Perfídia

Li em algum lugar que feliz é aquele que da vida nada espera, pois nunca terá decepções.

De forma alguma sou vítima. De circunstâncias ou qualquer outra coisa que possa vir a ser. Não sou nenhuma Joana D’Arc. nem tenho vocação para Anita Garibaldi. Nunca foi Amélia de ninguém. Só tive dois homens em minha vida. Não culpo ninguém, nada e nem a mim mesmo por ter engravidado aos 14 anos e tido minha linda filha com quinze e ter ficado casada com este homem que amei até os vinte e oito anos. Hoje tenho 36. Meu ex-marido era de família próspera, uma pessoa fadada ao sucesso pessoal e profissional. Nunca deixou nada faltar para mim ou para a criança. Pagou toda a minha educação. Mas depois de treze anos de matrimônio eu não queria um amigo, um irmão e um pai de família. Queria um homem, um cúmplice e um amante. Ele compreendeu – como sempre – e foi magnânimo. Não precisamos de longas de dispendiosas demandas judiciais. Acertamos tudo com graça e educação. Não fiquei parada! De posse de meu diploma fui a luta e consegui um trabalho em uma grande empresa privada. Chegava a trabalhar 12 horas por dia, coisa que eu sempre fiz com um sorriso no rosto e sem me importar com o que colegas pudessem dizer. Nunca extrapolei nenhum prazo, nunca fiz de minha filha uma defesa ou um escudo para conseguir licenças e vantagens pessoais como via algumas mulheres do meu setor fazerem. O salário era bem vindo para suprir as necessidades da casa. Meu ex-marido acabou se encantando com outra pessoa, mas continuou sendo um companheiro que eu sempre podia contar meus problemas ou como tinha sido meu dia, minha semana e como estava minha vida. Nunca dei ouvidos as fofocas dos colegas de trabalho e muito menos me envolvi com qualquer pessoa da empresa. Meus superiores sempre me elogiavam o que às vezes causava inveja nas pessoas. Nunca me importei com esses elogios. Meu falecido pai sempre citava um poeta que dizia que “o beijo é a véspera do escarro” e isso ficou indelevelmente marcada em minha memória e em minh’alma feito uma tatuagem. Quando casada apenas cuidei da casa e de meus estudos. Nunca fui uma mulher de cultivar muitas amizades. Nenhuma amizade seria o correto de se dizer.

Algum tempo depois resolvi fazer um concurso público para uma repartição inerente ao Poder Judiciário. O salário era três vezes maior que o de onde eu trabalhava e o expediente era de apenas seis horas. Cinco dias por semana. Eu poderia ter qualidade de vida, afinal. Não porque almejasse riqueza e sucesso, que são as “idéias” das mulheres de minha geração. Mas isso nunca foi minha praia. Sempre soube que minha mãe nunca gostou de mim desde o momento em que me conheci por gente. Mas, ela morreu logo, o que de forma alguma deixou em meu âmago traumas mais sérios. Nada que precisasse de psicoterapeutas ou francos traficantes de anfetaminas e barbitúricos aonde – constantemente – minhas poucas colegas iam e gastavam sem dó seu suado dinheiro. Concordo plenamente quando ouço nas conversas masculinas que as mulheres são umas neuróticas. Eles têm toda razão. Existem as exceções, mas é regra via de fato. Transformam problemas cotidianos e suas frustrações adolescentes em Guerras Mundiais. Vou além: acho que o governo deveria impor exame de sanidade mental em mulheres que querem ser mães. E sou a favor do controle da natalidade. Sempre odiei a Betty Friedman que depois que queimar sutiãs em praça pública fez as mulheres incautas se transformarem em machos mal-acabados. Projetos de gente. Nada mais. Não garantimos nenhum lugar nessa eterna sociedade machista. Tornamo-nos apenas o que os homens sempre foram. Escravos de um sistema judaico-cristão vil, bruto e exploratório. Meus grandes exemplos que vida foram meu pai que sempre foi zeloso comigo e meu ex-marido que sempre esteve por perto. Tento passar esses valores a minha filha. Sempre a criei para o mundo. Tenho pena de pais que criam os filhos para eles. Qualquer pequeno deslize pode virar uma rusga mal resolvida e um rancor nefasto por toda uma vida.

Mas falo, falo e falo. Não consigo chegar ao essencial.

Quando comecei a trabalhar com funcionária pública já antevia uma mesa e um computador e muita tranqüilidade e flexibilidade de horários. Estava confiando na lenda urbana de que o servidor público apenas precisa chegar ao banco no “pay-day” e passar seu cartão magnético, feliz da vida. Ledo engano o meu. Tinham pilhas de processos e demandas a serem colocados em movimento. Trabalho intelectual duro para qualquer um não familiarizado ao hábito salutar da leitura. Meu “ex” e eu podíamos ler até seis livros por mês alternadamente. Meu pai enraizou isso em mim. Meu companheiro apenas consolidou o hábito. Desde que fui alfabetizada é comum voltar-me a memória a infância rodeada pelos livros do “Tarzan” ou “O Pequeno Príncipe” ou até mesmo os volumes de poesia e prosa contemporânea do velho. Trabalhei sempre dentro do meu horário. Se precisasse ficar além do final do expediente o fazia de bom grado apesar de no serviço público não ser paga a hora extra. Ou na hora de meu almoço. Não participava das rodinhas de café como as outras moças. Sempre fui de ficar na minha. Não tenho e nunca tive amigas de infância ou de faculdade. Não que eu seja arrogante ou retraída. Esse sempre foi meu modo de ser. Gosto apenas de ficar observando e absorvendo tudo ao meu redor. Minhas conclusões eu deixo para mim mesma. E foi exatamente neste ponto que aconteceu uma situação muito estranha.

Uma garota bem mais jovem que trabalhava comigo no setor foi aproximando-se gradualmente de mim. Um dia puxou conversa. Retribui. No outro um pouco mais. Fui me deixando levar. Ela parecia legal, interessante. Estava prestes a se formar em direito, só faltava uma pequena parte da monografia, foi o que me contou. Seu sorriso era bonito. Vestia boas roupas e belos sapatos. Parecia ter bom gosto. Sempre me cumprimentava efusivamente. Resolvi, uma semana depois, ser mais receptiva. Seu nome era Juliana porem comecei a chamá-la simplesmente de Ju. Meu nome é Renata e ela, jovialmente, me tratava por Rê. Trabalhamos juntas, mas exercíamos funções diferentes. Ela já trabalhava na casa a 5 anos, desde que começou a faculdade. Ás vezes ela comentava alguma coisa sobre os pais ou sobre o namorado. Eu lhe contei que tinha uma filha e que estava separada de meu marido. Contou-me sobre uma viagem que tinha feito para o Rio de Janeiro assistir ao show do AC DC e que tinha se divertido muito. Contou-me sobre suas amigas da alta sociedade. Sua família não era rica, mas era bem recebida em ambiente finos. Fomos nos tornando próximas com o passar dos dias. Almoçávamos juntas três vezes por semana num restaurante mais afastado da repartição. Gostava de comer lá porque o repasto era excelente, o ambiente climatizado e o preço honesto. O trabalho era moleza: eu apenas li algumas pastas e emitia algum parecer e a Ju assinava. Tinham quatro funcionários e mais o chefe da Seção que todas as tardes reunia-se com o Diretor do Departamento e no dia seguinte sempre dizia que o Diretor elogiava meu serviço. Como já disse, elogios para mim nada significam. Não preciso de massagem de ego.Nunca precisei, aliás.

Já fazia um ano e dez meses quando estava nesse serviço e o Diretor me chamou às sua sala. Fui despreocupado. Um cara de seus quarenta e dois anos, muito bem apessoado num terno escuro e sóbrio, usando óculos de grau com armação de chifre e gravata vermelha apontou uma cadeira confortável diante de sua vasta mesa e fez um sinal para que eu me sentasse. Já começou dizendo:

- Estou a par de seus trabalhos e acho que você tem um grande futuro por aqui...

-Obrigada, respondi.

- Olha, talvez no fim do ano o Amado, chefe da sua seção, vai embora. Passou num concurso em Brasília e vai no deixar, o sacana. O Diretor me contava isso num tom de contido deboche. E vagando o lugar dele estou pensando em você para conduzir o setor. O que acha?

Fui muito sincera:

- Eu gostaria muito. Obrigado pela lembrança Dr. Lemos.

- Paulo César. Meu nome é Paulo César. Pode apenas de chamar de Paulo César, ok? Aceita uma água gelada com gás, um chá mate, um café com leite?

- Um chá gelado, aceito sim senhor.

Ele tocou uma campainha por debaixo de sua mesa e num piscar de olhos apareceu um garçom de calça preta e colete e camisa branca. Paulo César lhe disse que gostaria de uma água com gás e um chá para mim. O garçom saiu e voltou rápido, colocou os copos na mesa e voltou para suas outras ocupações enquanto apreciávamos nossas bebidas geladas e falávamos agora sobre outros assuntos. Amenidades e alguma conversa profissional. Terminamos juntos de sorver os copos e ele disse que estava tudo anotado e que eu poderia voltar as minhas obrigações. Muito obrigado, foi somente o que lhe disse apertando sua mão. Quando voltei para meu lugar vi que Ju jogava um ávido olhar para mim e sentou-se ao meu lado.

- O que o Chefão queria, amiga? Perguntou-me.

- Nada não. Só me passar uma mudança de procedimento. Desconversei com meu ar profissional porém com casualidade fraterna.

- Que mudança? Quis saber.

- Depois eu lhe digo.

Passei o resto da tarde trabalhando e como o serviço estava em dia saí no horário regimental. Ju veio atrás de mim falando coisas que eu não entendia e no estacionamento nos despedimos com um “boa noite e até logo”.

Cheguei em casa, e Larissa , a minha filha já estava lá. Contei-lhe a novidade e ela ficou radiante. Depois liguei para o meu marido e como sempre em seu comedimento ele apenas me disse que isso era “fruto de sua dedicação e trabalho” e que “ nada mais justo para você ter reconhecimento”. Despedimos-nos, preparei um excelente jantar que comemos com prazer, tomei uma ducha e fui ler um livro para acalmar a cabeça e logo adormeci.

Cheguei quinze minutos mais cedo no dia seguinte e fui logo procurando alguma coisa para fazer. A Ju chegou quase meia hora depois do horário. Eu não tinha nada como isso. Mas ela veio até mim e reparei algo estranho em seu tom de voz. Foi despejando uma conversa esquisita que seu namorado estava lhe dando muito trabalho. Fingi interesse. A situação ficou pior. Ela não parava de falar que ele era isso e aqui e que estava quase se arrependendo de tê-lo conhecido. Minha cabeça estava vazia. Até onde eu conhecia da vida sabia que esse papo todo não levava ninguém a lugar nenhum. Não gosto de magoar os sentimentos alheios por isso – quando aparece esse tipo de conversa eu apenas, fico séria e balanço a cabeça afirmativamente e digo “sim” e “ é claro” e também “ compreendo”. Foi aí que ela soltou um pedido à queima roupa:

- Você poderia emprestar-me duzentos reais até o pagamento? É daqui a três dias. Tudo bem para você? Não vai lhe fazer falta? Preciso pagar uma conta que não estava no roteiro mas quando recebermos lhe pago na hora. Seu português estava todo empolado agora.

Abri minha bolsa e lhe dei o dinheiro. Seus olhos brilharam. Ela agradeceu efusivamente.

- Você é minha melhor amiga, muito obrigado.

- De nada. Foi o que respondi.

No dia do pagamento reparei que ela não estava na sala e casualmente perguntei a um estagiário se ela não tinha vindo se havia acontecido alguma coisa e o garoto respondeu que ela tinha ligado para nosso chefe avisando que estava muito doente e que tinha passado o atestado do médico pelo fax. Na boa. Só apareceu uma semana depois, magra e meio abatida. Fiquei preocupada quando a vi. Ela me contou que tinha apanhado uma “bela infecção alimentar” num sushi bar que tinha ido com seu namorado. Não voltei ao assunto. Tudo parecia bem e que tinha entrado nos eixos. Pediu que fosse almoçar com ela no mesmo lugar de sempre e que queria algo leve. Concordei.

Naquela noite para dar-lhe um ânimo convidei-a à minha casa, apresentei-lhe Larissa e tomamos algumas taças de vinho e nos demos o direito de rir um pouco de nós mesmas. No dia seguinte, apresentou-me à sua família. Mas achei-os distantes e um pouco matutos. Não sei. Saí de lá com uma impressão muito dúbia. Mas pensando melhor, talvez fosse implicância minha. Nunca tinha tido muita vida social.

É claro que nunca toquei no assunto dos duzentos reais e mais óbvio ainda que ela nunca disse uma palavra e jamais devolveu-me um centavo. Mas nossas conversas e almoços continuavam apesar de nunca mais ter ido à sua casa.

Passados mais ou menos dois meses desse pequeno incidente ela chegou pela manhã com um cara muito cansada. Jogou sua bolsa cara na mesa de trabalho e suspirou:

- Amiga, estou cheia. Meu namorado já era...

Fiquei meio surpresa, mas não era nenhuma garotinha. Sabia que essas coisas aconteciam. Afinal, caí na vida muito cedo. Perguntei a ela qual era o drama e ela praguejou cobras e lagartos contra o cara inclusive que ela estava sendo traída, com as palavras mais politicamente incorretas do mundo, “que estava sendo passada para trás por uma neguinha fedida”. Fiquei meio abismada com esse comentário só que não disse nada. Falou durante meia hora, contando como tinham se conhecido em casa de amigos em comum, que desde o começo o cara essa um salafrário, um patife, um cafajeste e mais alguns adjetivos desabonadores que logo esqueci. E ainda disse que eu era a melhor amiga que ela tinha conhecido na vida. Que eu era uma pessoa especial. Mas voltou ao dia em que fui chamada na sala do Diretor. Tentei novamente desconversar e não deu então abri o jogo e falei da promoção. Seu olhar pareceu vagar pela sala com se ela tivesse usado alguma boleta e senti que seu corpo foi para trás como se levasse uma lufada de vento. Calou-se e durante toda a manhã apenas ouvi o digitar furioso dos seus dedos nas teclas do computador. Continuei trabalhando normalmente, fiquei fazendo extra na hora do almoço e as quatro e dez saí para um consulta com o dentista que já havia marcado com antecedência e avisado previamente meu chefe. Um pensamento assombrou minha mente: “não deveria ter comentado sobre a promoção”. Mas passou rapidamente e continuei a viver minha vida.

No mês de dezembro a Ju e eu tínhamos saído fazer happy hour mais do que o normal. Só que esse é um mês festivo e nem liguei. Tinha apenas 36 anos, livre, desimpedida e com uma filha responsável e já criada então achei que era tempo de me divertir um pouco e esperar o novo ano para fazer planos. O chefe de sessão estava de malas prontas para o Distrito Federal e ficaria apenas uma semana aqui na cidade. Havia comentado comigo que teria altos planos quando lá chegasse e que era uma honra para ele ser substituído por uma pessoa “tão capaz e competente”. Decidi então ir a tripa forra e “bebemorar” a minha promoção com a pessoa que dizia sem minha melhor amiga. E logo eu que nunca tinha tido uma “melhor amiga” antes. Fomos a um bar mexicano e até flertamos um pouquinho e trocamos números de telefone com uns rapazes simpáticos, todos cabeludos, de camisas pretas, muito bem vestidos em suas calças de veludo cotelê que nos disseram que tocavam numa banda de blues. Adoro blues. Acho sensual e comentei isso com a minha amiga. Apesar das margaritas consumidas vi um brilho estranho em seus olhos como se fuzilassem e dessa vez foi ela quem desconversou. Ficamos lá até umas onze e meia e Ju levou-me para casa. No dia seguinte era minha folga e dormi até mais e depois preparei um almoço especial para Larissa, pois seria seu último dia de aula do terceiro ano do segundo grau. Estaria se preparando para o exame vestibular que seria dali a quinze dias. Fiquei o dia todo em casa em companhia de um livro do Fernando Moraes e resolvi dormir cedo.

Quando cheguei para trabalhar no dia seguinte senti uma atmosfera estranha na sala e resolvi que não era nada. Coisa da minha cabeça. Resultado de um dia de folga. Lá pelas dez e meia da manhã o Diretor Paulo César chega a nosso setor anunciando que tinha uma grande notícia para todos nós: Que a chefe de seção que substituiria o anterior que havia ido tentar a sorte em Brasília era ninguém menos que minha melhor amiga: Juliana.

Quase caí de costas, mas meu rosto não teve nenhuma reação. Quando ela veio me beijar para receber os parabéns virei o rosto e resolvi tomar um café bem forte para me acalmar do baque. O garoto que trabalhava conosco veio comigo e acabou dizendo: “putz, na próxima encarnação quero ser mulher e gostosa. Essa lambisgóiazinha sentou no colo do Diretor e ganhou um cargo. Tá dando pro cara faz mais de um mês! Ainda bem que meus pais estão abrindo um bar temático e que vou trabalhar com eles na semana que vem administrando o caixo e só estou esperando homologarem minha exoneração. Com essazinha aí no comando eu não fico de jeito nenhum. Tem algo nos olhos dela que não me inspira confiança”. Como eu não pude notar antes o que estava na minha cara! Durante toda minha vida evitei amizades e quando tive uma “melhor amiga” me decepcionei.

Uma coisa eu descobri. A decepção só é um sentimento negativo porque o seu coração fica num grande vazio. Nem ódio, nem raiva, nem desgosto. Apenas o vazio. Apenas o eterno vazio que nunca abandona o ser humano. Não respondi nada a ele. Apenas fiquei com o copo plástico de café na mão e olhando para uma parede...

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 24/02/2010
Código do texto: T2105511
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