II

                                                            O DIPLOMA

1. CENTRO SANTO ANTONIO DE PÁDUA
ANOS DE 1953,1954 E 19555

“ Que saudades da professorinha
Que me ensinou o Be-A-Bá”
                                     Ataufo Alves

PARA CLARA COELHO


Clara Coelho era uma moça bonita, que usava uma saia de tecido xadrez.
Isso é só o que lembro da figura dela. O resto das minhas lembranças são as coisas que ela ensinou.

“Ficavas na porta da pequenina sala
Até que o último dos alunos entrasse.
Aquela profissão de mãe de alheios filhos
Como tu ninguém soube assumir melhor.
Aquela ternura de ensinar sem obrigação,
Mostrando nos mapas os lugares onde estávamos
E s letras pelas quais nos conhecemos,
Aquele olhar severo que expulsava os demônios
(Pensamentos bastardos que queriam seduzir-nos)
Trocando-os por Geografia e História
(Informações que ampliavam nosso espaço)
E injetava em nós todos a esperança.
Foram as chaves que abriram a nossa alma."

"Ah! Dona Clara Coelho!
Tudo mudou desde aquele tempo teu.
Até o país depois mudou de capital.
Mudei de roupa, de tamanho e de desejos,
Mas conservei os fundamentos que me destes
E que expresso na gratidão desta lembrança."

"Passar hoje em frente ao prédio da Senador Dantas
É cavalgar num torvelinho de saudade.
É ver de novo os olhos marotos, porém ternos
A faiscarem como estrelas orgulhosas.
No velho muro, entre o musgo, a ternura e o tempo,
Há uma frase invisível rabiscada
Que só eu vejo, e os alunos que ensinastes.
―Aqui ensinou Clara Coelho.
Quem aprendeu ainda sabe."

PARA GERALDINA PORTO WITTER

Sim. Quem aprendeu naqueles dias ainda sabe. Sempre saberá, por que sabedoria, a verdadeira sabedoria não se perde. Ela também está sujeita á lei da conservação das massas. Se transforma, modifica, mas nunca se perde. E Dona Geraldina sabia. E como sabia. Ela sempre soube que eu era um aluno indisciplinado. Talvez soubesse que era eu que escrevia aquelas obscenidades nas paredes e nas portas dos banheiros.
Sabia também que eu puxava os cabelos da japonesinha Alice, que vivia falando bobagens para a lourinha Nília, que não deixava a menina Nilze em paz, que trovava sopapos com o Nilton Gordo. Ah! Talvez soubesse que eu tinha uma paixão incontrolável pela Jacira, aquela menina de dentinhos tão branquinhos que pareciam teclas de piano. Não era segredo. Todos os meninos da classe eram apaixonados por ela.
Dona Geraldina sabia tudo. Sabia todas as capitais dos estados brasileiros e de todos os países do mundo. Sabia de cor e salteado as letras de todos os hinos que homenageiam as nossas datas nacionais. Na entrada da aula cantávamos o Hino Nacional:

!”Ouviram do Ipiranga às margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade em raios fúlgidos
Brilhou no céu da pátria nesse instante....”

E aí ela explicava o que eram “margens plácidas”, “brados retumbantes”, “raios fúlgidos” e outras expressões do hino. (E com nove anos de idade eu já sabia o que queria dizer “Se o penhor dessa igualdade/ Conseguimos conquistar com braço forte.”).

Mas não é só isso. Na saída das nossas classes cantávamos o hino da República. Eu só me lembro do refrão:

“ Liberdade, Liberdade,
Abre as asas sobre nós.
Das lutas nas tempestades
Daqui ouçamos sua voz..”
(Quem é que ainda sabe cantar isso hoje?)

E ai de quem não cantasse com as mãos no coração. Ternos castigos ela nos aplicava. Castigos de mãe que verdadeiramente ama um filho. Um olhar de reprovação. Um gesto de desagrado. Um balançar de cabeça. E nós sabíamos que estávamos fazendo alguma coisa errada. E voltávamos a cantar com gosto. E ela cantava conosco, sua voz cada vez mais alta, destacando-se nos agudos. E nós, pequeninos, olhando aquela

“ Figura pequenina escondida atrás da mesa.
Alguns de nós talvez já tivessem a tua altura.
Mas no pequeno arbusto que tu eras
Retinhas a força e a amplitude do carvalho."

"Teu amor pela pátria e teus alunos
Era místico e parecia não ter limites.
A tua voz era fresca e necessária
E jorrava abundante para matar nossa sede."

"Mestra! Encheste meu coração de compromissos,
De deveres dos quais jamais me resgatei.
Ainda me sirvo daquele cântaro que me ofertastes.
Não sei se aprendi o que me ensinastes.
Mas meu coração anseia e ainda busca
Aquele país que o teu coração me apresentou."

Certamente entre tantos alunos que aprenderam as primeiras letras com Dona Clara e Dona Geraldina não seja eu o único que se recorda e agradece. Reconhecimento e gratidão são os dois primeiros degraus da redenção, e no Centro Espírita Santo Antonio de Pádua não faltam pessoas a quem eu deva manifestar a minha gratidão. Lembro-me particularmente do Seu Rafael. Ele me deu o primeiro par de calçados que eu usei na vida. Era um par de Alpargatas Roda, calçado feito de lona com sola de corda de sisal, bom para andar em casa e manter o pé bem quente. Seu Rafael, homem bom como poucos que eu conheci, também indicou bons livros para eu ler. Robinson Crusoé, O Pequeno Polegar, A Ilha do Tesouro, tanto adubo para a minha imaginação.

"Bendito sejas tu que calçados destes para os meus pés
E livros para adubar-me a imaginação.
Um livrou-me dos vermes, o outro da ignorância.
Por onde meus pés andarem,
Será sempre um caminho que apontastes.
Seja o que for que eu pensar,
Isso virá das sementes que plantastes em minha mente."

E o diretor da escola era o Senhor Álvaro Campos Carneiro. Homem magro e pálido que todas as quartas-feiras visitava a nossa classe, sempre vestido com o seu inesquecível terno esvoaçante que parecia não ter nada dentro. Tinha um rosto severo, ou pelo menos assim procurava se mostrar. Inspirava temor, não aquele temor que se tem de um homem bravo, mas aquele temor reverencial, inspirado pelo respeito e pelo medo que a gente tem de desagradar alguém a quem se aprendeu a amar.
Ele sabia de todas as nossas traquinagens. Uma por uma, apontando cada um de nós, chamando-nos pelo nome, nomeava e dizia as nossas travessuras. Passava sermões e dava conselhos. Depois contava histórias que não entendíamos bem, mas que sabíamos ter muito a ver com a nossa vida.
Havia uma cadeia de vibrações que nos ligava àquele homem magro de terno esquisito, que fazia com que o ouvíssemos respeitosos, como se fosse o nosso próprio pai.
E depois do sermão aquelas balinhas gostosas, imitando soldadinhos doces, que ele nunca deixava de trazer.

PARA ÁLVARO DE CAMPOS CARNEIRO

"Um homem magro de faces pálidas
Guarda todos os caminhos
Que os profetas ensinaram.
Escolhido para guiar os homens
Parte em busca do amanhecer.
Seu pensamento está nos olhos
Seu coração é o estandarte.
O homem magro ataca a fome
Sem ajuda oficial."

"Entra e sai pisando firme
Como quem sabe onde vai.
Volta à pequena sala de aula
Saquinho de balas nas mãos
Pequenos soldadinhos doces
Do soldado que luta só,
Para suprir ao que ao Estado cabe
E cabe aos pais que nos fizeram
Sem pensar no quanto custa."

"Nenhuma queixa, só conselhos,
Que se ouve e não se guarda,
Mas que na hora da verdade
São repetidos para os filhos.
O homem magro, a sopa gorda, de fubá,
Gostoso, Caminho Suave,
Os olhos fundos, o homem magro,
De faces pálidas
Fala das coisas que realmente são."

"Sento-me à sua frente com um pensamento 
                                                  de mil anos.
Sou um menino diante de um rio, rio que 
                                     sai de lugar nenhum
E forma um mar futuro que meu estilingue
                                                  não alcança.
Decididamente um homem não devia sonhar
                                                   tão grande
Mas o homem que tu és não se explica num
                                                         Poema."

"Á noite o velho salão da Senador Dantas
É um mundo sem fronteiras.
Homens e mulheres ligam a terra á outras esferas
E se transmitem verdades indiscutíveis.
Em meio a tudo brilha um sol,
Um sol pequeno, um sol qualquer,
Cuja luz vem de nenhures,
Cujo brilho alcança tudo.
Vem de um átomo, de um sonho,
De Deus talvez, envolvendo o ambiente,
Os homens e suas almas
Sepultando toda incompreensão.
E tu pequeno, tu crescente,
Nas entidades que incorporas,
E nas mensagens que divulgas,
Que até hoje não compreendi,
Mas meu coração sabia certas
Por isso nunca as contestei.
O salão passa, as luzes se avolumam,
Vozes vem longe
Como murmúrio do vento
Nas ramagens de um jardim.
E de súbito se apreende
Que há em ti um telegrama
Uma fábrica
E uma flor."

"Há uma fábrica, uma flor e um telegrama
Em cada ato e palavra que enuncias.
Dispersos no tempo, os teus produtos
Teu exemplo, tuas mensagens,
Formam um enigma que ao decifrar agora
Dá-me a exata figura de um pai."

"Sei que o discurso que amolece os tolos
Não te farão envaidecido.
Nem é o reconhecimento
De um antigo menino de dez anos
Que te farão realizado.
O homem que persegues é o homem
Dos Evangelhos, o Ser Total,
Que nenhuma biografia será capaz de definir.
És como segredo sussurrado ao vento,
Ao cair da tarde, para quem quiser ouvir,
Sem necessidade de guardar,
Mas com a obrigação de espalhar,
Que houve um homem como tu.
Se houver justiça neste mundo,
E Deus, afinal, for bom patrão,
Não ficarás somente num poema."

"Algures nasce um santo,
Quando desaparece um tirano.
Acordo feito entre potestades
Para conservar o equilíbrio.
Assim te pões entre nós todos
Como marca dentro do livro."

1956- GRUPO ESCOLAR DR. DEODATO WERTHEIMER

Fui fazer o quarto ano no Grupo Escolar Dr. Deodato, no antigo Bairro da Vila Industrial, que nós chamávamos de Mineração. O Dr. Deodato Wertheimer é um nome famoso em Mogi das Cruzes. Foi prefeito da cidade, e segundo dizem, um dos melhores que já tivemos. Há uma rua no centro da cidade e outra em Brás Cubas que levam o nome dele, além da escola acima citada.
A Mineração era um bairro diferente. Lá moravam os chamados “bambas” da cidade. Era o território dos malandros, bons de samba e de briga. Quem não morasse na Mineração não era bem recebido por aquelas bandas. Foi o ano que eu mais briguei. Também foi o ano que mais apanhei. Mas eram só brigas de rua, que no dia seguinte eram esquecidas, pois lá estávamos de novo, jogando bolinhas de gude com o adversário do dia anterior.
No Dr. Deodato eu conheci da Dona Aracy Steiner, que era a nossa professora do quarto ano.

"Quero casar com professora
São bonitas e ganham bem (pensava eu).
Casei com uma, (coitadinha).
Mas também, no tempo em que o Ciro Alves
Era o Diretor do Dr. Deodato,
A revolução com seus generais redentores
Ainda não tinha inventado os Maluffs."

"Aliás soldados e políticos, só de brincadeira
No pátio, comendo pão com goiabada.
- Soldado – cabo- sargento-
-Tenente- capitão – coronel
Quem chegar a general é expulso do banquinho
E taca a bunda no cimento frio."

Os soldados e os políticos
Estragaram a brincadeira.
Casar com professora
Deixou de ser a sorte grande.
Mas no tempo de você, Aracy Steiner
Educação era um substantivo bem concreto."

Mas um ano passa logo. Já tinha feito os exames e garantido o meu diploma. Chegara a hora do carrancudo diretor me entregar aquele papel que faria de mim o orgulho da família. O primeiro alfabetizado da família. Foi um dia inesquecível.

"Naquele dia Quinze de Dezembro
De mil novecentos e cinqüenta e seis
O Grupo Escolar da Mineração
Não tinha mais lugar no páteo.
Nem no coração das quinhentas almas
Havia espaço para tanto orgulho.
Minha mãe estava lá,
Estava lá a minha irmã.
Estava bonita a Mariquita
No seu vestido amarelo.
Tão bonita ela estava
Que até namorado arranjou.
Seu Ciro Alves fez discurso,
Dona Aracy me deu um beijo,
Camisa branca, calça azul,
Fui receber o meu diploma.
Eu era agora estudado
E me sentia superior."

Minha mãe era a mais orgulhosa de todas. Vi isso no olhar úmido dela. Era como se eu tivesse acabado de receber um canudo de doutor. Para a minha mãe, que nunca aprendera a ler, ter um filho alfabetizado já era uma conquista maravilhosa.

"Até agora não disse uma palavra
A quem permitiu a minha vida;
Não importa ela não saber ler.
Ela ouve e é bastante.
Ela sente e é suficiente.
Á minha mãe que naquele dia
Já adivinhava este poema."


Porém, voltar para a velha casinha de taipa da Brás de Pina, com um diploma no bolso, era como se eu estivesse cometendo um sacrilégio. Aquele barraco não merecia abrigar uma pessoa estudada como eu. Aliás, a velha casa, pendurada no barranco, já dava mostras da sua obsolescência. O telhado arqueara. O reboco de barro, caído em vários lugares, expunha as ripas que sustentavam a parede. Ela parecia um velho esquálido, com as costelas à mostra. Só então notei que o bairro se modificara desde que eu fora morar ali. Casas bonitas e modernas começavam a ser construídas na nossa rua. O nosso campinho de futebol, em frente á fábrica de Móveis Padovani, alguém cercara com arame farpado.
A fina flor da sociedade mogicruzense descobrira o nosso bairro e começara a se mudar para lá. Os antigos moradores pobres venderam suas velhas casas e se mudaram para bairros mais afastados, onde suas pobrezas não poderiam ser contrastadas com a prosperidade dos novos moradores.

Quanto a mim, desde que o Ford do Franz Steiner apareceu naquela rua para buscar uma empregada doméstica para sua casa, (que por sinal era a minha irmã), eu já tivera a premonição que a velha rua Brás de Pina já não seria a mesma.
Mesmo porque a maioria dos antigos garotos já havia se mudado. Os novos moradores eram muito asseadinhos e não gostavam de brincar na rua. Ficavam em casa vendo televisão. Acabou o jogo de taco e as peladinhas de rua. Não tínhamos mais com quem brincar de bandeirinha, garrafão e Vaca-Mão - Negra.
Sumiram também as meninas com as suas cirandinhas.
Foi então que descobri que nem criança eu era mais.

"Foi então que o Dr. Carlos Ferreira Alves
Construiu uma mansão na Brás de Pina.
Depois dele veio o Dr. Dauro Paiva.
Depois veio mais gente rica.
A velha casa do barranco
Suicidou-se constrangida
Numa noite de temporal.
Sai do bairro e fui para a vida."


DO LIVRO "NOITE, VENTO E CHUVA" -CRÔNICA DA CIDADE AMADA-  PUBLICADO PELA EDIGRAF- SÃO PAULO, 1986
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/03/2010
Reeditado em 09/04/2010
Código do texto: T2127367
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