Dezoito Urubus

O maior prazer de Laurindo era o jogo. Depois, vinha o sexo. Para ele, dois prazeres parecidos, porque quando ganhava era como um orgasmo e quando perdia tinha o sabor de uma broxada. Na rua ou na estrada anotava os prefixos dos ônibus e as placas dos carros. Apostava os números das residências e das sepulturas. Datas de nascimentos de parentes e amigos. Sonhava com um casal e jogava no dia do casamento. Todo o número era um bom palpite para o jogo.

Um dia, vinha de carro por uma rodovia e viu uma árvore carregada de urubus. Diminui a velocidade do carro procurando contá-los. Teve um pouco de dificuldade, porque na hora houve uma revoada. Mas, apressou-se e mesmo quando já estavam no ar contou dezoito urubus. Enquanto dirigia fazia a estratégia que o levaria ao palpite certeiro. Urubu não tem. Avestruz é um, dois, três ou quatro. Águia é cinco, seis, sete ou oito. Gosto do oito. Me dá sorte. Então dezoito urubus mais o oito dá oitocentos e dezoito ou cento e oitenta e oito. Na cabeça, não tem como errar - refletiu satisfeito

Pisou fundo no acelerador, ansioso por chegar à cidade e encontrar o encarregado das apostas ainda a tempo de fazer o jogo. Após a agonia da procura e o alívio do encontro e do palpite concretizado sentou em uma pequena mesa de dois lugares em um boteco, onde conferia os resultados do jogo, todos os dias.

Apoiou as costas na parede de azulejos brancos encardidos, pediu uma cerveja e acendeu um cigarro, procurando ouvir o rádio. Enquanto esperava a bebida, mirava o chão cheio de tocos de cigarro e apreciava as prateleiras de madeira suspensas que circundavam todo o salão e que exibiam há anos as mesmas garrafas de bebidas empoeiradas.

Em uma mesa, um senhor analisava o programa de apostas do Jockey. Na outra, ao lado, um conhecido cafajeste investia em uma cerveja e batatas fritas tentando levar uma dona para a cama. Ela usava vários colares e pulseiras, roupas coloridas e berrantes e uma maquiagem pesada e espalhafatosa que ao invés de embelezá-la salientava suas rugas e olheiras.

E o cara insistia em seu papo. Queria comê-la, mas ela não queria ceder ou se fazia de difícil, procurando valorizar-se. Algumas batatas fritas murchas, frias e rejeitadas boiavam no óleo no prato e o resto de cerveja na garrafa há muito esquentara.

Ele acendia um cigarro e ela fumava e olhava entediada para os lados com a conversa daquele homem sobre a vida, sempre com um fundo moralista que ele não tinha e das dicas de ser um vencedor, coisa que ele também não era. De vez em quando a mulher lhe falava de seus problemas e ele com os olhos vermelhos e de pálpebras baixas, a boca aberta quase babando e o membro duro, ansioso para que a conversa terminasse logo e fossem para a cama, balançava a cabeça dando a entender que a compreendia, que era um homem moderno, liberal e sensível, mas que assim que transassem e ele gozasse ocorreria a metamorfose do cafajeste que ela conhecia tão bem, afinal teve vários e casou com um.

Laurindo tragou e soltou a fumaça para o alto observando o ventilador frouxo de pás tortas que emitia um ruído compassado e chato e não refrescava ninguém. As aleluias voavam em torno das lâmpadas fluorescentes cilíndricas e compridas e o dono do bar limpava o balcão de vidro sujo de cachaça, café e gordura com um pano branco amarelado, velho e furado sujo de cachaça, café e gordura.

Uma mulher baixa e gorda entrou e parou em frente ao balcão, mirando o expositor de cigarros. Era examinada pelo cafajeste que deixara a companheira falando sozinha e pensava que talvez fosse mais fácil e valeria mais a pena conquistar a fumante, apreciando sua fartura de carnes, nádegas e seios.

O velho rádio sobre o refrigerador tocava músicas intercaladas por notícias e comentários dos locutores, todos falando ao mesmo tempo e ganhava o acompanhamento monótono do ventilador a girar que fazia inhéque, inhéque, inhéque e dos carros e ônibus que paravam no semáforo em frente ao bar e que quando arrancavam enchiam o boteco de fumaça e barulho.

A todo momento uma mosca pousava na beirada do copo de cerveja e nos braços de Laurindo, que irritado a espantava com a mão ou lhe dava tapas sem sucesso. O jogador batia com os pés no chão imundo, tamborilava com os dedos sobre o tampo da mesa e olhava ansioso para o relógio na parede. Já estava na hora de anunciarem o resultado, mas no rádio eram propagandas atrás de propagandas. Para ouvir melhor, levantou-se e aproximou-se do rádio. Um homem magro sentou em uma mesa e pediu um copo de cachaça. Chegava no boteco todos os dia aquela hora. Tinha cabelos lisos e negros penteados para trás e fixados com gel. Um vasto bigode tipo limpa trilhos. Um rosto anguloso, ossudo e chupado. Antes do primeiro gole derramou um pouco no chão para o santo. Depois, deu uma talagada sempre com o dedo mínimo em pé. Lambeu e estalou os lábios e retirou com todo o cuidado os papéis do jogo do bolso. Tinha umas mãos grandes e magras. Tremia um pouco ao segurar os papéis que eram depositados com todo o cuidado sobre a mesa.

Laurindo olhava para a rua. Apesar da hora ainda estava quente. Gente saindo do trabalho, mulheres e jovens carregando os pacotes de suas compras. E nada do resultado. Duas estudantes entraram, pediram cigarros e sentaram para beberem uma cerveja. O jogador mirou a mais loira, que vestia uma saia curta que revelava suas coxas lisas e grossas. Ela ao flagrá-lo em sua admiração, lançou-lhe um olhar e um sorriso carregados de luxúria, mas Laurindo não lhe deu bola. Não estava a fim de sexo. Não tinha cabeça para sexo. Só queria o maldito resultado. Tinha vontade de quebrar o rádio. Já havia passado um minuto do horário e nada dos números. Logo hoje, que ele possuia a certeza que acertaria na cabeça. Afinal, não era todo o dia que assistia a uma revoada de dezoito urubus. Aquilo era um sinal, um palpite certo. E se for na cabeça, eu quebro a banca – imaginava contente. Mais anúncios, comentários que o deixavam ainda mais aflito e ansioso. Logo hoje, tornava a pensar, indignado com a demora dando leves socos no refrigerador.

De repente ouviu a música que identificava o anunciante dos resultados das loterias. Veio o comercial e logo a seguir o locutor com sua voz metálica e cantada começava a revelar os cinco números. Quinto prêmio, quarto prêmio, terceiro prêmio, segundo prêmio e os comerciais. Mais um minuto de espera e agonia. Laurindo foi até a garrafa derramou o que restava no copo e retornou bebendo. Colocou o copo em um balcão próximo e colou à cabeça ao rádio para ouvir o número que o deixaria folgado financeiramente.

- E agooora o primeeeeiiiro prêêêêmio – anunciava o narrador. Suspense. Ouve-se um tambor.

- Nuuuummeeeroooooo Dois, dois, oito, um, nove – Vinte e dois mil, oitocentos e dezenove – e completou com certa pressa. Milhar dois mil, oitocentos e dezenove e a centena oitocentos e dezenove.

Laurindo deu um murro contra o refrigerador, o que chamou a atenção de todos no bar. Gritava merda! Merda! Merda! Os clientes olhavam atônitos para ele. O dono do boteco o perdoava por ter esmurrado a máquina. Sabia que ele tinha perdido por pouco. Laurindo batia com os pés no chão, passava as mãos pelo rosto incrédulo e aflito de olhos arregalados e continuava com sua lamúria:

- Merda! Merda! Bosta! Bosta! - Não contei um urubu!

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 18/03/2010
Reeditado em 23/03/2010
Código do texto: T2146284
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