LIBERTÉ

ela sorriu e então disse - em tom sóbrio:

- sinto uma inveja de você, ana maria, mas veja bem, é daquelas invejas boas,

de quem só quer o bem, você me entende?

- não, inveja boa? não entendo. inveja é inveja oras!

- eu sabia que você não entenderia, eu penso que inveja boa, é quando não se quer o mal.

eu a interrompi bruscamente

- mas queria estar no platô de quem se inveja.

- não é bem assim...

- inveja é inveja e ponto. mas na sua balança, a admiração e seu amor por mim falam mais alto, é só isso. e então a

inveja fica em segundo plano.

- eu não vejo por esse lado, você é sempre tão bruta em suas colocações. minha inveja se divide em duas: a boa e a ruim.

ela me irrita quando tenta se colocar num patamar de elevação espiritual, como se não sentisse o 'puro' ciúme, como se

não desejasse a morte de terceiros, mesmo que por alguns minutos, ou como tenta descrever a inveja num utopismo

decadente.

- marina, você sente ciúmes de mim?

- não, acho que não.

- eu sinto ciúmes, principalmente quando seus amigos jornalistas, começam a dialogar inconclusivamente

por horas, e vocês tem tantos assuntos...

marina abre um sorriso de menina, e parece sentir-se satisfeita com meu comentário.

- ana, não diga isso. não é preciso ter, você sabe.

- eu sei, mas sinto. e estou no meu direito.

- acho que me sinto também deslocada, quando você está com ele.

- com quem, com jorge?

- sim - abaixa a cabeça e começa a olhar suas mãos - principalemente quando sinto que ele não me quer aqui,

e você sabe que ele não faz questão de esconder isso. fico imaginando o que vocês fazem quando eu saio, ou quando vocês

se encontram por acaso, se é que o acaso existe.

me senti confortável com a insegurança de marina, era como se ela estivesse, agora, em meu patamar. ela bebia a

água que eu bebia, e desfrutava de pensamentos miúdos, e do velho ciúmes dos mortais.

- querida, você bem sabe que somos velhos amigos; entendo esse ciúme talhado.

- não é ciúmes, eu só penso. eu só me sinto um pouco de lado; assim como você deve sentir com meus amigos.

- pois bem, não me sinto 'de lado'. eu sinto é ciúmes.

- eu te acho tão engraçada.

- eu? engraçada? mas, oras...

- você quer me persuadir, e tenta me seduzir com suas idéias.

se ela entendesse que eu só quero que ela saia do útero da mãe.

- marina - disse eu - desculpe-me, não quero te persuadir, longe de mim, quero que pense por você. não quero

influenciar-te.

- não, ana, não é isso. eu gosto de ouvir seus pontos de vista, mas ás vezes parece que você é categórica, taxativa

de mais; como se o mundo todo sentisse o que você sente, da forma como você sente.

não sinto raiva de marina ter pensamentos comprimidos, oprimidos, comprensados; 'ela é uma menina, ela ainda é uma

menina'

- desculpa se te chateio, não faço por mal.

marina pisca o olho esquerdo, como faz sempre quando está resignada.

- que horas são?

- não sei, vou olhar. tem pressa?

- tenho, vou sair com maurício; ele quer me mostrar um quadro da exposição de delacroix, que ele adora; sabe bem como

é maurício, obesessivo com seus vícios, se tratando de delacroix então...

- são 14:25; já vai?

- sim. combinei com ele ás 15:00 em frente ao café minuano, vou passar em casa primeiro, preciso pegar um agasalho.

- não precisa arrumar a cama. vá, antes que se atrase. se tivesse um casaco que lhe caísse bem...

- pois então eu vou. seus casacos são muito extravagantes, só quem pode usá-los é você, ana. posso voltar? eu posso

durmir aqui, hoje?

- não, jorge e eu temos de revisar um roteiro; será maçante pra você ficar. por que não sai com ivicht?

- talvez. tenho que ir, depois nos falamos então.

beijo seco, típicamente enciumado. braços pendentes, de quem possui raiva velada.

- se cuida, marina.

- bom trabalho, ana.

'menina, ela ainda é uma menina - ainda está incubada no útero'

Berenice
Enviado por Berenice em 12/03/2010
Código do texto: T2134875
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.