Neurose

Neurose

Dona Constança, minha professora primária, corpulenta de voz alta e sempre rouca, parecia estar sempre à beira de uma síncope. Eficiente, comandava a turma com segurança e severidade.

As matérias por ela ensinadas fluíam de forma sequencial divididas somente pela hora do recreio, onde nas brincadeiras extravasávamos nossas tensões.

A atenção exigida pela professora era de minha parte extremada; por temê-la, nada perdia de suas aulas, das quais pouco aprendia, embora minhas notas lhe agradassem. Coisa que só pude compreender muito mais tarde.

Em tempo, pois quase me esqueci de citar um fato importantíssimo, que desde seu ocorrido me atormentou e moldou minha personalidade e meu caráter. O momento do lanche na sala de aula de uma escola pública, frequentada por crianças de classes sociais diferentes, preparava-me uma grande lição.

Nós, os alunos, crianças atormentadas por nossa professora muito eficiente e severa, não atentávamos para as diferenças sociais, que sequer sabíamos que existiam. Éramos iguais, pactuados em não descontentar a professora e aprender seus ensinamentos, mesmo não entendendo para que eles servissem. Éramos pares em nossos medos e nas nossas brincadeiras.

Naquela manhã, a senhora merendeira entrou pela sala com seu carrinho de lanches e iniciou de uma carteira a outra a distribuição dos acepipes. Um casadinho de biscoito de maizena com goiabada, acompanhado de leite achocolatado, uma delícia que esperávamos sob o olhar atento de nossa professora, educadamente em nossos lugares.

Cosme, um dos alunos que tinha assento próximo a mim, sempre melequento e desatento às aulas, era sempre vítima de prolongados sermões de Dona Constança. Ao receber o lanche da senhora merendeira, foi premiado com três casadinhos do biscoito com goiabada.

Ao ver o atendimento diferenciado ao colega, inocentemente questionei a diferença de tratamento ao colega de turma. Foi o pior momento de minha vida. Dona Constança, severamente ensinou-me, de uma tacada só, o que é diferença social, gulodice, ganância e pobreza. Como eu, um garoto de classe social privilegiada, que nunca passara fome, que tinha de tudo de bom e melhor, pleiteava merenda igual a do meu colega Cosme, um pobre menino que segundo nossa professora não tinha onde cair morto.

Cobri-me de vergonha e baixaestima, não consegui nem mesmo aceitar a guloseima, que joguei fora logo após a insistente merendeira, apesar de minhas negativas,a deixar sobre a minha mesa. Fato este que gerou novo sermão enfurecido de nossa digníssima mestra.

Deste dia em diante, jamais aceitei a merenda escolar e nunca mais dirigi a palavra a minha professora primária. E para afastá-la de mim, estudava suas aulas e conseguia boas notas. Percebia que meu desprezo a afetava, mas pouco poderia ser feito, não havia mais nada a salvar.

Este ocorrido e a disciplina com que persegui fazer a coisa certa moldaram de tal maneira minha personalidade que cresci com autocrítica exacerbada que atingia a todos a minha volta. Sofrimento e vergonha a cada erro cometido eram meus companheiros e às vezes alcançavam meus mais queridos, parentes e amigos. Uma vida perseguindo a perfeição, tão distante e escondida dos humanos.

“O sortilégio fora conjurado! ---Foi assim que fiquei sabendo o que é neurose.”

Alberto Daflon

Daflon
Enviado por Daflon em 16/03/2010
Reeditado em 18/03/2010
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