Prazeres em Cinzas
Naquela manhã cinza, os mesmos olhos apaixonados de anos atrás se encararam novamente. O amor avassalador que estes olhos sentiam outrora deu lugar a um brilho cinzento como aquela manhã, um brilho seco do ressentimento que carregavam ambos no peito e nos olhos. O grito dele veio logo após o relâmpago, ecoando como um trovão pela sala e naquele momento o seu rosto branco, ficou como o vidro da janela que amparava as gotas de chuva. As gotas na janela e no rosto rolavam de um tom cinza, onde antes se enxergava um azul estranhamente cintilante.
A manhã se tornou fim de tarde, e ela nem se preocupava com o mundo que desabava fora de seu apartamento, queria mesmo era entender o motivo dos destroços do mundo que desabava dentro de si mesma. Encolhida de camisola em suas pernas no sofá, sua silhueta formava o Pão de Açúcar com um cabelo loiro despreocupado com qualquer visita a um salão. Ergueu a cabeça e fitou a janela, limpou uma lágrima, e viu sair nela seu vestígio de ressaca no borrão do contorno dos olhos da noite anterior. Nunca precisou de ninguém e não seria agora a primeira vez.
Levantou-se, lavou o rosto branco e tentou se livrar da silhueta chuvosa; pensou em contornar os lábios de um vermelho vivo, mas ponderou e trajou-se com sua estonteante beleza natural. Seus olhos voltaram às cores normal, azul a primeira vista ou a quem arrisque um palpite de verde. Acendeu um cigarro, tragou como se sua vida dependesse daquilo e soltou a fumaça como um forte suspiro de alívio, andou até sua cozinha, apenas um balcão a separava da sala. Preparou o capuccino, se ambientou com jazz, e a cada tragada se sentia mais livre... sentiu o frio da chuva e se aqueceu com o vapor que cheirava a cafeína de sua caneca. Contemplava a fumaça subir, o piano em seus ouvidos e o odor de tranqüilidade em suas narinas...
Não se prendia a pessoas, mas sabia exatamente que coisas edificavam seu mundo. Não se sentia feliz nem plena, apenas tranquila. Naquela noite chuvosa, ser feliz não era sua prioridade, ele não a importava, pensava nele como um borrão de passado como a sombra borrada em seus olhos. Pensava em seu mundo, em sua vida... na realidade ali não sobrava espaço para muita coisa. Com o frio dentro e fora de si, o espaço tinha de ser pequeno, para que ela pudesse se aquecer com cigarro, jazz e café... Pequenos prazeres de seu corpo que tocavam na alma.