Ultimo verão

Cheguei e lá estava ele. Sentado na cadeira reclinável, os olhos fechados pensavam no rock antigo em seu ouvido. Os cachos no cabelo enfeitavam o rosto perfeito.Estava ali parecendo não se preocupar com nada ou talvez não se preocupa-se mesmo.

Uma voz angelical atrás de mim me encaminhou para o leste, para perto do anjo.

-Aqui?! Perguntei para a aeromoça com o vestido azul-marinho.

Ela deu um sorriso forçadamente simpático e saiu para atender um senhor que parecia estar se engasgando.

Olhei mas uma vez para ele, percebi o violão ao seu lado. Sim. Ele era perfeito! Coloquei minha maleta na parte de cima e sentei tentando fazer o mínimo de barulho possível. Fiquei sem mexer nenhum músculo por alguns segundos.

-Alguma coisa senhora? A aeromoça mais velha chegou com uma bandeja de alumínio.

Sorri e peguei um chá com um saquinho de biscoitos. Eu não tinha fome mas ela tinha se esforçado tanto para ser gentil.Peguei em minha bolsa a segunda edição de “Viagem ao sol” e uma fivela.Prendi meu cabelo em um rabo de cavalo malfeito e abri o livro.

Depois de 10 minutos lendo o sofrimento de Alaíde com a perca de Francesco algo se mexeu na minha frente. Abaixei o livro lentamente e lá estava ele olhando para mim. Os olhos castanhos me lembravam alguém que não conseguia lembrar. Minha personalidade não era uma das mais fortes e dificilmente encarava as pessoas. Mas naquele momento foi diferente. Nossos olhos se encontravam e eu podia jurar que conhecia aquele castanho intensamente brilhante.

Talvez ele estivesse olhando para meu nariz fino demais. Ou para a maquiagem que tinha sido esquecida de fazer. Ou talvez eu estivesse suja. Ai meu Deus, eu estava suja?

Dei um pigarro e nós dois abaixamos a cabeça. Aproveitei para passar a mão no rosto discretamente tentando tirar qualquer coisa que não deveria estar ali. Barulho oco. Ele tinha deixado algo cair. Abaixamos para pegar e fui mais rápida encostando no livro primeiro. Dois elementos não ocupam o mesmo espaço e sua mão encostou-se à minha, me fazendo arrepiar ate o ultimo fio de cabelo. Um pequeno e singelo “desculpe” saiu da parte dele.

Sorri e entreguei o livro. Também era uma 2° edição de Viagem ao sol. Sim, ele ainda tinha qualidades humanas. Ele também sorriu.

-É um ótimo livro.

Eu tinha puxado assunto? Como assim? Eu nunca puxava assunto.

Ele olhou para a capa do livro e deu um sorriso de lado. A perfeição existia e estava ali, na minha frente.

-Um ótimo livro...

A voz dele soou como um coral de anjos em meus ouvidos. Uma voz meio rouca mas que conseguia ser delicada sem esforço algum.

Silêncio, Olhei para a janela. Lá fora as nuvens passavam lentamente. Ele seguiu meu olhar.

-Quando criança sempre pensei que eram feitas de algodão doce...

Sorri timidamente.

-Sempre pensei nisso também. Costumava imaginar as figuras formadas.

-Sol de queijo. Estrelas eram faróis... Desviou o olhar da janela e percebi que estava em mim novamente. -Cada planeta tinha um “Eu” vivendo...

- A mesma coisa! Pensei que só eu e... pensava nisso.

Nossos olhos se encontraram mais uma vez.

-Criança tem cada coisa não é?!

“Que capítulo você está?” Essa foi a primeira pergunta de muitas. Depois de algum tempo já sabíamos o resumo da vida de cada um. Ele também estava vindo visitar os pais. Morava fora há 15 anos e era vocalista de uma banda e compositor no tempo livre. Ganhava a vida trabalhando como advogado de uma empresa internacional. Rimos bastante de algumas histórias de nossa infância. Sendo que eu algumas vezes tinha a sensação de ter passado pela mesma coisa. Ele sempre resumia a história quando envolvia outra pessoa ou para ser exata uma garota da sua infância. Até que...

- Depois de passar a chuva ela... Ele deu um suspiro e finalizou. - Aí entrei novamente no quarto.

Abaixei a cabeça e tirei a franja insistente do rosto. Eu não sabia o que falar. Eu nem ao menos sabia se era pra falar algo. Então tentei arriscar.

-Alguma coisa te incomoda?

-Lembranças do passado...

Lembranças. Tínhamos isso em comum também. Lembranças da minha infância, de uma pessoa em especial. Ele deu um sorriso e prestei bastante atenção em seus olhos. Um castanho-claro intenso, as sobrancelhas grossas pareciam ter sido desenhadas e um pouco acima uma cicatriz pequena quase imperceptível.

-Como você... a cicatriz?

Levei a mão a minha testa e ele fez o mesmo. Seus olhos brilharam parecendo lembrar algo.

-Meu ultimo verão aqui. Andando de trator no campo de...

-Trigo! Não era possível.

Ele me olhou com duvida. Deu um sorriso pequeno.

-Lara?!

-Bruno.

Então eu finalmente percebi. As nuvens. As histórias no campo. O cabelo. Os olhos. A cicatriz... Era ele, Bruno Augusto. Meu melhor amigo na infância. Lógico que eu sabia da cicatriz, eu o tinha empurrado do trator no nosso ultimo verão juntos quando ele disse que ia morar com os avós.

Um não acredito veio junto com a aeromoça de sorriso falso anunciando que já tínhamos chegado. Ficamos lá parados alguns minutos tentando descobri se era destino ou apenas coincidência. Descemos do avião e fomos cada qual para sua casa. Mas marcamos entes embaixo da velha Macieira para imaginarmos novamente o formato nas nuvens.

Ludmila Guimarães
Enviado por Ludmila Guimarães em 03/03/2010
Código do texto: T2118469
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