A Espera
Quando o despertador soou as três da madrugada, seu Francisco teve vontade de jogá-lo contra a parede, amaldiçoou o mundo e principalmente a cunhada, que tinha que buscar aquela hora na rodoviária. Sabia que lá fora estava um frio de rachar. Espreguiçou-se e virou de lado, tentando ganhar mais alguns segundos debaixo dos cobertores quentes, mas a mulher falou mais alto, cobrando-lhe a promessa de esperar Esmeralda na estação. Tomado pela raiva, o marido desejou que o ônibus capotasse ou batesse de frente em uma jamanta, bem na hora em que o motorista, vítima de uma súbita diarréia, foi obrigado a ir ao banheiro e teve o ônibus roubado por Esmeralda, que num acesso de loucura tomou o volante, deixando o condutor do veículo sentado no vaso sanitário de uma churrascaria na estrada. O aposentado imaginava a capa do jornal no dia seguinte, dando destaque à tragédia ocorrida. Felizmente não houve feridos, só o estrupício da cunhada de seu Francisco havia morrido.
O aposentado indignado embarcou em seu carro e se mandou para a rodoviária, percorrendo ruas geladas e desertas. O relógio de rua marcava um grau positivo, o que lhe fez lembrar da cama quente e amaldiçoar o diabo que estava por vir.
Seu Francisco não se importava de levantar cedo, mesmo no inverno. A vida inteira fez isso como proprietário de diversos negócios no comércio da cidade. O brabo, pensava, era tamanho sacrifício por uma pessoa que não lhe tinha a menor consideração. Desde o maldito dia em que conheceu Esmeralda, a bruxa passou a lhe criticar e fazer queixas à sua esposa. Falava mal de suas roupas, amigos, gostos e manias, isso sem contar as falsas hipóteses que levantava de que ele tinha uma ou várias amantes. Em uma ocasião flagrou a cunhada com a irmã na cozinha. A megera falava que aquela calvície devastadora, a enorme barriga, a estatura baixa e um membro pequeno não eram empecilhos para ele conquistar diversas vagabundas. – O que essas piranhas querem mesmo Edelvina, minha irmã, é o dinheiro – sentenciava a linguaruda categórica, como se fosse pós-graduada no assunto. A esposa concordava com todos os itens, menos com o da indumentária do marido, que segundo ela era de bom tamanho. A referência anatômica fez as irmãs relembrarem do dia da primeira comunhão de um sobrinho, quando seu Francisco, depois de ter exagerado na cachaça, cerveja e vinho subiu na mesa dos doces e fez um strip-tease. Apesar de todos implorarem pela interrupção de tão intempestivo gesto, o stripper retirou até a última peça, só interrompendo o improvisado show quando caiu em cima do pudim. Levantou-se constrangido, dizendo a todos que por sorte havia caído de bunda em cima de uma coisa mole. Com raiva, tentando atingí-lo em seu machismo, Esmeralda sentenciou: - membro assim portátil, só tem uma vantagem. Esperou a indagação dos convidados e completou: - dá para levar para qualquer lugar. Uma sobrinha recém-casada ao ouvir a tia, colocou o dedo indicador na boca e pôs-se a pensar, coisa que não fazia muito bem a ela ao mesmo em que respirava e respondeu à megera que o pênis do esposo era bem grande e ele também o levava para todo o lugar, o que fez Esmeralda, completar: - então, não tem vantagem nenhuma. A partir desse dia, estava declarada a guerra entre os dois.
Absorto em seus pensamentos, o motorista só se deu conta de que havia feito duas roletas russas, quando cruzou o segundo semáforo no vermelho. Tentou parar de pensar na serpente, mas os dias que vinham pela frente eram tão terríveis, que ele já nem se importava se no próximo cruzamento um caminhão o pegasse.
Sua idéia ganhou força ao lembrar do rosto da cunhada, quando desembarcasse do coletivo. Sempre de cara amarrada, uma face de mártir, de vítima sabe lá do que, onde um tímido sorriso de alegria ou agradecimento era um ato descomunal, impossível de ser conseguido. Pior eram os seus assuntos. Depois das reclamações da viagem, contaria-lhe das tragédias ocorridas em sua cidade. Tinha verdadeiro fascínio pela desgraça dos outros. Após, falaria mal de todas as suas conhecidas, porque só ela é que prestava no mundo. Logo a seguir, diria que a filha da vizinha estava grávida e que o filho do dentista era gay. “Ah, se essa bruxa arrumasse um homem! No outro daria gargalhadas e esqueceria a vida dos outros” – pensou o cunhado cheio de uma satisfação que lhe consolou por alguns instantes de seu triste destino.
Chegou ao terminal vazio. Apenas quatro balcões de companhias funcionavam. O frio desumano castigava um indigente que dormia no chão, enrolado em uns panos rasgados que há muitos invernos lhe serviam como cobertor.
O funcionário da empresa informou seu Francisco, que devido a uma falha mecânica, o ônibus atrasaria em mais ou menos uma hora. O aposentado lamentou, mas resolveu esperar. Não compensava voltar em casa, deitar na cama macia e quente, dormir para acordar e fazer tudo de novo. Isso sem falar na gasolina que gastaria. O jeito era ficar por ali. Pior era lá no ônibus, se a cunhada resolvesse conversar com alguém. – Coitados dos passageiros – refletiu, sentindo-se conformado. Sentou num banco em um canto, tentando se proteger do vento que aumentava de intensidade, encolheu-se para suportar o vento que parecia cortar, admirando os luminosos das lojas e lanchonetes fechadas. Sua atenção foi desviada por um ônibus, que chegava do centro para o sul do país. Desembarcou apenas uma linda mulher. Seu Francisco acompanhou-a com o olhar, imaginando o que aquela morena faria, àquela hora, na cidade adormecida. Talvez, chegasse a um aconchegante apartamento, onde um amante a estaria esperando para uma fogosa madrugada de amor. Sentiu uma excitação por debaixo das calças, lembrando-se do dia que para matar um desejo de estudante seminarista, dirigiu-se a um cinema pornô no centro da cidade. O carro com problemas mecânicos foi uma bela desculpa para poder realizar seu sonho. Caminhou apressado pelas ruas do centro, como se fosse um adolescente. Ao ver o tamanho da fila, pensou em desistir, com medo de que algum vizinho o visse naquele antro de perdição, como padre José se referia a qualquer coisa relacionada a sexo. Mas, agora, estava ali, tão perto, não podia recuar, talvez não houvesse outra oportunidade. Sempre ouvira falar de tais filmes. Tinha que matar sua curiosidade. Entrou e saiu da fila duas vezes. Caminhou até a esquina a espera de que ela diminuísse. Na certa, em cima da hora, não haveria ninguém e ele compraria seu ingresso, sem ser notado. Quando conseguiu, não pode deixar de comemorar, esfregando as mãos uma na outra. Levou um susto ao ver o coroinha, ajudante do padre José, e dois seminaristas, cruzando seu caminho em direção à bilheteria. Colocou o chapéu em frente ao rosto e apressou-se em entrar na sala de exibições, sem que eles o vissem.
Satisfeito, assistiu a coisas que nem pensava que existissem. Prometeu a si mesmo voltar outro dia. Estava fascinado por aquelas mulheres, posições e algo de animal e selvagem que o excitava. Ao sair, sentiu-se deprimido por ter vivido sem ter descoberto e feito o sexo da maneira que a tela lhe revelara. Suas divagações foram interrompidas pelo olhar de surpresa e constrangimento de Horácio, o coroinha, e seus dois colegas. Antes que alguém perguntasse alguma coisa, o rapaz foi logo explicando a seu Francisco, que eles estavam ali em uma missão secreta e oficial a mando do padre José. Mesmo sem seu Francisco querer saber que raios de operação secreta era aquela, viu o rosto corado de Horácio aproximar-se do seu e uma voz trêmula e baixa confessar-lhe o objetivo de tal missão: - padre José quer saber se alguma das atrizes desse filme do diabo são lá da paróquia. Logo depois, os três saíram correndo sem ao mesmo se despedirem do aposentado.
Duas horas mais tarde, seu Francisco buscou o carro no mecânico. À noite estava tão excitado, que a mulher feliz da vida tentava lembrar-se qual fora a última vez em que vira o marido assim, com tanta vontade, variando nas posições, inventando coisas novas que ela nem sabia que existiam. Só mesmo na lua-de-mel, quando ela ainda não conhecia nada daquilo. Mas, refletindo melhor, chegou à conclusão que nem na lua-de-mel, o velho Chico estava tão caliente.
No outro dia, quando ela ligou satisfeitíssima para Esmeralda, começaram as suspeitas de que o canalha tivesse uma ou até mais amantes. As revelações de Edelvina de que eles haviam feito sexo tirando todas as roupas, como animais selvagens e sem apagar as luzes, não deixavam dúvidas à irmã solteira: havia vagabunda na jogada. Mas, quando Edelvina lhe revelou, que eles transaram na mesa da cozinha, embaixo do chuveiro e ele lhe pediu um strip-tease, a mulher teve um troço. O desmaio foi ouvido pela esposa de seu Francisco do outro lado da linha, que imediatamente ligou para a vizinha da irmã, implorando que ela socorresse Esmeralda, encontrada desfalecida ao lado do telefone.
Seu Francisco lembrava de sua aventura no cinema com saudades e carinho. Colocou as mãos em forma de concha junto aos lábios e as soprou, tentando aquecê-las. Neste momento, chegou um novo coletivo com destino à fronteira. Desceu apenas um casal. Pelo sotaque italiano da mulher, o aposentado teve a certeza de que eram da serra. Pensou que aquela hora ainda não haveria ônibus para a região. Ficou imaginado o que aqueles dois fariam. Poderiam ir a um restaurante de sopas ou a um bar, beber uns conhaques para se aquecerem do frio. Talvez, tivessem algum parente e chegassem de surpresa procurando abrigo da temperatura baixa.
Um ônibus da Argentina para São Paulo fez com que ele lembrasse da semana que passou com a esposa em Bariloche. Notou que uma passageira o observava. Na certa, estava comovida por vê-lo ali, desabrigado, tremendo de frio. Talvez, quisesse até confortá-lo com uma coberta. Lançou-lhe um tímido sorriso, não correspondido. Dentro do veículo, a mulher esfregava as mãos, dando graças a Deus pela mãe ter insistido para que ela levasse a grossa coberta que a agasalhava.
O aposentado examinava um por um dos rostos sonolentos daqueles passageiros, revelados pelas janelas do ônibus leito. Mas, seu devaneio foi logo interrompido pela chegada de um novo veículo. Este vinha de Santiago do Chile. Desembarcaram cinco pessoas, que logo foram analisadas pelo homem sentado no banco. Onde iriam? O que fariam aquela hora na cidade tão fria e deserta? Olhou para o relógio que marcava quatro horas. Voltou a refletir sobre os passageiros que desciam. De onde vinham? Para onde iriam? Para que bairro? Casa, apartamento ou hotel? Refletiu sobre a solidão e o destino das pessoas. Iriam trabalhar ou estudar na manhã seguinte? Quem sabe ficariam na cama quente até mais tarde, plano que ele tinha assim que largasse a cunhada em casa?
Um quinto coletivo lhe fez aumentar suas indagações, que logo foram interrompidas pela presença do funcionário da empresa de ônibus, que atônito veio ver quem era o homem, o senhor do qual todas as pessoas que passavam pelo balcão da companhia falavam, perguntando-se se esperava alguém? Se tinha casa? Família? O que estaria fazendo ali, sozinho, naquele frio?