A última hora de Pery
Pery entrou decido em seu apartamento. Lentamente abriu um pote de plástico que trazia e derramou o conteúdo escuro no copo com água. Teve, ainda, o cuidado de mexer com a intenção de misturar bem. Olhou o, agora, preparo e deu mais um tempo para ouvir o som do CD que tocava no vizinho: “Mas é claro que o sol, vai voltar amanhã”. “Não pra mim” respondeu em pensamento.
Olhou mais uma vez para o copo. Decidiu não pensar mais nada. Como que vivendo um ataque de fúria, virou de vez o liquido marrom goela abaixo. Ainda tomado da súbita valentia, espatifou o copo contra a parede. “Vida” pensou.
Olhou em volta do pequeno apartamento, fruto do sonho da casa própria, quando ainda sonhava junto com Samanta. “Samanta?!” pensou naquela que, agora, era ex-mulher. Em pensamentos, viu seu corpo moreno. Seus cabelos encaracolados, seu rosto lindo e seu colo convidativo. As lembranças continuaram levando Pery em devaneios, se viu no primeiro beijo, roubado numa praça próximo do Patronal, colégio em que ambos estudavam. De súbito viu a igreja lotada; “todos”, pensou. A noiva, o branco do vestido, a felicidade oficializada no “amém” do sacerdote.
Ainda sorria quando sentiu a dor. Forte. Curvou-se. Procurou apoio para o corpo. Um gosto de sangue em meio ao aperto no peito. Ficou parado, apertando o peito contra as pernas. Respirou. Sentiu o alivio. Olhou para o lado e viu a maleta de trabalho. Tipo 007. Velha companheira de vendas. Aliás, o senhor Pery Jardel era o vendedor. Sim, o vendedor, não mais um. Durante vinte anos bateu todas as metas da firma. Lembrou-se dos vários elogios. Dos prêmios. Dos tapinhas nas costas. Da fisionomia branca, tipo européia, de seu Gusmão, o gerente. “Sempre Gusmão!” reviveu em meio a um sorriso. Gusmão, que o abraçou em meio à sucessão quando o período de erros e fracassos começou. Que, também, tentou fazer com que Pery não desistisse de continuar quando os atrasos e faltas passaram a ser a rotina do antigo “número um em vendas”. Gusmão, que até o último dia tentou fazer com que Pery enxergasse uma outra verdade na sociedade que viria e alertou o amigo: “Cuidado, a vida tem suas faces”.
De súbito, Pery sentiu outra pontada. Desta vez mais forte que a primeira, e conseguiu distinguir o gosto... ”Sangue” pensou cuspindo e contatando o vermelho que manchou o tapete. Na cabeça um misto de dor e confusão. A agonia agia como um torno que apertava o peito. Sentiu uma gosma grossa na garganta. Tentou manter a concentração, mas os pensamentos não se organizavam. Viu em meio as distorções a figura de dona Edith, a mãe. Abriu os braços para abraçá-la. Sentiu o calor do abraço materno. O silencio falava mais que qualquer discurso. Até que uma frase cortou o devaneio; “Por que você desistiu, meu filho?”, Pery, olhou em direção da voz, mas não havia nada além de algo que lembrava uma madorna com um sonho bom.
Sentiu frio. Suava. A dor abdominal era cada vez mais forte. A agonia também. Mais uma vez tentou sentar. A respiração era forçada. O sangue já não era só o gosto, mas o liquido que enchia a boca. Pela primeira vez sentiu o pavor. O medo. A solidão. Tentou ficar de pé. O corpo não obedeceu. “Só quero paz” pensou como se desculpando. “Só não quero mais viver confuso”. “Só quero fugir do que corta meus sentidos como uma faca amolada”, continuou gritando em pensamento.
Suas lembranças o levaram a uma tarde do mês de julho, dois anos antes, quando saboreava um copo de vinho e pensava na crise no casamento. Suas opiniões reagiam aos, então, novos acontecimentos: “Samanta”, pensava, “há muito não me trata como marido”. “E o trabalho?” Continuava a pensar e responder “Já não atende minhas expectativas profissionais”. A cada gole no vinho, decidia, em silencio, seu futuro: “Vou me separar e vou curtir minha doce Aninha...”. Ana, simplesmente alguém que surgiu como resposta a rotina do casamento. Já a vida profissional, uma nova e “promissora” proposta de sociedade com um amigo de infância, que se tornara advogado, Jorge Pereira, surgia como uma porta para a riqueza e estabilidade. “Não preciso mais de ninguém” sugeriu para si.
Uma pontada mais forte no estomago o fez voltar ao presente. Olhou em volta, não havia ninguém. A doce Aninha, se foi assim que o dinheiro da indenização acabou... Isso em onze meses, “Nem um ano” pensou. Não havia ninguém... A pontada que feria como faca amolada, agora não só golpeava, mas também girava no estomago de Pery. Tentou ficar de pé, mas ao invés disso, caiu ao chão.
O suor banhava o corpo. A agonia aumentava a cada aperto no peito. Olhou o que podia ver. Viu-se naquela manhã em que chegou ao escritório da nova representação e não havia nada. Nem moveis, nem clientes, nem dinheiro. O “amigo” Jorge fugiu com todos os bens. Pery sentiu algo além do suor correr no rosto. Lágrimas. Admitiu neste momento, que suas escolhas destruíram seus projetos e planos. O que esperar? Como reconstruir? Tentou outras portas. Tentou se reconciliar. “Tentou, tentou... Tentou”, mas as portas que foram fechadas por suas atitudes, não possuíam as chaves.
Abriu os olhos e viu surgir em sua frente, como cenas de televisão, os vários pedidos e suplicas de Samanta em reconstruir a família. Agora, sentia vergonha pela maneira como tratou, de forma humilhante, a ex-esposa. E de como ficou “se sentindo esquisito” quando soube, meses depois, que ela iria se casar com um marinheiro e se mudar para outro estado. Lembrou-se também, do dia em que, simplesmente, bateu a porta na cara de Gusmão quando este foi portador de um convite de “volta ao antigo trabalho”.
Mas o dinheiro acabou. Os amigos se foram. Sem forças para continuar, decidiu que aquele seria seu último dia. Na Praça XV encontrou um sujeito que vendia o “tal chumbinho”. Foi pra casa a fim de “Acabar com a história”.
Agora a dor o sufocava em meio ao sangue que golfava de sua boca. Tentou alcançar alguma coisa com uma das mãos. Ouviu que algo caiu ao chão. O desespero movia seu corpo, mas já não podia gritar a única palavra que conseguia pensar: “Socorro!”. Não podia voltar. Não podia parar. Já não dava mais... Parou e esperou. Viu Samanta entrar e cuidadosamente reclinar até ele. Sentiu suas mãos e ouviu sua voz: “Ainda pode ser diferente... acorde!”.