A MUDANÇA

A MUDANÇA

Aquele vento no rosto era pura liberdade, fazia arder os olhos com a força de suas asas, mas não tanto quanto ardia dentro da alma o coração. As palmeiras de babaçu passavam rápido pelas laterais do caminhão, misturando as cores verdes da mata, eram soldados gigantes do rei com seus elmos esverdeados, cacheados de babaçu, alguns cachos pesavam tanto que envergavam os soldados, um-dois-três-quatro-cinco-seis, não dava pra contar, passavam e passavam. Achei melhor sentar no armário deitado aos meus pés que tremia e suplicava silenciosamente pela chegada. Os ombros reclamavam com o ardor do sol ao meio dia, me virei, então. De costas para a cabina do caminhão é que pude observar aquela tralha toda aos gemidos surdos, cadeiras, mesas, uma geladeira, um guarda-roupa, um sofá velho, duas camas e outras coisas já desgastadas pela idade e pelo uso. Meu irmão estava bem lá atrás, no cantinho da carroceria, abraçado às próprias pernas, encolhido como feto que nascera antes do tempo, era magro, assim como eu, sorriu meio sem graça com toda a ternura do mundo, eu respondi mais amarelo ainda sem saber bem o motivo. Via a estrada se perder feito as águas do Parnaíba, levando tudo embora como quem não volta mais. Tratei de limpar as lágrimas dos olhos para que meus irmãos não vissem que chorava, mas tive a impressão que eles também enxugavam o rosto. Minha irmã mais nova estava ao meu lado a aquietar-se em espírito, séria, fitava um ponto fixo qualquer sem piscar os olhos durante longo tempo, ajeitou os cabelos longos e negros que lhe caiam nos olhos e fez um rabo-de-cavalo, depois voltou as pupilas ao mesmo ponto, uma mochila velha com cadernos rabiscados. As nuvens brancas passavam ligeiras e escondiam mistérios como montanhas do céu, carregavam meus pensamentos para longe e a Cidade Verde ia ficando para trás, sumindo-sumindo-sumindo até que não se via mais nada, só arbustos verdes de um lado e outro, depois os longos coqueirais marchavam enfileirados, um-dois-três-quatro e perdia as contas de novo para ouvir o azul do céu que me falava sobre a língua dos pássaros em chilreios distantes com lindas canções de despedidas, Cantai passarinhos, cantai, que destes cantos não ouço mais. E a cada distância meus pensamentos revolviam gavetas antigas como quem quer guardar ouro bem guardado, e vinham as casas, e vinham as ruas, e vinham os amigos, e vinham e vinham. A Laurimar eu não veria mais, a Leilinha também não, o Jalminha e o Emílio nunca mais. Mas prometera que escreveria para a Laurimar assim que pudesse, se ela quisesse claro, não queria incomodar. Nunca esqueci aquele olhar silencioso que confessava com o brilho a pureza de um abraço, esperei horas até que todos saíssem da calçada para me entregar a um abraço que durou não mais que quatro segundos. Mas também não me lembro de experiência semelhante ter se repetido em toda a minha vida, assim, com tanta intensidade e pureza de alma. Naquela noite, na ânsia de ficar a sós com ela, a cada um que se despedia da turma soava-me melodias de conforto aos meus ouvidos, e uma troca secreta de olhar se sucedia entre nós, eu desesperado pela angústia da demora, ela, com doçura, sorria da minha inquietação juvenil, quase desisti de esperar, não era por nada não, era de aflição mesmo que me saltava o coração pela garganta e me deixava os músculos todos rijos, não estava mais conseguindo disfarçar de tanta bandeira que dava, quando de repente ela colocou a mão no meu ombro e olhou fundo nos meus olhos como quem diz “eu ainda estou aqui” e sorriu, foi o suficiente, deitei o espírito e esperei até que o último da turma saísse. Não conversamos mais nada, talvez porque já passasse da hora ou porque não houvesse mais nada a dizer, mas logo me dei conta que falávamos com os olhos, às vezes olhando para o chão, ou olhando nos olhos, outra vez olhando para o céu, dizíamos tudo naquele silêncio do olhar, ela olhou para trás dizendo que estava na hora de entrar, veio um soluço de choro que ficou preso novamente na alma, e foi então que explodiu aquele abraço de séculos, invadindo nossos corpos tão ternamente como as águas caudalosas do Velho Monge. Aos poucos fomos nos separando até que só restou a leveza das mãos que por último se desgarraram num desgarrar alongado como se fôssemos dois namorados. É tudo que lembro daquela noite depois de atravessar a rua Tiradentes e sumir pela Coelho de Resende, mas foi eterno. Nunca soube explicar aquele momento e nem sabia que a felicidade não precisava de explicação, só de um pouco de cumplicidade do silêncio. E são tantos os anos e mistérios da amizade, mas que tudo se descobre em um minuto como numa revelação mágica apenas para se admirar. Depois dobramos com cuidado cada instante e guardamos de volta em gavetas separadas dentro de si, são retratos que não se rasgam no coração de quem se vai.

Era setembro de 1975, início da primavera, mas não vi borboletas nem flores só uma placa enorme com nomes esverdeados BEM VINDOS A UNIÃO. De repente o caminhão começou a balançar de um lado para o outro, como barco em tempestade, tentando flutuar em alto mar, mas eram ruas de chão batido entre densa névoa de poeira. Dobra aqui, dobra ali e algumas ruas depois, aos olhos curiosos das janelas que nos seguiam pelas ruas, o caminhão parou em frente a uma casinha branca com portas e janelas de olhos azuis e telhas que lhe serviam de chapéu. Era uma casinha apertada, bem menor a que morávamos antes e bem mais simples também, mas tinha um quintal enorme com mangueiras e cajueiros, cercados por uma cerca de arame. Havia também um poço com mil recomendações para que não chegássemos muito perto, ordem esquecida logo no dia seguinte ao se formar a primeira fila para o banho. Depois do reconhecimento da nova terra voltamos para o carro e começamos a retirar as coisas uma por uma, a casinha ficou entupida com o pouco espaço que tinha. Havia um brilho de esperança, não sei de quê, nos olhos de meu pai, e fiquei feliz por ele também. Um recomeço é sempre um recomeço, refleti, onde tudo pode melhorar em novas águas, acho que foi a última coisa que pensei, se é que pensei antes de me encontrar no alto de uma mangueira, procurando mangas fora de época, passando de galho em galho,em férias fora de época, eu também fora de época e de lugar. E de galho em galho manga não encontrei, mas achei coisa bem melhor, é que de lá do alto, como bravo colonizador, eu podia ver as casas que mais tarde iria frequentar em longas tardes de visitas. Desci da mangueira com a experiência de quem desce além da terra e se descobre num mundo subterrâneo entre raízes e cavernas, sentei e fiquei ali por um longo tempo, descansando a alma.

Leandro Dumont

08/07/2009

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 11/02/2010
Código do texto: T2081934
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