Underground Tale

Dava prá sentir que a atmosfera estava ficando pesada.

Que dúvida. Carne nova no pedaço. 14 ou 15 aninhos a franguinha. Dava prá ver a movimentação dos vapores e dos aviõezinhos. Dava prá olhar prá cara dos proxenetas e vê-los babando de tesão. Dava prá sacar a ansiedade dos traficas prá descolar uma cliente novinha e com um puta corpinho. Dá até prá sacar os porcos do tiras fechando o cerco.

Sou macaco velho. Não me meto em sujeira. Quatro anos de regime fechado por causa de cagüetagem muda o pensamento do sujeito. Nada como uma cervejinha gelada no fim da tarde olhando o movimento. Muito melhor que ficar na tranca com um bando de vagabundos 24 horas por dia suando e praguejando do teu lado. Cheio de safados paranóicos e loucos da mente prontos para fazerem alguma cagada. Ou voarem no seu pescoço. De vez um quando uma rebelião e tropa de choque descendo a borracha na população e os pastores alemães pegando doído. Tô fora dessa jogada. Sou otário agora.

Preferi ficar na rua. Cadeia é prá malandro que se acha muito esperto. Acontece.

Mas como eu ia dizendo, um viciado de merda levou a menininha na bocada. Era a primeira vez que ela comprava crack. Fiquei só na observação. Meu negócio agora é outro. Carretas e carregamento pesado. Perdi duzentos quilos na última apreensão. Consegui fazer passar numa boa as outras doze toneladas vindas direito de Ponta Porã. Mas duzentos quilos nesse ramo é mixaria. Repõe-se rapidinho com mais duzentos quilos. Nada que me faça esquentar a cabeça. Não toco na droga. Não faço tráfico pé-de-chinelo mais. Se for para rodar é para rodar bonito. Não como da ocasião que caí em cana com meros cinco quilos de pó e a filha da puta da promotora e o corno manso do juiz me colocaram na geladeira. Advogado? Bom é morto. O meu me levou o que eu tinha e que não tinha também. Advogado comigo é na bala. Inclusive esse pilantra. Caiu com três balaços na testa. Deixei uma mulher viúva e dois bacurizinhos órfãos. Que nem aquela piadinha do oficial de justiça que lavrou um termo que dizia que o “de cujus” deixa “de cuja” e “de cujinhos”. Ossos do ofício. Ah, o dedo-de-seta quando cruzei mandei pro colo do capeta. Só prá dar o exemplo

Mas quando pinta uma coisinha fofinha daquelas e ainda por cima menor de idade e cheia de má intenção a malucada desgoverna e fica totalmente fora da realidade, fora de controle. Só fique sacando o movimento. Uísque gringo de 12 anos. Essa era minha. Fumar um baseadinho faz até bem. Agora, neguinho que fumar pedra e me dizer que segura onda? Só se for debaixo da terra. Já vi muito derramamento de sangue por causa dessa bela porcaria. Quem tá fora quer entrar, quem tá dentro quer sair e ainda tem o prego que diz que gosta dessa vida... Vai saber... Então, ela já chegou intimando e cheia de moral. E de bufunfa. Pegou vinte de uma vez só e vazou da área. Continuei no meu movimento ritmado de levar o copo à boca e de levantar o braço para o garçom e pedir mais. Todo mundo diz que favela é boca quente. Boca quente de cu é rola, meu irmão. Principalmente em Curitiba, essa cidadezinha esquisita. O centro é onde rola o agito pesado. Parece que todo mundo enlouqueceu. Que tá todo mundo doidão e viciado. Camarada de infância matando camarada de infância com tijolada na cabeça, tudo pelo bagulho.

Pegou e fumou a primeira vez, pode ter certeza que o freguês volta. Fissurado. Coisa mais impressionante que eu já vi. Não sou santo. Já matei, roubei, cheirei e fumei essa bosta. Prá mim foi como se a morte viesse com tudo e ainda me desse uma piscadela ma liciosa. Nunca mais. Uma vez para nunca mais e também para saber como era. Desculpa de aleijado é muleta, já dizia minha santa mãezinha. A menininha voltou no dia seguinte atrás de mais. Gostou do produto. A princípio parecia limpeza. Dinheiro na mão e se te vi nem me lembro. É sempre assim no início. Parece domingo no parque. Mas - por experiência própria – a coisa degringola para a fuleiragem mais rápido que a língua de um leproso nas tetinhas de um virgem. Já vi demais esse filme. Outro motivo para eu só querer saber de grandes transações. Molha a mão da polícia, entrega um caminhão para eles e fica tudo elas por elas. Deixa os mortos de fome ficar fazendo joguinho de pouquinho e arranjarem uma condenação porque o veado do capa preta quer mostrar serviço e crucifica qualquer zé-mané porque o imbecil tava vendendo uma pacoteira de cem gramas de maconha...

Não deu outra. Nunca dá outra. Não sei ainda porque essa piázada continua insistindo essa barca furada. É só ler os jornais. Ou não. No jornal não aparece nem metade do que é treta real. Se tiver dezoito presuntos nas páginas multiplique por dois e nos finais de semana e feriados por quatro. Essa é a verdade. No mundo da droga e do crime não existe segunda chance. O “dessa vez passa” não faz parte do vocabulário corrente. O que faz parte é tiro na boca, paulada, ripada e outros carinhos nada leves. Mas a garotinha queria saber o que tinha no fundo do poço. Coisa mais fácil de descobrir.

Depois da terceira ou quarta vez ela já pintava com mercadoria. Não com toda aquela grana. Roupas chiques, aparelhos eletrônicos, computadores e cousa e lousa, câmera filmadora. Tudo do bom e do melhor. Receptação e posse de rés furtiva é maior roubada que o marginal pode entrar. Os homens não querem saber, te extorquem e ainda te levam passar uma temporada na delegacia tomando borrachada três vezes ao dia. Mas o povo é burro e insiste!

Não sei qual é o fascínio que as armar exercem sobre a mulherada. Quanto mais grosso for o calibre o seu trabuco (não pense besteira, meu!), mas gostosa vai ser a mina que você pegar e essa não era exceção. Envolveu-se com um galeguinho de dezoito anos que era o mula de confiança de um patrão de primeira linha. O garoto andava com uma. .99mm na cintura, cheio de marra. Mas também entrou de cabeça na droga e perdeu todo o crédito. Crack é isso aí mesmo, minha gente. O cara fuma uma ou duas vezes e já está viciado e xarope. Perde a moral, perde a decência, a noção do perigo, o amor aos dentes e a vida. Esse é o mundo do crack. Malandro demais vira bicho. Isso é lei. A única lei. Não aquela perda de tempo que está escrita em códigos e outras embromações. A única lei que existe é a lei da rua e da cadeia. O resto é perfumaria.

O casalzinho agora andava molambento, feito barata tonta, paranóicos, dependentes, à deriva. Começaram a dar pequenos golpes e furtos para sustentar o crescente vício. E eu como sempre só olhando de fora e sorvendo doses e mais doses. Gastando meu merecido dinheirinho e procurando um apartamento num ponto estratégico e com uma vizinhança tranqüila.

Uma noite eu estava chegando no bar de sempre e já fui pedindo o de sempre. Tinha um jornal popular na mesa ao lado. Comecei a ler e acendi um cigarro. Li as notícias políticas, o resultado do turfe e o placar do Atlético, a página de economia, os editoriais e a página policial e uma foto tétrica. Foi ali que deparei com a matéria:

Jovens perdem a vida em acerto de contas por droga

“Os jovens Carlos Eduardo F., vulgo “Formiguinha” a sua namorada Aline J.S., de 18 de 14 anos , respectivamente, forma assassinados na madrugada de ontem, na Rua Saldanha Marinho, nas proximidades da Praça Tiradentes. Eles são as duas últimas vítimas do consumo de crack em nossa cidade. Os milicianos G. e A. que atenderam a ocorrência informada por uma denúncia anônima encontraram os corpos sem vida baleados com quatro projéteis na cabeça e no peito. A polícia afirma com certeza que essa foi mais uma baixa em virtude da dependência de entorpecentes e que o crime ocorreu devido a um acerto de contas”...

Alguma dúvida, amigão? Foi que pensei ao terminar de ler a matéria. Sorvi meu uísque em um gole, acendi um cigarro, dobrei e devolvi o jornal onde estava e pedi mais uma dose dupla. Depois não pensei mais no assunto.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 12/02/2010
Código do texto: T2083622
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