RATO DE ESGOTO
Incapaz de enfrentar a força de sua dignidade, o poder de sua moral inabalável, cedo, afinal, cansado. Lentamente reúno coragem e encaro os olhos daquele homem, daquele Deus, e busco neles qualquer hesitação que me fortaleça; nada encontro, senão uma estátua rija e imóvel, inerte, com o firme dedo indicador esticado em minha direção, apontando para meu rosto ou, talvez, para minha alma. Desprovido, já, de toda autoconfiança e coragem, baixo gradativamente o cano de minha .38, pendendo-a, em seguida, apenas por um dedo mole e um pulso caído. Observo o mestre e começo a perceber os traços relaxando-se, aos poucos, os olhos e as mãos descontraindo-se. O homenzarrão, com seu terno impecável, começava a deixar escapar as primeiras gotículas de suor da testa, e já não se parecia tanto com um santo. Quando tirou a arma de minha mão, pela primeira vez, culpei-me pela desistência; sentimento que logo desapareceu, afinal, como lutar contra tanta força, contra tanta ética? Sua simples presença já era suficiente para causar-me estranhas sensações de pressão, vergonha e encurralamento. Mesmo com o revólver na mão, não consegui sobrepor-me a meu adversário, sempre tão tranquilo e soberano, um contraste perfeito com minhas tremedeiras e vermelhidões constantes.
Desta forma, fui desabando, tanto física quanto psicologicamente, enquanto o mestre, infinitamente maior à minha frente, em nenhum momento perdia o controle da situação. Quis abraçá-lo. Não podia. Não era mais criança e minhas atitudes seriam julgadas. Chorei, apenas, odiando-me por mostrar-me tão fraco, embora nitidamente sem mais forças para lutar. O professor deu dois passos até a porta, julguei que para chamar a segurança; pelo contrário, baixou a cortina e trancou a porta, escoltado pelos olhares surpresos da secretária em prantos, e os meus, agora arregalados e trêmulos de medo.
- Agora nós vamos conversar. – falou, puxando uma cadeira, impassível.
Admito que, desde o início, julguei a coisa toda uma péssima ideia. Entretanto, quando Fael, o bandido mais perigoso e respeitado do bairro, bateu à minha porta, senti os limitados horizontes de minha existência ampliarem-se subitamente.
- Tu sabe que estamos planejando uma operação das grandes? – perguntou-me Fael.
- Tô sabendo. Eu tô dentro, né, Fael? Tu sabe que eu sou de confiança! – a resposta do outro foi uma cara de dúvida.
- Pode ser...
- Pô Fael, daquela vez eu me desconcentrei... Mas depois fiz tudo direitinho, né?... Né?
- O problema não sou eu, cara. Eu confio em ti. Mas os outros guris, não. Querem uma prova da tua confiança...
Gelei, sabendo que uma provação nunca era um bom negócio. Fael leu meus olhos e, provocando-me, questionando-me, começou a jogar:
- É... Acho que devo dar ouvidos a eles, mesmo. – falou, já se levantando para ir embora, possivelmente deliciando-se com a dúvida cruel que se instalava em meu rosto e duelava em minha alma. Afinal, eu bem podia ser um homem fraco de espírito e até mesmo influenciável, entretanto, a falta de inteligência não era um de meus defeitos. Desde o momento em que Fael batera em minha porta, desde que analisara seu rosto e ouvira seu tom de voz, sabia que estava armando alguma para mim. Longe de ser seu amigo, eu nada mais era que um dos guris do bairro que corriam atrás dele constantemente à procura de trabalho. Desta forma, se ele, pelo contrário, procurava-me em minha própria casa, certamente seria para envolver-me em algum negócio escuso, terrível, o qual nem ele nem seus homens de confiança se arriscariam para resolver. Precisavam de alguém desesperado, que estivesse disposto a tudo para ganhar respeito no bando. Esse alguém era eu.
Mesmo suspeitando do perigo – ou tendo certeza dele –, o orgulho não me deixaria recusar a oferta de, possivelmente, obter uma vida melhor, de, possivelmente, ser respeitado... de, possivelmente, ser alguém.
- Não, Fael. Eu faço o que tiver de fazer.
- Eu sabia. – voltou imediatamente, sorrindo, como se já esperasse esta minha frase.
Contou então qual seria minha provação e, pela primeira vez em minha vida, quis morrer. Meu teste, exposto como se um ato casual fosse, consistia em matar um homem. Um professor. Querendo saber o que eu pensava de toda a situação, querendo uma resposta minha, Fael indagava-me, e eu nada respondia, sem ter o que dizer. Sabia apenas que, naquele instante, dividiam-se à minha frente dois caminhos opostos, irretornáveis, a partir dos quais eu criaria minha identidade:
O “sim” significava a possível prisão ou uma vida de crimes;
o “não” significava o caminho que jamais considerei, a vida limpa. Tentar arranjar emprego, sem ter experiência; começar a estudar... Improvável. Impossível.
Quem nasce pra ser um guerreiro, só pode ser um guerreiro.
Assim, embasbacado a ponto de não conseguir dizer palavra, assenti com a cabeça; várias vezes, inclusive, já que Fael perguntava insistentemente se tinha certeza, se podia confiar em mim.
Depois disso, ainda ficou em minha casa alguns momentos. Conversamos um pouco, mas, por mais que insistisse, não quis me revelar os motivos para intencionar liquidar o professor:
- Um soldado não questiona, um soldado executa. – afirmou, com frieza.
Após alguns minutos jogando fora meu tempo e o dele, falando sobre besteiras e futilidades, perdi o medo que tinha de Fael; de fato, não me parecia, naquele momento, capaz de fazer metade das coisas que corriam a vizinhança como de sua autoria.
Este homem, o mais respeitado do bairro, não me assustava tanto quanto o professor, postado silenciosamente numa cadeira, com seus olhos vidrados, fixos nos meus, enquanto eu falava. Pressionado pelo incrível poder moral do sujeito, eu tremia, gaguejava, sentia-me corar frequentemente. Sem poder medir as palavras, simplesmente falava, contando detalhe por detalhe, citando nomes que jamais deveriam ser pronunciados diante de uma autoridade. A cada nova confissão, eu irritava-me com minha própria estupidez, porém, já tendo contado um pouco, falava também todo o resto, incontrolavelmente, desesperadamente, diante daquele Ser distinto, inabalável, silencioso.
O professor igualmente surpreendia-se com a riqueza de minha confissão, a ponto de, em alguns momentos, quase mandar-me parar; não o fez, entretanto. Ao contrário, foi paciente enquanto pôde, ouvindo-me com atenção, mesmo sem desmanchar a cara fechada que se assemelhava muito à de um juiz.
Não senti em sua expressão, em nenhum momento, uma pontada de medo que fosse, mesmo quando lhe afirmara que homens perigosos queriam o seu fim. Neste ponto de meu relato, apenas voltou-se à secretária e pronunciou, em tom baixo:
- É o que se ganha por tentar fazer algo de útil pela comunidade deles mesmos... – e sorriu, num tom que se aproximava do irônico.
Um dia após a visita de Fael, decidi ir até a escola conversar com alguns conhecidos meus, alunos do professor, e tentar descobrir o que o mestre teria feito para merecer a pena de morte. Sei bem que ganhar intimidade com minha vítima poderia tornar-se um ato arriscado, pois certamente diminuiria meu ímpeto em concretizar o trabalho sujo; entretanto, por mais que tentasse, não conseguia calar minha consciência.
Pulei um muro facilmente, entrei na escola e logo encontrei Jéfe, um guri de 14 anos o qual, há uns meses atrás, vivia no meu encalço pedindo trabalho, exatamente como eu fazia com Fael. Confesso que gostava dele, era muito esperto pra sua idade; no entanto, sumira das ruas repentinamente, a ponto de eu pensar que havia sido preso. Ficou muito surpreso em ver-me.
- E aí, sumidinho!! – falei, num tom alegre.
- E... e aí, cara! – respondeu, temeroso, olhando para os lados, procurando alguma coisa.
- Parou de me procurar; foi preso?
- Não, não. Hã... estou só... envolvido em outros projetos.
- “Envolvido em outros projetos!?” – Ri alto – Essa é boa! Tudo bem, outra hora falamos sobre isso. O que quero saber é outra coisa: Tu é aluno daquele professor novo, né? O que anda sempre todo engravatado...? – Jéfe assentiu com a cabeça, nitidamente tenso – Os caras do bairro estão putos da vida com ele. Tu sabes por quê? – consegui atrair sua atenção.
- O quê?? Por quê?? Ele é um cara muito legal, se importa com a gente! Nos faz acreditar que dá pra viver estudando, sabe? Trabalhando... – falou com convicção, talvez pressentindo o risco que o homem corria.
- Ah... – sorri sarcasticamente – vais me dizer que ele te engambelou...? Achei que tu fosse um cara esperto, Jéfe...
- E aprendi que sou, mesmo. – revelou, com olhar lotado de dignidade. Dias depois eu reconheceria no mestre aquele mesmo olhar. – O professor nasceu pobre. Estudou o quanto os pais puderam sustentar ele. Depois, ele mesmo se sustentou, trabalhando duro. Fez faculdade. Foi um aluno exemplar. E veio de baixo, igual à gente. E anda pelas ruas, e entra em qualquer lugar, e conversa com qualquer pessoa, sempre de cabeça erguida; sempre como um homem, nunca como um rato! - o olhar fixo do guri, sua firmeza e confiança na voz me assustavam. Que homem era aquele, capaz de semear tanta força ética em meninos tão desacreditados? Cada vez eu me odiava mais por aquilo que estava prestes a fazer... - Eu acho que mudei, cara. – continuou – Ou, pelo menos, tô tentando. Tu pode, também. Sempre é tempo! – completou aquela boca de menino, aquele jeito de homem, aquela voz de Deus.
Antes que pudesse lhe responder, lhe jogar na cara o fato de não querer mudar, não ter motivos pra mudar, fui interrompido:
- Jéferssom!!!! – berrou, repentinamente, uma voz feminina, muito irritada, ao longe. – Já pra casa!!! – Jéfe, agora Jéferssom, antes de atender a ordem de sua mãe, virou-se pra mim e implorou, já com olhos marejados, de uma simples criança, novamente:
- Fala pros caras que o professor não faz mal pra ninguém!! Que ele é gente boa!! Por favor...
- Agora, Jéferssom!!!! – gritou novamente a mãe. Desta vez o guri não pensou duas vezes: foi já correndo ao encontro da velha que, com o avental na cintura, como quem sai às pressas de casa, me lançou um olhar enfurecido, ralhando em tom alto o suficiente para que eu pudesse ouvir – Tu não me disse que não ia mais se meter com essa gente??
- Ele só queria me perguntar uma coisa... – defendia-se o guri.
- Não me interessa!! – E, de súbito, virou-se para mim – Deixa o meu filho em paz, ô seu vagabundo!!!! Ele não vai mais andar com vocês!!! Vagabundo!!! Filho da puta!!!! Sem-vergonha!!!! – e assim seguiu, aos berros, totalmente descontrolada, a mulher, quase aos prantos. Jéferssom puxava-a, arrastava-a com dificuldades, enquanto o senso materno da mulher agia puramente.
Não vi o que aconteceu depois, afinal, após os primeiros gritos da mãe desesperada, sentindo-me um lixo, envergonhado, arrasado, fugi, quase correndo, daquela cena. E o fiz rastejando, de volta para o esgoto.
Este rato, em meio a tantos conflitos externos e internos, só tinha uma coisa na cabeça: “Este professor deve ter feito algo de terrível para os bandidos!”. Meu palpite? Tinha certeza que o homem devia muito dinheiro por drogas compradas. Por mais surpreendente que pareça, existiam e ainda existem educadores que embarcam neste navio. E, se o meu homem o fazia, bem que merecia uma bala na testa.
De volta à sala na qual estava preso com o professor, durante o resto do interrogatório, falei tudo que o homem queria ouvir. Respondi-lhe todas as suas perguntas. Ele, contra todas as minhas expectativas, parecia interessado também em mim e em minha história mesmo em circunstâncias tão tensas, e eu, como que hipnotizado, além de contar-lhe tudo que sabia do caso, também falei de minha vida pessoal, minha infância, meus sonhos há tanto esquecidos. Ele, encarando-me constrangedoramente, sem tirar os olhos dos meus, ouvia-me. E era tão bom ser ouvido! Fui ganhando uma leveza indescritível, embora de tempos em tempos, rajadas de culpa e medo devolvessem a tensão ao meu inconsciente. A secretária, sentada a um canto e alheia à toda a conversa, chorava incontrolavelmente, às vezes baixo, às vezes com exagero. Tão concentrado estava o mestre que nem lhe dava atenção, tampouco se lembrou de lhe dar autorização para sair.
Quando terminei meu relato, a sala ficou em absoluto silêncio durante vários minutos, a ponto de ouvirmos o barulho dos carros e as conversas de pedestres na rua. Depois de um longo período, no qual o ar tornara-se pesado e difícil de respirar, o professor, finalmente, rompeu o clima temeroso, mas, para minha decepção, com a pergunta que eu mais temia, e a qual gastei tantos dias e horas tentando, inutilmente, responder:
- Tu sabes por que querem me matar?
Envergonhado por ele e por mim mesmo, balancei a cabeça negativamente, e mal havia terminado de fazê-lo, o homem, pela primeira vez, perdeu o controle. De súbito, levantou, deu um chute que jogou longe a cadeira e berrou para mim:
- Maldito!!! Tu és o culpado!! Matador de aluguel medíocre!! Não venha me dizer que é vítima das circunstâncias!!! Queres me matar?? Queres ser um bandido??? Eis a tua arma! Te rende, e põe em prática teu plano covarde! – e nisso, tirou o revólver da cinta e, segurando-o pelo cano, esticou-a em minha direção. – Pega, covarde. – vociferou, bufando e respirando com dificuldade.
Assustado com o rompante do homem, sem saber como agir e procurando alguém pra me dizer o que fazer, olhei em seus olhos e vi a convicção; olhei os da secretária, e vi o terror; olhei os meus próprios, refletidos na janela fechada, e vi a miséria, a pobreza, não sociais, mas espirituais. Senti nojo. Em comparação com o professor, tão firme e seguro, eu era apenas um rato. Um rato do esgoto mais sujo da cidade. Nada mais. E este rato corria insanamente em sua roda tentando fugir, mas nunca conseguindo sair do lugar. E, se o rato eu era, de que serviria esta comparação com aquele homem, tão perfeito em seu terno e gravata impecáveis? Ele também já fora pobre um dia, mas optou pela revolução: jamais acomodou-se com a ignorância e estudou o quanto pôde, evoluiu, cresceu, ganhou auto-respeito, sem nunca deixar de lutar por seu sonho inatingível: mudar o mundo. Eu, por outro lado, sempre dancei conforme a música: meus amigos, na falta de respeito, tentavam conquistá-lo roubando todo o dinheiro que pudessem; eu os seguia. Mais fácil que criar uma revolução. Se meu destino sempre fora esse, por que (e como!?) mudar agora? Não, que nasce para ser em guerreiro, só pode ser um guerreiro! Juntei coragem, encarei o enfurecido professor e, lentamente, peguei a arma de sua mão, ainda amedrontado. Os gritos apavorados da secretária pareciam tão longínquos, tão distantes... Ela jamais entenderia o que se passava naquela sala, aquele duelo entre dois mundos, entre duas cabeças. Duelo este covarde, pois um dos combatentes era absurdamente mais forte do que o outro, e eu tinha consciência disso. Enfim, ambos lutaram como sempre o fizeram: enquanto o forte enfrentou as expectativas e agiu conforme sua conduta, o fraco fez o que dele se esperava, mais um ato covarde:
Vagarosamente, apontei a arma para o mestre, e, mais uma vez, pela última vez, encarei aqueles olhos perturbadores. Desta vez estavam tranquilos e, soberanos, humilhavam-me, conhecendo meu passo seguinte.
Eu, medíocre e covarde por natureza, sem forças para confrontar o bravo homem que me desafiava, desisti da batalha, e, com minha decisão, ambos os lutadores saíram derrotados...
Disparei duas vezes, inicialmente, mas lembrando-me da força hercúlea do mestre, desferi mais três tiros.
Escolhi meu caminho naquela assustadora encruzilhada.
Após um minuto, voltei-me para a secretária, que berrava, em prantos. Ainda necessitava de uma resposta:
- Por que eu o matei? O que ele fez? Ele devia dinheiro de drogas, né?
A mulher, que se ajoelhara ao lado do corpo caído, levantou a cabeça, surpresa, revoltou-se, e, perdendo o medo, gritou, entre lágrimas:
- Dinheiro de drogas??? Idiota!!! Queriam ele morto porque estava tirando os adolescentes do crime, e colocando todo o bairro contra eles! Queriam ele morto porque ele era um heroi!! Porque queria que as crianças tivessem uma vida digna!! Idiota!! – e recomeçou o choro.
Mais um tiro e a lamúria parou. Ficou só o vazio e a depressão. Só a tristeza.
Antes de sair pela porta, voltei-me e fitei o homem caído, a fim de, finalmente, sentir-me superior a ele, já que nem com a arma na mão o havia conseguido. Para minha surpresa, o mestre ainda estava com os olhos abertos, e eles encaravam-me sem terror ou espanto, ridicularizando-me. Ainda sentia o peso de sua moral, mesmo morto. Mesmo morto, sobressaía-se a mim. Corei novamente por sentir sua presença e, sem conseguir desrespeitá-lo, parei de olhar, envergonhado.
Fugi da sala desnorteado, esquivando-me pelos cantos, exatamente como nós, os ratos, fazemos.