Dona Juana
Ela foi fruto de uma relação entre o “Sinhozinho” e sua mãe, que era escrava...
Conheci-a teria os meus seis ou sete anos. Tornamo-nos vizinhas, quando minha família mudou-se para uma casa geminada, de dois andares, onde ela já lá morava, ocupando, como nós viríamos a fazê-lo, um dos lados da parte de baixo da mesma.
Ficáramos muito amigas apesar da idade que nos separava, e tudo o que ela precisasse que não pudesse fazer sozinha, era á mim que recorria... Como por exemplo: enfiar a linha em uma agulha... Não enxergava muito bem, por conta da idade já avançada.
Todas as manhãs, após tomar o meu café, corria ali pelos fundos da casa, ia ver se D Juana não estaria precisando de alguma coisa...
E, com esta convivência, ela me contava á cada dia, um pouco da historia de sua vida...
Eu, como toda criança curiosa, ficava á espera de mais... Queria saber achava tudo aquilo muito enfático!
Teria vindo ela, juntamente com seu amado fugidos, no porão de um navio, que zarpara de Salvador e atracara no porto de Santos...
Ele, um português muito decidido, a teria “roubado” de seu sinhozinho, aquele mesmo que havia se deitado com sua mãe, á quem agora, no lugar da mesma, era ela quem prestava serviços.
A mãe a ensinara tudo do jeito que ele gostava. Era “magistrado”!
Por isso teria que andar muito bem arrumado, suas roupas eram impecavelmente passadas. Suas camisas, de peito cheios de babados, como se usava na época, teriam que ser engomadas e passadas, com o ferro á carvão, sem que pudesse haver, uma manchinha sequer e, mais um instrumento, parecido com uma tesoura, que seria aquecido no fogo e, com ele ajeitava-se os babados para que ficassem todos com o mesmo caimento, e muito boa aparência...
O português Sr. Alfredo, que prestava seus serviços para o mesmo “sinhô”, apaixonara-se pela D. Juana e traçara aquele plano. “Roubar a moça”! Pois tinha ciúmes até da sombra do patrão, quando o via achegar-se á ela, que era muito bonita... Quase morria de vontade de por fim á vida do mesmo. E, para que não chegasse a tanto cometendo assim uma besteira e, mais, ficar ao lado de Juana para sempre, roubá-la-ia de uma vez!
Foi o que fez, planejou tudo direitinho. No momento exato, pegou Juana pelo braço arrastando-a até o porto e lá se foram esconderem-se no porão do tal navio... No que tiveram êxito! Aportaram em Santos e nunca mais, ninguém os procurara...
O Sr. Alfredo vendo-se “alforriado” por conta própria, tratou logo de por em prática o que sabia fazer: Era ferreiro. Providenciara logo uma bigorna e um fole... O carvão mineral, para fazer fogo, buscaria na linha do trem, daqueles tantos que caíam, quando o maquinista, ao alimentar sua máquina os perdia pelo caminho... Fizera um coberto nos fundos do quintal da casa e, montara a sua oficina. Ali ganharia para o sustento de ambos confeccionando ferraduras, trancas, molas para caminhões, parafusos e etc.
Mas quando o serviço aumentava e, ele precisando de alguém que o ajudasse gritava pela Juana. O! Juana! Chegue até aqui mulher!
Dê-me uma mão ajude-me!
E, lá corria a Juana á segurar, com uma torquês de cabo bem comprido, a peça que estava sendo feita... Cada marretada que era dada na peça escaldante, ora em cima da bigorna, Juana subia do chão, á quase um palmo de altura... Tão miúda frágil e bonitinha era a velhinha...
E, quando eu ali por perto me encontrava, e D. Juana estando ocupada em seus afazeres, também seria requisitada, á tocar o fole, ou então segurar a torquês, para que o trabalho saísse mais rápido...
Juana cuidava de tudo dentro de casa, cozinhava como ninguém!
O Snr. Alfredo era daqueles portugueses que gostava de comer bem! Bom garfo! Arroz e feijão todos os dias, batata não podia faltar... E o bacalhau então! Com bastante azeite e uma couve “tronchuda” muito bem preparada, com bastante alho!
Certa vez, D. Juana, escolhera o feijão. Iria colocar no fogo... Mas como era uma pessoa muito limpa verificou que, no fundo do caldeirão havia ainda vestígios de outro feijão, que fora antes, ali cozido... Quis então dar-lhe mais uma lavada, deixá-lo bem limpo para a próxima cozida... Esfregou, esfregou... Acabou por enchê-lo de água e, ao invés de colocar o feijão, quem ficou boiando ali dentro, foi o “esfregão” usado para lavar a panela...
E, deu-lhe fogo! Até quase ao meio dia... Era uma acha de lenha atrás da outra, sem deixar que o fogo se apagasse!
Quando, por volta da hora costumeira para o almoço, S. Alfredo que estivera à manhã toda trabalhando na oficina, e cheio de apetite grita: Ò Juana! Este almoço sai ou não saí?
Qual não foi o susto da D. Juana, ao destampar o caldeirão, para então temperar o feijão e, ver ali, aquele “esfregão” bem cozidinho...
E o S. Alfredo era bravo! Principalmente em se tratando de comer!
Às vezes até, sentava-se á mesa, antes mesmo de ela estar com o almoço pronto!
E agora?
Eu que sempre andava xeretando ali por perto, inteirei-me do fato percebendo então, o apuro de D. Juana.
Lembrei-me de ter visto, logo de manhã, mamãe colocando o nosso feijão á cozinhar... Logo pensei: Coitada de D. Juana! Preciso fazer alguma coisa!
No instante em que S. Alfredo ia até o tanque lavar-se para o almoço corri muito depressa até em casa e, pegando uma tigela, enchendo-a com metade do feijão que mamãe preparara para o nosso almoço, voltando, colocara-a na mesa da cozinha de D.
Juana...
Quando a mesma entendeu o que estava acontecendo olhou-me e piscando aqueles olhinhos pequenos, fez com a cabeça que sim...
Daquele dia em diante, tornáramos cúmplices...
Quando eu fazia alguma coisa de errado e, repreendida por mamãe, era sempre socorrida por D. Juana, que tentava de todas as formas me defender, colocando “panos quentes” para que, assim fosse consertado os meus mal feitos...
Viviam ali. Tiveram filhos, uns quantos! Mas que conheci só mesmo a Juraci, que vivia ainda com eles. Moça muito bonita, morena cor de jambo, cabelos bem pretos, corpinho bem ajeitado.
Era o xodó de D. Juana!
Mudara-se ali para perto uma senhora por nome Aurélia, seria então nossa nova vizinha. E, ela se dizia ex artista de circo, dois filhos, um deles teria vindo com ela e o outro, já rapaz, teria ficado no Rio de Janeiro servia o exército. Mas logo, logo, viria ter com ela, morariam todos juntos...
Ela, acostumada àquele glamour do circo, vestia-se e enfeitava-se diferentemente de qualquer outra pessoa comum... E, isto para os meus olhos de criança era um “prato cheio” á aguçar ainda mais minha curiosidade...
Gostava de, nos dias de muito calor, colocar um maiô deitar-se á sombra das árvores que havia em seu quintal, que fazia divisa com o nosso e, ali ficar ás tardes, bebericando qualquer coisa que me parecia muito gostoso e gelado... Pois eu não perdia a oportunidade de espreitá-la por entre os galhos da vegetação que crescia fazendo uma cerca na divisa dos nossos quintais... Eu era a curiosidade em pessoa!
Heis que, um dia chega o filho mais velho que ficara á servir o exército e, se enamora da Juraci!
O Walter. O Walter era o garotão mimado da mamãe... Gostava de andar muito bem vestido, todo cheio de mesuras para com a Juraci. Sentavam-se para namorar, em um banco de madeira feito pelo S. Alfredo, embaixo das árvores ali do quintal...
Teriam eles, um meio de comunicação, que seria uma espécie de assovio: Fiiiiu Fifirifiufiuuuuuuuu!
Quando queria vê-la chegava perto da cerca e soltava o seu “trinado”! Em poucos instantes aparecia correndo a Juraci...
E eu muito moleca, treinei muito e, aprendi a assoviar igualzinho á ele... Fiiiiu Fifirifiufiuuuu! Era só chegar à parte de trás da casa e fazer a imitação... Juraci corria para ver o seu amado! E eu morria de rir bem escondidinha, atrás de algum arbusto, que por ali não faltava...
Juraci e Walter casaram-se deram dois netos á D. Juana e S. Alfredo... Mas foi embora muito cedo... Não está mais entre nós...
O Sr. Alfredo também fora, logo depois...
D. Juana vivera alguns anos há mais...
Dera tempo ainda para me ensinar muitas coisas, das quais faço proveito até hoje...
Lembro-me da última vez que fora visitá-la, eu já era moça feita.
Teria me mudado de lá, ela também morava em outro local. Estava bem velhinha, sentia muita fraqueza, pediu-me até que lhe “arranjasse” algumas vitaminas, pois meu irmão trabalhava com medicamentos sabia que não seria difícil pra nós atendermos a esse seu pedido... Mas o tempo foi curto...
Passados alguns dias, numa noite, sonhei que ela me trazia uma flor azul. Muito bonita! Igual, eu nunca teria visto!
E, naquela noite, ela nos deixava para sempre...
Zelia C Silva