Marcel

Marcel, boa pinta, culto, sonhador, excelente pianista, professor do conservatório e pobre. Está certo que estudou piano em Moscou com meia bolsa de estudos, mas é pobre. Seu sonho é ser compositor respeitado e casar não é seu sonho. Sofia, moça bonita, na casa dos trinta, alta executiva, estudou economia em Paris, onde até hoje a família mantém apartamento na Ilê de la cite, e freqüenta a livraria Shakespeare & Co. É rica; suas jóias Bulgari e seu sonho é casar. O que os dois têm em comum? Nada. O pai de Sofia encomendou um evento de final de ano para confraternizar com seus funcionários e familiares. A casa de eventos contratou Marcel que não conhecia os participantes do evento. Pois Sofia descobriu Marcel. Marcel não descobriu Sofia. O pai de Sofia fez os arranjos para aproximar o casal. Explica-se, Sofia não teve sorte no amor. Depois de mandar investigar a vida de Marcel, o primeiro passo do pai de Sofia foi se tornar mecenas do pianista e o investimento foi pesado e pensado. Marcel deixou o conservatório de piano onde dava aulas e viu chegar a sua oportunidade de realizar os seus sonhos. A família de Sofia fechou o cerco, aproximou os dois. Marcel, encantado, andava nas nuvens. Mudou de seu apartamento de proletário para uma cobertura com direito a chofer particular. O pouco que possuía ficou para o amigo, também pianista, que morava com ele para dividir o aluguel. Os pais de Sofia resolveram que era hora de fazer marketing para tornar Marcel conhecido. Todos os órgãos de divulgação foram acionados. O talentoso Marcel virou celebridade. Casou com Sofia, com direito a conta conjunta, mansão, séquito de criados, coisa que não estava acostumado. Para Marcel, mais de meia dúzia de pessoas reunidas, já era multidão. Mas gostava de passar o tempo na biblioteca. Sofia, logo que retornou da viagem de núpcias, voltou a trabalhar. Marcel logo cansou das mordomias e passou a freqüentar seu antigo apartamento, só para conversar com o amigo que trabalhava a noite. Lá ele sentia ser a sua casa. Lá estava o seu piano. Foi aí que começaram as desavenças. Sofia cortou. Eles foram viajar e na volta, Marcel encontrou um estúdio com uma acústica perfeita, o piano de seus sonhos que brotou durante a viagem do casal. A felicidade ficou quase completa. Tem um porem: logo Sofia sentiu ciúmes do estúdio, pois o dito estava competindo com ela. Marcel, já cansado, sem amigos, vivendo em uma gaiola de ouro, e com a mulher obsessiva. Logo Sofia engravidou e ficou pior: proibiu as saídas de Marcel, as idas ao apartamento, o encontro com o amigo, nunca recebeu o amigo do marido. Marcel, sufocado, passou a sair todas as tardes. Sofia controlava o velocímetro do carro do marido e contratou um detetive a peso de ouro. O detetive, depois de uma semana, deu o seu trabalho por encerrado, pois nada foi encontrado. Marcel passava as tardes dentro de uma loja de partituras antigas e o jardim onde lia o jornal. Sofia achou o detetive incompetente, encerrou a conta bancária do casal, pois ela era a titular, vendeu os dois carros do marido, que eram do marido, mas estavam em seu nome. A irmã de Sofia foi falar com Marcel, pediu para que ele agüentasse até a chegada do bebê, que isso era coisa de mulher grávida, pura insegurança. Marcel ficou. Dias depois foram para a casa da serra. Na estrada Sofia deu início á sua eterna ladainha. Como Marcel não teve reação, ela acelerou e saiu destrambelhada pela estrada. Não viu um caminhão que estava saindo de uma estrada secundária. Resultado: Sofia morreu na hora e Marcel ficou paralítico. O psiquiatra perguntou: Marcel, você nunca notou qualquer anormalidade de desvio de conduta, pois esse ciúme doentio não era coisa normal. No início notei que quando ela provocava uma discussão, ela babava, seus cabelos ficavam eriçados, a expressão facial ficava desfigurada. E quando ela magoava as pessoas, depois de dar vazão à sua ira, ela dava gargalhadas esquisitas, mas logo depois chegava com sua voz de falsete e me perguntava: o que você tem, está aborrecido? Para logo em seguida dizer, cândida como o lírio do esgoto, eu não fiz nada, você é muito sensível e se eu o magoei eu não me lembro, porque eu não guardo rancor. Sofia não amava ninguém e todos que desfrutavam de sua companhia, sabiam que ela não era normal. Só tinha o sentimento de posse. Explica-se a pressa de seus pais em casar Sofia com Marcel... Mas que Marcel já estava alimentando a idéia de eliminar Sofia, ah, isso estava. Sofia, pela primeira vez na vida, facilitou as coisas e hoje está comendo capim pela raiz.