falou o prefeito, rindo-se, tentando acalmar o nervosismo de Seu Natalino.
– Compadre, compadre! Não manga di eu, não. Eu não vou mintregá a quarqué veterináro desconsiderado, que vá despois saír por aí falano que fez isto ou fez aquilo comigo, como isturdia eu vi um fazer lá no meu sítio com uma vaca, das minha, que estava com dificulidade de parí. Vô não, compadre Jura. Vô, não.
– Ora ora, compadre Natalino. Deixa de resenha, homem. Tem aí o doutor Saracura Meloso, muito competente, que além de tudo é meu amigo, lhe fará o exame de graça - e em tom de brincadeira acrescentou: – Ele faz o toque anu-retal com tal habilidade e maestria, e sem dor, que no fim o compadre vai querer fazer novamente na semana que vem.
– Não brinque comigo, compadre Jura. Tô lhe estranhando hoje. O assunto é munto séro. Intonce diga onde eu encontro esse tal de Dotô Saracura, que eu quero me consultá e adispois ir mimbora pra roça.
– Façamos o seguinte: eu escrevo um bilhete e lhe apresento. Assim ele prioriza o atendimento, não lhe cobra nada e lhe dará o diagnóstico na mesma hora. Tá bom assim, compadre Natalino.
– Intão escreva aí, compadre Jura. Mas óia que eu tô confiando no compadre. Não vá me falhar desta vez.
Isto posto e já com o bilhete em mãos, Seu Natalino despediu-se do prefeito Juravão. Porém ao passar pela antesala, que nestas alturas estava abarrota de moças e rapazes de uma comissão de estudantes, Seu Natalino parou junto à mesa da secretária e perguntou:
– Me diga uma coisa, moça. Por acaso arguém daqui desta sala pode ouvir o que se cunversa lá dentro?
– De maneira nenhuma, Seu Natalino. Por que?
– Por nada, não. Eu só queria sabê. Intão, inté mais ver. Tô indo percurá o tar dotô Saracura
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Passada uma hora ou um pouco mais, o prefeito Juravão Prudêncio recebe um telefonema do Doutor Saracura nestes termos:
Alô! É o prefeito Juravão? (e uma gargalhada soa forte nos fones do aparelho) Oh... Jura. Você me arruma cada uma. Pois não é que o teu compadre Natalino me forçou a assinar um termo de compromisso de que eu guardaria segredo absoluto sobre o que viesse acontecer dentro de meu consultório, antes que ele, depois de muita indaga, tirasse a roupa para eu examiná-lo?
(e as risadas dos dois confundiram-se nas duas pontas da linha.)
Dizem que estão rindo até hoje.
[Certos termos usados neste conto, como licença poética, são típicos de roceiros no interior da Bahia – Região Oeste]
Munto = muito
Ardulência = ardência
Saruga = coceira
Home séro = homem sério
Incomodação = Incômodo, doença
Percurá = procurar
Cunfiança = confiança
Prósta = próstata
Isturdia = outro dia
Dificulidade = dificuldade
Inté = até
Arguém = alguém