AUSTERO ANJO DA GUARDA

Eis-me de volta às atividades policiais. Agora na Delegacia de Crimes de Acidentes de Trânsito. O trabalho é sempre a melhor das terapias. Mesmo humilde, dignifica o homem, devolve-lhe o sentimento de utilidade. É o bom combate, como disse o apóstolo Paulo.

Por carência de escrivães e material permanente, no início fiquei alguns dias sem função, apenas com a obrigação de marcar presença, o que me passava a sensação de preterimento. Entretanto outro delegado adjunto fora lotado ali. Formamos uma dupla à espera de condições para atuar.

Com o meu jeito extrovertido, brincalhão e, às vezes ousado, apresentei-me ao colega, dei-lhe boas-vindas, contei que era recém-chegada, estava ainda sem função, porém, recursos humanos e materiais estavam sendo remanejados para suprir a necessidade e dar-nos condições de trabalho, pois trabalho era o que não faltava. Mesmo com uma vida inteira doada ao mister de fazer polícia, não conhecia o delegado nem ele a mim, embora fosse veterano na classe.

Sinceramente, o doutor parecera-me ensimesmado, enclausurado, deixando transparecer o garbo nas poucas palavras. O corpo atleta e a tez moreno-queimada eram marcantes de sua masculinidade, emprestando-lhe bonito visual.

Como sua colega de trabalho, seria de bom alvitre que desenvolvêssemos uma relação amistosa, mas o reticente doutor sempre estava a ler jornais ou introspectivo num lugar qualquer. Passara-me a impressão de não lhe haver sido simpática, pesando-me a obrigação de revertê-la.

Nossas conversas eram, praticamente, um monólogo de minha parte. Não desisti. Falei-lhe de política, de trabalho, das pernas de aço e até de Pássaro Sem Asas, enquanto ele, simplesmente, meneava a cabeça em afirmativas ou negações. Até hoje nada sei do enigmático colega com quem trabalhei por mais de dois anos. Porém, devo-lhe gratidão e já o inseri no rol dos meus benfeitores. Esporadicamente, chamava-o de “Anjo da Guarda” e ele não sabia o porquê.

Num desses monólogos, contei-lhe de minha atuação na delegacia anterior quando agilizava minha tarefa e diminuía o trabalho aos meus comandados, deixando lá uma cadeira de rodas que me era trazida à porta do carro por um policial, por meio do simples acionamento da buzina, convencionados como código. Manifestei a intenção de exercitar o mesmo procedimento, tão logo estivesse em plena atividade, pois assim diminuiria o trabalho de ter sempre que tirar e pôr a cadeira no porta-malas do carro, uma vez que me conduzo sozinha.

Para minha surpresa, o colega respondera:

— Não creio que os policiais queiram se prestar a tal trabalho de bom grado. Nas primeiras vezes, até pode ser... Mas o certo é que eles terão vergonha de empurrar cadeira de rodas.

Senti como se tivesse levado um bofetão ou ficado nua em público. Olhei-me e vi-me paralítica. O sangue aflorara-me às faces e o nariz ficara feito um pimentão maduro. Controlei a reação e disfarcei o desapontamento. Juro que senti vergonha e medo de mim mesma. Mas ele tinha razão. Era a verdade nua e crua que eu nunca tivera a oportunidade de experimentar. Na delegacia anterior era titular, tinha sob a minha égide toda a equipe de funcionários que se debulhava em préstimos e atenções, fazendo-me querida. Em casa e entre amigos, pela mesma forma. Por isso parara no tempo e jamais havia atinado para tão grande dependência.

Foi aí que me lembrei das esnobes madames que não carregam sacolas ou embrulhos. E uma cadeira de rodas seria motivo muito maior de constrangimento, principalmente em público.

O doutor tinha razão! Apenas, estava sendo sincero e direto, banido da preocupação de agradar-me ou não — pensei atordoada, sem conseguir esconder os olhos marejados e o coração dolorido.

<strong>Escritura do tempo</strong>

Acuada pelos preconceitos,

Cavalgo no dorso da vida.

Rasgo sonhos para engendrar versos.

Alongam-se pelejas.

Cálida, ainda estou

A semear afeto e lágrimas.

Escritura do tempo,

Vou registrando os dias.

De instantes vazios

E certezas incógnitas,

Reconstruo a vida.

Teço a síntese de saudades fugidias,

Argamassa de sonhos,

E guardo no peito

Os retalhos do que sou.

No rosto,

O sorriso, a coragem

E o encantamento de viver.

Em estado de paixão

Tento superar as perdas

E o amor ainda se faz em mim.

Naquele dia, retornara a casa com mais uma preocupação: conseguir, eu mesma, colocar a cadeira de rodas dentro do carro a qualquer custo. Era a minha mais nova batalha. Havia driblado tantas outras, e por que não essa?

À noite, não conseguira conciliar o sono, pondo-me mais uma vez à procura de soluções para a esmagadora realidade. A voz do colega ficara gravada nos meus ouvidos e repetia-se sem tréguas: “... eles terão vergonha de empurrar cadeira de rodas.”

Amanhecera! Um dia lindo, meio peralta, exibindo um sol maravilhosamente brilhante que me acariciava as faces através da janela do quarto, bisbilhotando minha intimidade com feixes de raios incandescentes, feito colares de pedras transverberadas numa policromia indescritível. Alfredo acabava de chegar de mais uma noite de plantão. Sem nada comentar, tomei o elevador e fui até a garagem no subsolo.

Lá, o ambiente estava propício ao meu novo aprendizado. Não havia ninguém. Nem mesmo o faxineiro. Passei para o banco do motorista, tirei as rodas da cadeira, acomodei-as na poltrona traseira e tentei passar o seu corpo (da cadeira) por cima do volante, com a intenção de colocá-lo no assento do passageiro. Por mais que tentasse, o esforço era em vão. Não tinha equilíbrio e as forças estavam minadas com o peso da cadeira. Era como se uma formiga quisesse carregar um elefante. Não desisti. Permaneci ali, tentando, tentando, procurando o jeito, respaldada na afirmativa popular: “não é questão de força física, mas de jeito”.

Após três horas, voltara a casa com as vestes molhadas de suor e o rosto parecendo tampa de chaleira. Mesmo não tendo alcançado nenhum progresso, a minha determinação era ferrenha. Iria tentar tantas vezes fossem necessárias para conseguir o meu intento. Não podia subjugar-me ao corpo paralítico. A mente estava bem direcionada.

À tarde, no trabalho, não vi o colega delegado, mas começava a devotar-lhe gratidão.

Nas manhãs seguintes, os treinos continuaram cada vez mais acirrados e com efeitos proveitosos. Parecia que ganhava musculatura e força, mas quase sempre voltava com escoriações nas coxas, motivadas pelos parafusos da cadeira, além de danos materiais no volante, no painel do carro e nas minhas vestes.

Não podia perder a esperança. Lembrava-me de Martin Luther King: “Não podemos acabar com a noite, mas poderemos acender as luzes”. E eu esperava essa hora. Tinha que existir uma saída, uma luz. Até que encontrara o tão almejado jeito: sobrepus a traseira da cadeira sobre o batente da porta do carro e reclinei o banco do motorista, ficando quase deitada, quando me senti equilibrada e com força suficiente para levantar o corpo da cadeira, passá-lo por cima e posicioná-lo ao lado (a cadeira é compacta, não fecha em X, apenas o encosto dobra sobre o assento). Pronto! Havia conseguido! A persistência é mesmo o caminho para o sucesso! Eu havia vencido!!!!

Fiz tudo de novo para confirmar e voltei ao apartamento com o sabor da conquista estampado no rosto. Até uma vizinha que encontrei no elevador referira-se ao meu aspecto de felicidade. Nada comentei. Estava ainda sob o impacto da emoção. Acho que mereceria até um “Oscar” pela façanha. Não via a hora de fazer a demonstração para o Alfredo, os filhos, e, principalmente, no trabalho, quando esnobaria a minha nova condição igual a dos andantes: sem ajuda de ninguém. Que independência estava a experimentar! O coração estava em festa e mais essa vitória juntar-se-ia ao arsenal de minha trajetória pela vida.

Hoje, locomovo-me sozinha para qualquer lugar, sem ter de pedir favores ou ficar dependendo de terceiros. Realmente, Aristóteles Onassis tinha razão: “O homem só fracassa quando desiste de tentar.” O fracasso é companheiro das vontades moribundas.

À porta da delegacia, diante dos colegas, era motivo de felicidade fazer o meu “show” todos os dias, como costumo dizer ao colocar a cadeira no carro, dispensando ajuda.

Mesmo com tantas vitórias, lá no fundo da alma, batia uma saudade do tempo em que as conquistas eram outras e o caminhar era ato tão normal que eu nem me dava conta de sua importância. É, para sermos felizes é necessário que tenhamos sido infelizes antes. É o preço do conhecimento, da valoração. É lamentável que o caminho para tão importante aprendizado tenha de ser por meio da dor. O caminho das pedras...

Genaura Tormin
Enviado por Genaura Tormin em 19/02/2010
Reeditado em 19/02/2010
Código do texto: T2095850
Classificação de conteúdo: seguro