Como um morto empata fadas

COMO UM MORTO EMPATA FADAS

DAQUINO PORTO

I – Sinistra Geometria

Eram perto das três da manhã. Uma ambulância piscava impedindo o trânsito na estreita faixa de rodagem, dez metros a oriente do ponto de cruzamento da perpendicular ao Douro, tirada pelo vértice inferior do cubo da Praça da Ribeira, com a rua.

Pela rampa de acesso ao rio dois homens rãs retiravam da água suja um outro homem todo vestido de couro negro, corpulento, moreno, de bigode, cerca de 30 anos. O homem deixava-se arrastar como que contrariado, completamente inerte, sem dar ajuda aos homens rãs ou sequer lhes dirigir a palavra. No rosto uma expressão de grande indiferença. Os olhos semi-cerrados, pupilas em midríase, fitavam imóveis o infinito.

O Costa Malcriado (sobrenome meritoriamente adquirido), que observara a cena, súbita e aparentemente desinteressou-se dela e atravessou distraidamente a rua apinhada, o que o fez chocar, ao subir o passeio, com um parzinho enlevado e, até ali, alheado do mundo. Perplexo, só então formulou alto e sem querer a conclusão que tirara do que vira: “o gajo está totalmente morto”.

O macho do parzinho, Artur de sua graça, estremeceu com o encontrão, separou-se da potencialmente prometida fada da noite e, aproveitando o intervalo para satisfazer a curiosidade mórbida, dirigiu-se à ambulância. Nunca tinha visto um morto ao vivo e ficou impressionado.

Na volta a sua fada, que, menos enlevada do que parecia, não tinha perdido de vista o carregamento da ambulância, e isso mais o encontrão deram-lhe o fastio para continuar o enlevo, tinha desaparecido.

II - Arte cubista tapa olhos

“Podia ao menos ter pedido desculpa” soou uma voz uterina quase ao ouvido do Costa, ia ele a subir, pensativo, pelo seu lado direito, os degraus da rua de S. João. A voz, seguida da figura da dona que viu ao voltar a cabeça, esvaziou-lhe o interior e impediu-o, por curto lapso de tempo, de tomar consciência de que tinha à frente dos olhos a miúda enroscada ao gajo em que tinha embatido sem querer e de que ela era tal e qual o que o médico lhe receitara. Mal se apercebeu da qualidade do que tinha à frente disse-lhe: “Se eu tivesse micado que o caramelo com quem estavas descolava com tanta facilidade e tu vinhas ter comigo logo a seguir, até vos tinha dado o empurrãozinho mais cedo. Peço desculpa pelo atraso”. “Para homem estás a pensar depressa demais” disse a rapariga com um ar vagamente satisfeito. “E agora que te estou a ver melhor até já estou a pecar em pensamento …” disse o Costa. “Segura os cavalinhos mas vamos subindo e conversando já que levamos o mesmo caminho” retorquiu a miúda. “Oh se levamos” murmurou o Costa … e começou a subir a rua com a fada ao lado.

Lá em baixo, o Artur parecia uma barata tonta. Voltara ao sítio onde a ambulância estivera, na esperança vã de encontrar a rapariga misturada com o magote de gente que lá ficara. Não podia ver dali o sítio onde a sua fada da noite parou ao começar a falar com o Costa, o gigantesco cubo - chamado escultura por ter sido um escultor que o projectou - tapava-lhe a visão. Para cúmulo do azar descobriu que lhe tinham afanado a carteira. Cabisbaixo, o Artur iniciou o penoso caminho a pé para casa.

III -A moca do morto

Quando a ambulância arrancou da Praça da Ribeira, o acompanhante do motorista garantiu: “o gajo está limpo, não se aproveita nada”. “Vê melhor”, disse o condutor que fazia circular a viatura com uma certa lentidão “e se for verdade acho que é de aproveitar ao menos o casaquito que o couro está bom. E despacha-te”. O ajudante levantou o braço do morto para puxar uma manga do casaco de couro, fez o mesmo ao outro, voltou ao primeiro … o casaco era muito justo.

“Parece que estás a fazer respiração artificial ao homem” disse o motorista. E parecia. Uma golfada de água suja saiu-lhe da boca. O ajudante não se impressionou e virou-o de barriga para baixo para lhe passar o casaco por cima da cabeça. Finalmente sentou-o para acabar de lho tirar; o que conseguiu. Mal acabara de agasalhar o casaco debaixo do banco da frente veio da maca, numa voz cava, “Tá frio”.

O condutor, assustado, travou tão bruscamente que a ambulância derrapou, a roda de trás embateu lateralmente no passeio e a porta traseira abriu-se. O morto ficou sentado na borda da ambulância com os pés para fora e a cabeça a abanar. Ainda confuso, gemeu “está tudo ganzado”. E saiu a cambalear para a rua que começou a descer por ser mais fácil enquanto tomava a firme resolução de não comprar mais nada ao mesmo fornecedor. Dava-lhe uma moca horrível! O condutor da ambulância recuperou entretanto a presença de espírito e disse ao ajudante: “Piremo-nos irmão! O gajo se não quiser vir que não venha. Melhor para todos”. E arrancou com o carro; eram três horas e trinta e cinco minutos.

À mesmíssima hora o Artur subia penosamente a mesmíssima rua que o morto descia não menos penosamente. O Costa, esse, estava sentado no último degrau do cimo das escadas do Palácio da Bolsa, encostado ao corrimão de pedra, com a rapariga sentada no mesmo degrau e fazendo do Costa encosto.

IV - O Triângulo das Bermudas

Todos os intervenientes principais da intriga se encontravam agora nos vértices de um triângulo equilátero com setenta a oitenta metros de lado, tão propício ao desastre como o triângulo das Bermudas.

No vértice mais próximo do rio, o Costa com a garota bem encostadinha a ele; os outros dois iam transformando o triângulo em isósceles, com o lado menor a tender para zero à medida que um subia e o outro descia a mesma rua. Dois vértices em movimento e um parado … ou quase, porque o Costa mexia e a fada também … ao de leve e sem mudança de posição do centro de gravidade; cada um na perna do outro, só para facilitar a comunicação verbal.

Praticamente sem se verem, cegos do cansaço e dos azares da noite, o Artur a subir pelo lado de fora do passeio e o ex-morto, encostado à parede do mesmíssimo passeio, a descer a rua de Belomonte, iam cruzar-se quando este último, obedecendo a um impulso imprevisível da ganza ainda em vigor, varreu o passeio e foi de encontro ao Artur. Juntos caíram, juntos rebolaram pela rua abaixo virando a esquina para a rua Ferreira Borges e juntos se levantaram amparando-se agarrados um ao outro. Quando se encararam, o Artur, ao reconhecer o morto, lançou um uivo lancinante.

Irritado com o berro que perturbava o sossego da noite e até podia fazer vir à rua algum bófia da esquadra próxima, o Costa interrompeu a doce modorra da filosófico-pragmática conversa que mantinha, levantou-se, dirigiu um primeiro olhar à porta da esquadra onde não observou a menor reacção o que o deixou inquieto por não poder prever o que poderia seguir-se, localizou a origem do berro e vociferou “Já não há sossego em parte nenhuma”.

V – Assembleia Geral

“É melhor sair daqui, para o que der e vier, e mudar de poiso que isto aqui já não dá privacidade … e pode piorar” continuou o Costa.

E, dando a mão à companheira, desceu lépido as escadas em sentido contrário ao do barulho (e da esquadra). Mas mal saltou o muro-corrimão e se encontrou no passeio, sempre de mão dada, subiu, curioso, a rua, em direcção ao par que se encontrava numa caricata situação.

Ainda agarrados um ao outro, o Artur abria e fechava a boca como se quisesse falar e ou respirar sem o conseguir e o ex-morto abanava-o carinhosamente e repetia com voz paternal: “Oh pá juro que não foi por mal! Maldita moca! Desculpa lá!”

Vê-los de perto paralisou por sua vez o Costa que muito bem reconheceu o morto, melhor ainda o abalroado Artur e ficou totalmente descoroçoado.

Já tinha construído na sua cabeça todo o próximo passado do cadáver quando vira tirarem-no da água. Tinha-o visto trocar um lençol de cinquentinhas pela mercadoria habitualmente marafada por um conhecido fornecedor, ajuda provável, isolada ou não, a que caísse ao rio enquanto mijava nas tainhas.

Já tinha até aventado umas hipóteses de rentabilizar esses conhecimentos probabilísticos; e agora de repente o fantasma reincarnava, falante, mesmo à sua frente. Pior ainda, arrastara com ele o par da fada que libertara pouco antes.

VI - A fada do morto

“É a terceira vez que o morto empata a fada” reflectia o Costa; a primeira quando, por intermédio do seu próprio empurrãozinho, a fizera separar-se do caramelo do Artur que se fosse número daquele totoloto era o suplementar. Tendo sido em seu favor, essa perdoava-lha. A segunda já não: iniciada a conversa depressa intuiu e muito bem que havia qualquer coisa ligada ao morto que lhe estava a dificultar a ida para o quente com a ex-acompanhante do empurrado Artur. E agorinha mesmo, agravada pela incómoda companhia, uma terceira vez!

Com o cadáver ambulante agarrado ao Artur, ambos à sua frente e da fada que levava pela mão, ia haver merda no beco, oh se ia! Só uma intervenção divina o evitaria. E para deus, mesmo de segunda, sentia-se na altura mais fraco que nunca.

A companheira sentiu a mão do Costa gelar à volta da sua; retirou-a devagar e com as suas duas esfregou os olhos. Abanou a cabeça. Não; não estava a sonhar.

Trinta e seis horas antes o morto estava com ela, bem vivinho, todo nu e bem quentinho na cama tantas vezes partilhada; é verdade que ameaçava com a própria morte se ela continuasse a querer deixá-lo e não o ajudasse a sair duma “má” em que entrara. Mas não há mulher que acredite na morte de um gajo em pelotas, com uma mão a passear-lhe nas costas, outra a amarinhar-lhe pelas coxas acima e a língua a imitar uma cobra em busca da toca.

VII - Os três da fada

Ela não sucumbiu nem às ameaças de suicídio nem à língua itinerante e manteve-se a dizer que precisava de mudar de ares, o gajo que saísse da má pelo seu pé e que se quisesse apagar-se fizesse o favor.

E era o que estava a fazer, a mudar de ares, com um tipo pouco expedito, é certo, mas bem fresquinho – o Artur – que se fosse mais despachado já estaria a aconchegá-la entre os lençóis em vez de se exibir lambendo-a ao ar livre e sujeitando-os ao encontrão que não só os descolou como a fez vislumbrar, com um leve sentimento de culpa, encharcado e inerte, o ainda na antevéspera bem quentinho.

Um súbito desejo de vingança dos dois, do morto e do vivo, mesmo mitigado pelo tal vago sentimento de culpa, apontou-lhe o do encontrão como única saída exequível para aquele repente; e mesmo que esse, de físico, não parecesse grande espingarda, a verdade é que a responder-lhe e a despachar propostas, que ela ia adiando nem sabia bem porquê, parecia uma metralhadora.

Em má hora se deixara arrefecer, durante a conversa com o Costa, tolhida pela visão do cadáver que não lhe saía da cabeça e lhe paralisava o feminino racionalismo que cultivava.

Na vida, pequenos erros de programação pagam-se caros e agora em vez de um problema tinha os três, todos ao pé dela, incluindo um morto ressuscitado menos de uma hora depois de o ter visto cadáver. E a experiência demonstra e a teoria confirma que duas curtes, de repentemente ao pé da mesma curtidora já são uma ameaça de cagarim capaz de acordar um urso em hibernação, quanto mais três!

Valeu, para os primeiros momentos, estarem todos, visivelmente em estado de choque; até ela. Mas nunca até então quisera tanto ser uma boa fada!

VIII - Um quarto para as quatro

Uma boa fada, com ou sem varinha de condão, podia fadá-los a todos no mesmo instante, a tempo de impedir querelas que acordassem o piquete da esquadra quase ali ao lado e levasse os quatro a ter de ir dormir à choça.

Não podendo fadá-los tinha de espevitar todos os centros raciocinantes do único cérebro de mulher presente, já que, como ela pressentia e fora recentemente demonstrado pela ciência, eram múltiplos, ao invés dos homens que só tinham um e por isso eram menos rápidos e adaptáveis. Precisava de ter pelo menos quatro para pensar por todos; e tinha: os três para pensar por eles e mais um para ela.

Por isso foi a primeira, se não a falar, pelo menos a dizer alguma coisa: “É um quarto para as quatro” (e por aqui se vê que era moura) “ vamos ao Cosa Rio que é sempre a descer, fica à desamão do cubo que deu galo a todos, serve coisas quentes e eu conheço lá um tipo que nos fia se for preciso e arranja maneira de secar o Júlio” (e ficamos a saber o nome do cadáver adiado) “de quem vamos dizer que apanhou em cheio com um saco de água na rua dos Canastreiros. Vai ser uma bela noite de paleio porque somos uma malta porreira e eu gosto imenso de vocês todos”.

Deu uma mão ao Costa, outra ao Artur e disse ao Júlio, que ficara ligeiramente atrás: “Vai à frente que não tenho mão para ti”.

Como cachorros à volta da dona lá seguiram os três, disputando-lhe a atenção, satisfeitos e cordatos, a caminho da ceia. À mesa a conversa rolou sobre esferas, mas essa é já uma outra história. Um dia contamos.