A ÚLTIMA VIAGEM DE UM ELEVADOR
[O monólogo do elevador indiscreto]
I
PRÓLOGO
A ROTINA
Um grande edifício. Situam-se nesse edifício escritórios de advogados, seguradoras, clinicas médicas, psicanalistas e uma academia de ginástica Os clientes são usuários do elevador. O elevador será substituído por um modelo moderno, automatizado e computadorizado. É Segunda-feira. Mês de novembro. É a sua última viagem. Há uma fila de pessoas à espera do elevador As pessoas entram lentamente; as portas se fecham
O painel informa que o elevador vai subir
...
O elevador volta ao térreo, está vazio, portas abertas e apenas um foco de luz. Vê-se apenas a silhueta do cabineiro. O painel indica Manutenção
II
O MONÓLOGO
Tentem adivinhar o que se passa na mente das pessoas que entram num elevador lotado. Perfumes e cheiros se misturam. Corpos se roçam. Respirações apressadas. Olhares perdidos. Caras felizes. Caras de preocupação. Caras sérias. Caras risonhas. Faces gordas, faces magras, calvos e cabeludos. Jovens, velhos e crianças. Mulheres. Office-boys. Técnicos em manutenção. Uma ou outra vez alguma carga. Sempre gente, de todos os lugares em suas rotinas, em suas buscas, em seus encontros. A música é única, inconfundível. Mozart, Bach, Haydn ou Beethoven será que algum dia eles pensaram em compor música para ser ouvida num elevador? E os músicos contemporâneos com seus sons minimalistas. Philip Glass teria escutado algum dia suas composições tocadas em um elevador? Quem sabe? O Office-boy negro, magro que entrava assobiando a mesma canção, retalhos de várias melodias, teria feito uma colagem de todos os sons ouvidos em suas subidas e descidas diárias, intermináveis?
O cheiro do elevador depois da faxina! Mistura de detergente, essências e suor. Um cheiro indistinguível! E o espelho enorme no fundo duplicando cabeças, caras, olhos, penteados e calvícies! E o ventilador ruidoso, produzindo um incômodo vendaval e despenteando as madames em seu redemoinho localizado, como um foco dirigido apenas para aquele pequeno espaço do canto?
As viagens incontáveis com intervalos para as manutenções. O painel luminoso, qual uma placa de futebol alternando seu discurso: Pares, Impares. Todos os andares. Parado. Em manutenção. Subindo. Descendo. O gabinete revestido de fórmica fosca. Piso emborrachado. Grafiteiros anônimos deixaram mensagens, gravando em traços ligeiros suas marcas e rabiscos. Indeléveis.
...
As paradas nos dois primeiros andares eram muito raras. Estudantes desciam aos bandos, ruidosos no horário do almoço, ignoravam minha existência. Uma vez embarcaram uma enorme árvore de Natal após o encerramento do expediente. As escadas internas eram preferidas. O quarto andar: quando a porta enguiçava ou o elevador parava entre os dois andares. - Só falta apagar a luz. Dizia um. - Tenho pressa, cabineiro. Dizia outro. - Peça ajuda. Diziam todos.
Aos trancos, ele descia e tornava a subir; não parava no quarto andar. Parecia um feitiço. Poucas pessoas paravam nesse andar, principalmente aquelas que conheciam suas manhas.Então subiam ao quinto andar e desciam a escada. Apenas um homem insistia em tomar o elevador às quatro da tarde; a hora do enguiço. Eu pensava:
- só implica com tal passageiro! Enguiçava outras vezes e o homem não estava presente. Ele usava muletas, todavia que chamava a atenção eram seus olhos esbugalhados; como os olhos de um sapo. Era um advogado de poucos clientes; a secretária era uma loira gorda de cabelos ralos e cílios postiços, batom muito vermelho acentundo a boca enorme e dentes desalinhados; e perfume insuportável. Sorte nossa que ela tomava o elevador muito cedo, com poucos passageiros a bordo e passava o dia no escritório; de vez em quando recebia a visita do filho, um rapaz muito magro de barba rala, cabelos curtos e uma argola na orelha.
O quinto andar era muito frequentado. Lá estavam os consultórios dos cirurgiões plásticos, esteticistas e dermatologistas. A maioria dos clientes são mulheres cinquentonas. Apareciam alguns homens também, chegavam barrigudos, narigudos, caras enrugadas, murchas e abatidas; semanas depois retornavam esbeltos, rejuvenescidos, felizes e sorridentes; indicavam outros pacientes e engordavam as contas bancárias e as barrigas dos médicos.
O terceiro andar era uma festa permanente, com seus cursos preparatórios para vestibulares, concursos públicos e forças armadas. O elevador parecia exclusivo, mas a rapaziada preferia as escadas, muitas vezes congestionando a passagem do pessoal do segundo andar; uns querendo subir e outros querendo descer. Um aglomerado humano feliz e despreocupado. Aproveitavam para fumar e no final do dia recolhiam-se quilos de guimbas e tocos apagados. Não havia drogas.
O sexto andar abrigava um cartório de títulos e documentos, os funcionários eram circunspectos e calados; cumprimentavam por educação, sem sorrisos. A clientela era bastante diversificada. Além do cartório, o sexto andar abrigava uma firma de contabilidade, seus clientes, na maioria, pequenos empresários portando eles próprios a papelada; alguns progrediram nos negócios e passaram a mandar outros em seu lugar, deixaram de usar o elevador, desapareceram. Dentre os clientes destas firmas estavam duas sócias, jovens e bonitas exportadoras de biquínis; faziam questão de ir juntas ao escritório. Ao longo do tempo mudaram o seu visual, à medida que o negócio prosperava; cada dia ficavam mais bonitas e vistosas; passaram a se vestir com mais apuro; uma fez a correção dos dentes. Um dia contaram ao cabineiro a viagemfeita ao exterior; lembraram-se do velho cabineiro trazendo-lhe um gorro de pele; jamais deixavam de sorrir. O sétimo e oitavo andares abrigavam uma academia de ginástica que já começou famosa porque um dos sócios era artista de televisão; tinha também uma cantina cuja cozinheira sempre preparava um lanche especial para o cabineiro. Era uma mulher negra, muito gorda e falante; sabia preparar cardápios de baixa caloria. Por ironia, sua gordura era conseqüência de problemas com a tireóide, disfunção que médico algum conseguia controlar. De nome Neuza, dizia para todos que só simpatia e reza conseguia manter o peso estabilizado; sofria também de varizes, escondendo as pernas em meias escuras, mesmo no verão, porém exibia o inchaço dos enormes pés. Mãe solteira; a filha, uma negra muito alta e fotogênica passou num teste para modelo e morava na Europa; devia fazer muito sucesso e ganhar muito dinheiro, pois comprou uma casa para a mãe num bairro nobre da cidade; mandava fotos, mas nunca voltou à cidade. Neuza uma vez levou para o trabalho uma revista com a foto da filha numa propaganda de perfume. E dizia que jamais poderia usar aquele perfume por ser alérgica e custar muito caro. Um dia, uma cliente da academia jurou que usava aquele perfume, tal era o rastro perfumado pelos corredores. Comentava-se, dias depois, que o perfume era importado e vendido apenas nas grandes capitais. Era um cheiro muito bom mesmo!
No nono andar estavam os escritórios do maior agiota da cidade; com um bar americano, uma sauna e um salão de bilhar; sujeito discretíssimo, usava o elevador de serviço; detestava seu helicóptero por ter medo de voar, mas dizia-se dele que dirigia loucamente uma Mercedes nos finais de semana, quando se refugiava em Itaipava em sua mansão. O décimo andar era um mistério, as salas estavam vazias, ou muito pouco ocupadas. Dizia-se que o proprietário cometera suicídio e a família não quis saber mais do imóvel. Dizia-se também que as salas estavam sob custódia num processo litigioso sem previsão de um final feliz. Dizia-se também que era mal assombrado e quem tentou lá se instalar se deu mal ou faliu. A verdade não se sabe. Muitas portas estão lacradas.
III
A ÚLTIMA VIAGEM
PRÓLOGO
As pessoas entram lenta e solenemente. As portas se fecham. O painel luminoso se apaga. O ventilador está desligado. Não há música. O espelho está embaçado. A faxineira faltou ao serviço. O cheiro lembra eucalipto e está muito forte. Vomitaram no elevador! Tem um botão quebrado! O do quarto andar.
IV
O MONÓLOGO
São passageiros desta última viagem: para o quarto andar, o filho da secretária do advogado com cara de sapo; ele está muito pálido e trêmulo, parece drogado; sua mãe, a secretária, ainda não subiu. O advogado chegou muito cedo, encontrando o elevador ainda sujo. Não houve enguiço. Dois passageiros para o segundo andar vão subir, antes pedindo parar no oitavo; são dois rapazes com uniforme impecável; um deles está sem crachá. Duas passageiras para o quinto, uma delas trazendo uma criança. Mais dois passageiros do terceiro; são novos candidatos, parece, pois pediram informações na recepção. Dois passageiros para o sexto. A cozinheira para o oitavo e uma passageira para o nono. Lotação esgotada. Capacidade para 10 pessoas, mais a criança. Neuza cede lugar para a passageira do quinto andar. Surge o Office-boy correndo: - Espera aí companheiro. Sou magrinho! O passageiro do quarto andar desiste e Neuza retorna ao seu lugar, espremendo o boy contra o cabineiro. Todos se olham pela última vez. O que vai na cabeça do passageiro do quarto andar? Está drogado, com certeza! Seus olhos estão esbugalhados como os do advogado cara de sapo. Como passaram a noite? Ela, a secretária, talvez untando-se com pomadas e cremes e devorando caixas de chocolate frente à TV. O galã da novela é sócio na academia de ginástica. O filho faz um teste para figurante; seria arranjo do advogado. Advogados arranjam de tudo desde que sejam bem pagos. Que preço a secretária deverá pagar? Ou será que seu filho é quem pagará? Ou já terá pagado? O advogado gosta de rapazes. Neuza ouviu este comentário na cantina da mulher do tal perfume que sua filha fez propaganda na revista italiana. Os passageiros do segundo andar, rapazes, estão subindo para o oitavo; estarão indo para a cantina de Neuza? Ou talvez para a academia de ginástica? O rapaz sem crachá é novo por aqui; contrato recente. ferido ao se barbear, aparentava nervosismo; estaria ansioso? Como seria seu primeiro dia em novo emprego ou primeiro emprego? Ele parece ser tão jovem! As passageiras do quinto andar parecem mãe e filha; ou seriam duas irmãs? Seriam parentas?. A menina tem um curativo nas orelhas, mais se parece com os cachorrinhos de orelhas aparadas; teria feito plástica? Conserto de orelhas tortas ou de abano! Cabelos tão curtos, igual a um menino! A mulher mais velha tem o rosto esticado, as mãos são como as de uma bruxa; encarquilhadas, longas unhas pintadas de dourado. Que mau gosto! Há outra passageira para o terceiro andar, mulher nova e rosto delicado. Teria sido esculpido pelo médico? As mãos são lisas e pequenas, unhas curtas e sem cor; tem um anel enorme de pedra verde e tatuagem de estrela no pulso. A mulher mais velha olha fixamente para o painel e seu rosto não tem expressão alguma. Um celular toca no bolso ou bolsa de alguém, chamada não atendida. O Office-boy está impaciente, espremido pelo corpo da cozinheira, parece muito satisfeita em lhe proporcionar tal carinho; a filha está tão distante! Os rapazes do terceiro andar olham um para o outro, segurando o riso; Neuza e o Office-boy são uma comédia para eles; não descem no terceiro andar; mudaram os planos? Os passageiros do sexto fitam o infinito nas paredes de fórmica ou decifram os grafites? Irão ao cartório ou ao escritório de contabilidade? Carregam envelopes pardos; documentos para registro ou para o imposto de renda? Um tem bigodes, é meio calvo. Por que o destino tirou os cabelos da cabeça e os colocou em sua boca? O outro tem cabelos loiros, não tem barba; um rosto de moça e acne; a espinha enorme e vermelha, qual uma estrela colada na asa do seu nariz parece estourar com um espirro. O cheiro de vômito ainda dá pra sentir, misturado ao eucalipto e ao perfume das mulheres. Neuza cheira a suor e gordura. Quem será o passageiro para o décimo andar? Seria um oficial de justiça? Esqueceram de avisá-lo na recepção de que as portas estão lacradas? Ou ele já está sabedor? Ele teria as chaves, da porta e dos mistérios?
...
Parada no quarto andar. Alguém chamou. O botão não responde ao comando. O interfone não está funcionando. Alguém esmurra a porta pelo lado de fora. A menina enfaixada quer chorar. O Office-boy xinga. Os rapazes do terceiro andar começam a rir e Neuza faz uma careta. O celular toca novamente. A mulher de mãos enrugadas e unhas douradas pega o telefone na bolsa e fala em voz metálica que está presa num elevador enguiçado. Desliga o telefone. O elevador volta a subir aos trancos. Continuam socando a porta do quarto andar. Sobe direto ao décimo.
...
Os homens do sexto andar se olham; estariam em pânico? Neuza agarra sua medalha pendurada no pescoço e se benze três vezes; sem querer, esbarra com força no queixo do Office-boy que geme, ou xinga baixinho. A menina chora mais forte; a mãe procura lenços de papel na bolsa e entrega à menina.
Parada no décimo andar. As portas não abrem.
Desce. Parada no nono andar, o homem desce com o Office-boy. Voltamos a descer com parada no oitavo andar; Neuza sai com os rapazes com cara de riso. A mulher pega a menina no colo; parece que a pele do rosto vai se rachar. A mulher mais jovem faz um carinho na menina.
Paramos no sexto andar, os passageiros descem, entra o Office-boy ofegante.
Continuamos a descer e paramos no quinto andar. As mulheres e a menina descem. A menina deve ter peidado. Ou foi a mulher mais velha ou a mais nova? Ou ambas?
A viagem prossegue e finalmente paramos no quarto andar.
Os rapazes do terceiro descem e entra o filho da secretária do advogado da cara de sapo.
As portas não se fecham.
Permanecemos parados.
Surge o advogado com uma arma e atira no filho da secretária.
O Office-boy desmaia.
O advogado aciona o botão e descemos ao térreo.
As portas se recusam a abrir.
Forte cheiro de pólvora e sangue.
O elevador torna a subir e vai direto ao décimo andar.
As portas se abrem.
O advogado sai arrastando as muletas.
O Office-boy acorda, torna a desmaiar, acorda e contempla, em choque, o cadáver do filho da secretária do advogado com cara de sapo.
...
O elevador desce sem paradas ao térreo.
A secretária do advogado e mãe do morto depara com o corpo do filho. Grita.
Ouvem-se gritos vindos da rua.
Um corpo está caído na calçada junto a muletas quebradas.
Surge a polícia.
O Office-boy ainda em choque senta-se encostado ao balcão.
No painel luminoso: ÚLTIMA VIAGEM.