O ESTUPRO
O ESTUPRO
Ainda lembro aquela casinha lá no alto da Rua Anísio de Abreu. Tinha seis anos de idade e gostava de correr para desperdiçar energia, na verdade, acho que essa foi uma forma que minha mãe encontrou para me fazer dormir mais cedo, e no final sempre dizia, Olha lá hem, desse jeito você acaba ficando mais forte que seu pai, vá, dê mais uma volta e vamos tomar banho pra jantar. Ela sabia da minha admiração pelo pai, a farda da Infantaria lhe caíra muito bem e formava a imagem perfeita do herói. Eu dava várias voltas no quarteirão, até cansar as pernas. Minha mãe vigiava tudo da calçada com olhos atentos, sentada em sua cadeira de balanço descansando o corpo, era assim que ela esperava o crepúsculo adormecer, embalando a imaginação na rede do horizonte. Dá licença Dona Ana, os meninos estão aí, perguntou o Zeca quase aos sussurros com medo de perturbar aquela paz solene, Estão na televisão, pode entrar, e volta a se embalar. O Zeca morava na casa ao lado com o cunhado Nery, não falava muito, sonhava em ir para o exército no próximo ano ao completar maior idade, tinha verdadeira admiração pelo uniforme verde-oliva. É um desses rapazes bem afeiçoado, sujeito prestativo, desses que gostam de ajudar, está sempre por perto, e quando não, às vezes com o pai na mercearia onde costumamos comprar, traz as compras por gentileza ou por obrigação do ofício, faz amizade rápido com as pessoas, vez e outra aparece para assistir a algum programa de televisão, ainda uma novidade nas ruas da periferia de Teresina, mesmo em preto e branco. Tarzan era o nosso filme preferido, quase sempre acabava em brincadeiras de lutas pelo meio da casa, arte que já me dera conta de um nariz inchado e alguns galos na cabeça, as quedas e os hematomas eram constantes e necessários como feitos de bravuras, Já pra fora, senão me quebram tudo, dizia minha mãe nos expulsando para o corredor do terraço onde a luta continuava até que o Zequinha fosse embora, depois, eu e meu irmão medíamos forças, Vamos saber quem é Tarzan, perguntava ele em tom de provocação, deitado no chão colocando a mão em posição de queda de braço. E assim o jovem simpático Zeca vai ficando ficando e ficando. De repente um ano se passa, é Copa do Mundo. A tarde está quente, o Cabo Luiz trouxe a família toda de Timom, a casa está cheia de vozes agitadas e mãos exaltadas que de vez em quando uivavam em coro, UUURRAAAA, essa passou perto, é jogo das quartas-de-final, o Brasil está tenso. Há uma euforia estampada em cada rosto que eu não entendo perfeitamente, mas é tudo desinteressante e sem graça. Mãe, posso correr lá fora, perguntei sem muita convicção, Fique só na calçada está bem, mas não saia, respondeu sem tirar os olhos da televisão enquanto servia petiscos aos convidados. O Brasil fez o seu primeiro gol em meio a gritarias histéricas e pulos de Tarzan, era um jogo importante, não lembro quem ganhou, mas sei que o Pelé jogou muito. Fui para o terraço que dava saída para a rua, peguei algumas pedrinhas, as mais redondinhas que achei. Um-dois-três e risquei um triângulo no chão, arrumei uma pedrinha em cada canto, tomei distância para acertá-las como alvo, para cada acerto um grito de vitória ecoava pela casa toda, VIVVVVAAAAA, não sei pra que televisão, esbocei um tantinho de revolta, Eu também acho, respondeu o Zeca que acabara de chegar, ah deixa eu acertar uma também, falou imitando a voz de uma criança e logo entrou na brincadeira. Algum tempo depois enjoamos a diversão. Vamos brincar lá em casa, ah vamos, vamos, quero te mostrar um brinquedinho novo, ah vamos, disse o Zeca de novo imitando a voz meiga de uma criança muito animada, A gente vai e volta num pulo, olha, te dou um desses, e tirou do bolso dois pirulitos do zorro. A casa do meu amigo Zeca estava vazia, passamos direto para o quintal e antes de chegarmos lá eu já havia devorado o meu primeiro tablete de chocolate. Um riso estranho estampava-se no rosto do Zeca quando ele agarrou meus braços e os dobrou para trás, pedindo que eu tirasse a roupa, Não gosto dessa brincadeira, disse eu pedindo para que soltasse meus braços, Não quero machucar você, é só brincadeirinha, olha como tiro a minha, viu. A cena que choca provoca também repugnância num instante de perplexidade. Aos prantos e completamente confuso, sem entender direito aquela cena violentamente grotesca, e quem era aquela pessoa estranha mascarada de amigo que eu rejeitava com todas as minhas forças o que desconhecia, mas que parecia ser inevitável. Ao debater-me inutilmente entre as mãos de cárceres do meu agressor, com os braços presos para trás projetava o corpo para frente, tentando desesperadamente me libertar, meus pulsos doíam entre as mãos do aliciador, foi quando senti as minhas roupas escorregarem até aos meus pés, e a vergonha da nudez soou como uma FORTE pancada na minha cabeça que, já sem esperanças, esmoreceu-me as pernas com o peso do mundo. O pecado me dominou todo o corpo ou teria sido a culpa de ser criança ou de ser inocente, não importa, só o mais completo abandono me invadia os pensamentos enquanto tremia de medo e pavor, os soluços ficaram cada vez mais altos, até que uma voz de mulher soou do outro lado do muro, Tem alguém chorando na casa do Nery. Nem um grito sequer conseguiu minha garganta, só o choro da humilhação, eu era um bicho sujo. Sofreria ali a minha primeira tentativa de estupro, entre risos sádicos que me pediam calma com voz mansa e branda enquanto roçava o corpo imundo ao meu. A invasão é brutal para minha compreensão inocente de garoto ingênuo. Com medo de ser descoberto, o aliciador joga meu corpo de encontro à parede que em seguida cai ao chão, Vá embora, menino chorão da mamãe e devolve o meu zorro. Levantei com uma das mãos apoiada no joelho sangrando para estancar a dor, enquanto com a outra enxugava as lágrimas do rosto uma dor maior. De volta à casa, nem todo o banho do mundo limparia a indecência da minha alma, e senti um terrível asco de mim mesmo. Me escorei no canto do terraço aos soluços enquanto o corpo escorregava pela parede e tomava forma de feto e retornava ao útero da minha mãe. De alma vazia e ausente de palavras, buscava respostas, mas fiquei ali, encolhido, imóvel, com a minha escuridão, tentando sumir como um nada dentro de mim.
Leandro Dumont
13/07/2009