SUPLICIO MODERNO

Abriu-se a porta e ele entrou atrás do pai. Franzino, moreno, com um brilho de curiosidade nos olhos castanhos. Chegaram-se à mesa do Chefe do Escritório e seu pai falou:-

“- Pois é, Seu Souza, aqui está o menino.”

O homem deixou de lado uns papeis, levantou a cabeça e olhou-o por sobre os óculos. Examinou o garoto de alto a baixo e depois disse, num sorriso forçado:-

“- É, ele tem cara de ser mais esperto do que o pai.”

Virando-se, correu os olhos pelo interior do escritório e chamou:-

“- Carlos, venha até aqui.”

Logo surgiu um rapazinho moreno, também usando óculos.

“- É para você ensinar a este menino o serviço de rua. Marque a hora para se encontrarem na cidade.”, ele disse.

O rapazinho se dirigiu ao menino:-

“- A que horas é o teu almoço?”

“- Às onze horas.”, respondeu timidamente o novato.

“- Sabes onde fica o Banco Hipotecário e Agrícola?”

“- Sei sim.”, respondeu de pronto.

“- Pois então espera-me na porta do prédio às doze horas, está certo?”

“- De acordo.”, falou o rapazote.

O Chefe do Escritório balançou-se na cadeira a ranger sob o seu peso e finalizou:-

“- Bom, você pode ir. Encontre-se com o Carlos na cidade. Verá o que tem de fazer.”

O menino ainda relanceou um rápido olhar pelo fundo do escritório, observando curiosamente aqueles funcionários escrevendo, calculando e imaginou-se futuramente um deles. Acordou do sonho passageiro pelo voz do pai, chamando-o:-

“- Vamos, Humberto.”

Saíram.

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“- E então, meu filho? O que disse o Seu Souza?”

“- Por enquanto nada, mãe. Vou descer para a cidade logo após o almoço. Tenho que me encontrar com o Carlos, o moço que vai me ensinar o serviço. Até agora não posso calcular nada. Esperemos.”

Seu pai chegou para o almoço, eufórico. Não conseguia ocultar o seu grande entusiasmo por ver um filho seu empregado no escritório da fábrica para a qual trabalhava há mais de vinte anos. Era uma vitória, uma conquista preciosa! E ele exultava:-

“- Meta os peitos, meu filho! Reza, não brinca no serviço, faça tudo direitinho. E muita educação, ouviste? Sujeita-te a tudo, seja humilde.”

“- Sim senhor, meu pai. Farei o possível. Fique tranqüilo.”

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Já estava parado há quase quinze minutos na porta do banco e o Carlos não aparecia. Humberto começou a impacientar-se, mas logo u’a mão lhe tocou nos ombros:- era o Carlos. Chegara por detrás. Estava sorridente, um pouco ofegante, trazendo uma pasta grená debaixo do braço.

“- Bem, amigo, vamos enfrentar a “onça”? É este o primeiro banco de hoje. Observa-me trabalhar, pergunta-me os pormenores, as dúvidas que tiveres e eu as irei esclarecendo. Tens alguma prática desse serviço?”

“- Já trabalhei num escritório, como “office-boy”, Carlos. Porém quase não saia à rua e de banco não entendo patavina.”, falou francamente.

“- É, mas não há perigo. A gente aprende é fazendo. Isso é sopa, vais ver.”

Entraram no edifício. Varias pessoas esperavam, juntos aos “guichês”. Umas tantas outras preenchiam talões numa prancheta comprida no meio do saguão.

Dirigiram-se ao balcão onde se via uma placa com os seguintes dizeres:- “COBRANÇA DA PRAÇA. Carlos falou:-

“- Olha aquela placa. O serviço quase se reduz a isso:- pagar títulos! Chegas, dirigi-te à Secção de Cobrança, entregas a duplicata ao funcionário e recebes uma fichinha numerada. Guarda. Se o titulo for pago com cheque, entrega-o também, anexo. Se for a dinheiro, pagas depois que vieres buscá-lo.”

“- Em qual Caixa?, indagou timidamente Humberto. Carlos retrucou:-

“- Ora, a ficha traz o numero. Repare!”

Entregou o documento ao funcionário do banco. Este examinou a duplicata, pregou-lhe a ficha numerada e deu-lhe um canhoto.

“- Olha aqui:- Caixa 3. Por enquanto é só. Vamos andando.”

A caminho do próximo estabelecimento de credito pararam num bar, tomaram um gelado. O calor estava forte.

E assim, sucessivamente:- um banco aqui, outro acolá, o Correio Geral, a Prefeitura, a Coletoria Federal, etc. . Humberto prestava bastante atenção em tudo, atento aos menores detalhes do serviço. Depois, voltaram pelos mesmos lugares visitados, a recolher os títulos quitados.

No fim do dia Humberto estava cansado. Seu primeiro dia de trabalho na Cia. São Braz. E que dia! ...

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Ao término da semana, seu pai perguntou:-

“- E então, meu filho? Já sabes trabalhar? E o Carlos?”

“- Calma, pai. O Carlos disse-me ser hoje o ultimo dia de prática. Amanhã ele pedirá demissão. Terei que fazer hoje tudo sozinho. Ele apenas me acompanhará.”

“- E o negócio é puxado?”, continuou o Seu Martins.

“- Puxado não é, porem dá uma dor de cabeça! Há que se ter bastante atenção.”

Seu Martins sorriu, balançando afirmativamente a cabeça. Ele confiava no potencial do seu filho mais velho. O rapaz era responsável, correto e bem compenetrado. Daria tudo certo!

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Finalmente a prova de fogo:- estava sozinho na cidade, em meio à multidão aflita, em tropeços, uma balburdia! A cabeça lhe doía. Sozinho! Bem, sozinho não:- ele, Deus e ... a pasta! Sim, a pasta, abarrotada de papeis, de títulos, recibos, contas, cartas, documentos, etc., etc. .

Organizou o roteiro de acordo com a proximidade dos estabelecimentos, uns dos outros, recitou baixinho uma oração às Almas do Purgatório e embarafustou-se, decidido, em meio ao povaréu.

No Correio Geral, suado, o bolso cheio de fichas, a pasta quase vazia, descansou um pouco. Depois voltou, colhendo o que semeara.

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“- Você brilhou, menino!”, foram as palavras do Seu Souza. Dirigiu-se ao Caixa da firma, enrubescido. Acertou as contas, apresentou os comprovantes de pagamentos, devolveu o troco, etc. . Passou ao arquivo, guardou a pasta, abriu a gaveta da sua mesinha:- repleta de copias de cartas, faturas, documentos, etc. . Colocou tudo em ordem alfabética, como lhe ensinara o Carlos e principiou a arquivá-los.

Um apito estridente levou-o até a janela dando para uma rua interna da fabrica:- dezessete horas. Uma onda de operários vinha saindo num burburinho.

No escritório, os funcionários também interrompiam os trabalhos, dirigiam-se ao lavatório. Entrou também. Ouviu risos, casos de futebol, anedotas, referencias ao labor do dia e, apanhando o roto paletó dependurado num cabide, despediu-se e saiu.

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Dias, semanas e meses se passaram. Humberto conseguiu a amizade de todos. Sua figura franzina, simpática, era digna de admiração. Não brincava, era serviçal, fazia o trabalho depressa e sem erros.

Ganhou a simpatia do chefe, que passou a melhor observá-lo.

“- Esse menino do Martins tem ido bem, não é, Josaphat?”.

“- Sim, senhor.”, respondeu o Tesoureiro da firma. E complementou:-

“- Trabalha com gosto, não perde tempo.”

“- Deixa estar. Na primeira oportunidade coloco-o aqui dentro e ponho outro no serviço de rua.”, disse o Seu Souza.

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O tempo corria, Humberto esforçava-se mais ainda, fazendo todo o possível para ser perfeito em tudo. Todavia, o serviço sempre apresentava embaraços, como o daquela terça-feira. Entrou no banco e dirigiu-se ao Caixa:-

“- Por gentileza, quer ver a duplicata da Cia. São Braz? Chapa 2559.”

O Caixa procurou-a no meio das outras. E disse-lhe:- “- Tem juros de mora. Vai pagar?”

“- De quanto é?”

“- Oitenta cruzeiros.”

Humberto meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro e quitou a duplicata.

Chegando ao escritório, Josaphat chamou-lhe a atenção:-

“- Mas você não devia ter pago esses juros! Por que não telefonou, indagando?”

Humberto, corado, não respondeu. Percebera o seu erro. E Josaphat continuou:-

“- Bem, desta vez passa. Mas lembre-se:- quando quiserem cobrar juros, taxas a mais, etc., não pague. Telefone primeiro, se informando. Muitas vezes o título nos é apresentado com atraso, impossibilitando-nos a sua liquidação na data do vencimento. Ou às vezes há qualquer duvida com a mercadoria, entregue fora do prazo combinado, etc.”

“- Observarei futuramente, Seu Josaphat.”, murmurou Humberto.

E observou mesmo. De outra feita, no Banco Agrícola, quiseram lhe cobrar juros de mora no valor de cento e vinte cruzeiros. Telefonou à firma, expôs a situação. Josaphat respondeu-lhe:-

“- É, de fato houve um atraso nosso. Mas deixe o título ai no banco. Não pague por enquanto. Conversarei com o Seu Souza. Você pode vir embora!”

Humberto, no ponto do bonde, matutou, matutou e não se conteve:- voltou ao banco.

“- Por favor, queria falar com o Chefe da Cobrança. Pode ser?”

Logo surgiu um homem baixote e gordo:-

“- Sim senhor, jovem. O que deseja?”

“- O seguinte:- a duplicata da Cia. São Braz está retida no Caixa:- mora de cento e vinte cruzeiros. Como querem nos cobrar esses juros se recebemos a mercadoria com bastante atraso?”

Na verdade ele nem sabia se assim tinha ocorrido. Mas continuou firme:-

“- Logo, não podíamos efetuar o pagamento na data do vencimento, o senhor não acha? Ainda mais que mantivemos entendimentos a respeito com os fornecedores.”

O Chefe da Cobrança observou-o com um riso velhaco, respondendo:-

“- Vou estudar o seu caso. Espere um pouco.”

Minutos depois Humberto saia do banco, sorridente, com a duplicata quitada na pasta, sem juros. Tinha ido à forra! E com juros!

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“- Ah, mãe, hoje não vou à aula. Estou “pregado”; Andei a cidade toda. Muito serviço!”

“- Não se afobe, meu filho. Faça o que puder. Se sobrar, paciência. Serviço nunca acaba mesmo. Lembre-se das palavras do médico.”

Sim, ele as recordava. Como poderia esquecê-las?

“- ... mas, minha senhora, o garoto está muito anêmico! Vermes, etc. E depois ... bem, tiremos uma chapa do pulmão.”

“- Mas, doutor, é tão grave assim?”

“- Não sei, minha senhora. Só a chapa o dirá. Só digo que o esforço que ele vem fazendo não é adequado para a sua idade. O organismo não resiste. Tem que parar de estudar, de trabalhar, de jogar futebol, etc. ... repouso absoluto.” Felizmente, Deus é bondoso, generoso. Filho mais velho duma família de nove ... – A chapa foi normal. Satisfação, risos de alegria tomaram conta da sua gente. Isso há dois anos atrás. Fizera um tratamento rigoroso:- repouso, alimentação forte, tônicos, etc. . Recuperou-se totalmente, chegando a engordar alguns quilos até. Antes não passava dos quarenta e dois. Agora, para surpresa sua, ao trepar na balança o ponteiro subia preguiçosamente até a casa dos cinqüenta e dois!

Mas perdera o ano no colégio, o emprego anterior e a pratica do futebol. E logo ele, artilheiro máximo do infantil do clube do seu bairro:- saíra com um saldo de sessenta “goals”. E olhem que isso em apenas oito meses de permanência no quadro de futebol.

Sentia uma grata recordação daquele tempo. Agora, novamente estava empregado. Gozava de boa saúde, apesar do físico diminuto... E o complexo da doença o abandonara de vez. Porém, o futebol não voltara a praticar. E sentia muitas saudades da bola! ...

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Tic, tac, tic, tac … O barulhinho do despertador, no silencio da noite, alertou-o. Olhou para o relógio em cima da cristaleira:- vinte e três horas! O que? Mas, tão tarde assim? Ainda agorinha sentara-se à mesa para estudar um pouco. As aulas haviam terminado um pouco mais cedo naquela noite e ao chegar em casa aproveitara o tempo.

Recolheu os livros espalhados sobre a mesa, os cadernos, e guardou-os cuidadosamente na estante. Vestiu o pijama, recitou a prece costumeira e caiu na cama.

Teria de levantar-se cedo no dia seguinte. Seria mais um dos movimentados sábados da sua vida profissional:- serviço de rua à beça!

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“- Bom dia, amigo Humberto!”

“- Heim? ... Oh, “professor” Renato! Como vai?”

Abraçaram-se. Renato era um dos seus poucos mas grandes amigos. De todas as horas. E mais que amigo:- era guia, professor, conselheiro, tudo. Assim o considerava Humberto.

“- Bem, vamos a um cinema hoje? É domingo. Já estudaste bastante?”

“- Um pouco, Renato. Mas, sente-se. Afinal que filme veremos?”

“- No Cine Palácio está programado para hoje uma reprise de um filme sueco. Eu o vi há três anos. Chama-se “Brinquedo Proibido”.

“- E gostou?”

“- Muito. Simplesmente maravilhoso. A propósito, Humberto, precisas de distração. Muito trabalho, muito estudo, etc., tudo isso tem um limite. E por falar em trabalho, como vais na Cia. São Braz? Saíste do serviço de rua?”

“- Ainda não, Renato. O chefe prometeu-me um lugar no escritório, mas somente quando surgir oportunidade. Espero com ansiedade, amigo. Olhe que já tenho um ano e dois meses de casa. Preciso “trocar de roupa não acha?”

Renato irrompeu numa gargalhada contagiosa.

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Humberto sentiu uma grande alegria quando Josaphat lhe confidenciou:- Seu Souza estava à procura de um substituto para ele. Finalmente, graças a Deus! Deixaria o serviço, o estafante serviço de rua!

Depois do almoço desceu para a cidade. Trabalhou correndo. Algo lhe dizia que um fato importante iria marcar aquele dia.

Ao chegar ao escritório esperava-o um rapazinho claro, seu conhecido no bairro. Seus pressentimentos haviam se confirmado.

“- Humberto, venha aqui por favor.”, chamou-o o Seu Souza. Aproximou-se, o coração disparado.

“- Comece a ensinar o seu serviço a este garoto. E depressa, pois preciso de você aqui dentro. Tem uma semana para praticar com ele, sim?”

Um indizível contentamento se apoderou de Humberto. Sentiu ímpetos de abraçar o patrão. Mas apenas pode lhe dizer:-

“- Sim senhor, Seu Souza. E muito obrigado! ...”

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Arnaldo ensinou-lhe muito afoitamente a sua incumbência no escritório. No mesmo dia foi para o “guichê” da firma, para atender ao pessoal que demandava da fabrica e terceiros. Operários, representantes comerciais, um mundo de gente. Uns pretendiam falar com o gerente, outros pediam férias, aqueles a demissão, outros, ainda, doentes, requeriam o seu afastamento do trabalho e os desocupados pediam emprego na Companhia. Humberto, solicito e prestativo, atendia a todos. O telefone tocava, ele corria a atender:-

“- Alô ... Sim, é da Cia. São Braz. O gerente? Um momento, por gentileza.”

Dirigia-se à gerência.

“- Doutor, chamam-no ao telefone.”

“- Diga que não estou.", respondia secamente o Dr. Parreiras.

Finalmente, dezessete horas. Um dia fatigante!

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Depois disso, sucesso completo! Vieram em curto espaço de tempo as promoções, os melhores dias. E os funcionários mais velhos olhavam, com inveja talvez, a disposição e a capacidade daquele jovem de apenas dezessete anos. Do “guichê” para a Secção do Pessoal, desta para o Departamento de Vendas ... e assim por diante.

Agora ele está contente. Feliz por ver os seus esforçados coroados de pleno êxito. Satisfeito, pois, embora sofrendo, aprendeu muito no serviço de rua. No “guichê” mais ainda. Era uma janela para o mundo.

Viu homens, realmente necessitados, pedirem e não alcançarem. Viu hipócritas, bajuladores, sob o véu do fingimento prejudicarem pobres inocentes. E viu proteção e favores concedidos a quem não carecia. Tudo através do vidro silencioso do “guichê”.

Presenciou tudo aquilo calado, apenas observando e tirando suas conclusões. Aprendendo a dura lição do sofrimento na escola da vida.

E agora, à máquina, termina a sua estória. A estória destas páginas. Relembra agradecido os espinhos e os contratempos do cargo de mensageiro, estafeta ou “office-boy”, como era chamado.

E ... adeus serviço de rua, suplício dos nossos dias! Adeus para sempre! ...

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B.Hte., 1957

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 18/03/2010
Reeditado em 18/03/2010
Código do texto: T2145821
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