A PARTEIRA

Orçava ela pelos sessenta anos de idade quando eu a conheci. Era uma mulher morena, estatura mediana, cabelos castanhos encaracolados, nariz meio achatado, olhos pequenos, boca larga, dentes gastos, sorriso apagado, mas muito chistosa. Viúva sem filhos. Morava só, numa casa de taipa de dois cômodos, sem banheiro. Casa da roça dispensa essa comodidade. As necessidades fisiológicas são feitas nas moitas vizinhas da casa.

Só se sabia-lhe o primeiro nome: Maria. Mas como o falecido marido chamava-se Cícero Reinaldo, convencionou-se chamá-la Maria Reinaldo. Pouca gente a chamava assim. Em sendo ela, parteira, as gentes das redondezas, a chamavam de comadre velha. Ou melhor, “comade véia”. Os meninos e as meninas nascidos por suas mãos, a chamavam “madinha véia”.

Sustentava-se com as ajudas dos “compadres, compadres e afilhados”. Era ela a parteira mais solicitada daqueles longínquos sertões. Não montava a cavalo e tinha medo de garupa de bicicleta. Fosse aonde fosse, a distância que tivesse de percorrer, percorreria a pé.

Duas horas e vinte e cinco minutos da madrugada... Pancadas na porta: toc, toc, toc. Ninguém responde. O mensageiro aflito grita:

- ô de casa! - Silêncio. O mensageiro impaciente, mais uma vez insiste:

- Bendito louvado seja! - Uma voz surda ecoa lá do fundo da “tugúrica” residência:

- Para sempre Seja Deus louvado! Já sei que é de bem. Quem é?

– Sô eu, comade véia, o Chico, marido da Maria! Vim buscar a senhora, a Maria tá com dô de parto!

– oh, com os diabos, vocês fazem as coisas e eu que perca sono. Já vou lá. Levanta-se lenta e sorumbática e vem abrir a porta:

- É tu Chico? Espere um pouco...

Depois de passar água na boca, lavar o rosto engelhado pela ação dos anos, amarrar uma tira de pano nos cabelos grisalhos. Sai ao pé do mensageiro. E assim, com o andar vacilante, caminhava muitos quilômetros até chegar à casa da parturiente.

– Comade véia, ó meu Deus! Pensei que não viesse... - fala a futura mãe, se contorcendo com as contrações que se antecipam ao parto.

– Qual nada menina, é gente velha que anda devagar. Mas, com os poderes de Deus, vai já ter gente nova nesta casa. E começa a examinar a futura mãe. E vai dando as instruções:

- Faça força, prenda a respiração e solte devagar. Em pouco tempo um choro fino e gasguita ecoa pelos quatro cantos do pobre casebre.

- É homem ou é mulher? - Pergunta o pai ansioso.

– Homem. Um meninão. A cara do pai. Depois do recém-nascido banhado, entregue aos cuidados da mãe; A parteira manifesta o desejo de ir para casa descansar.

– Agora preciso ir, tenho muita coisa a fazer hoje cedo. Os da casa queriam que ficasse para o almoço. Muitas vezes quando ainda estavam tentando chegar ao um consenso (sobre ficar para o almoço ou ir para casa), surgia um inesperado mensageiro. Às vezes

até mesmo um dos seus “afilhados” (já homem feito),

- Senhor dono da casa! Madinha Véia tá aí? O coroné Alencar mandou buscar ela, que a muié dele tá com dô de menino!

E assim, mais uma vez, lá ia ela, passos vacilantes, os olhos apertados de sono, levando na cabeça um saco contendo uns cinco ou seis litros de mantimento. Arroz, feijão ou outros cereais. Fruto do seu trabalho como parteira.

– É preciso andar depressa madinha Véia, que a Sinhá já ficô gritando de dô - Diz o mensageiro.

– E, eu com isso? Quando é para fazer é só alegria e prazer. Na hora de ter, fica fazendo espalhafato? Ela que espere. Não dormi nada essa noite. Estou que não agüento de cansaço.

Assim foi a vida daquela mulher semi-analfabeta, mas corajosa e caritativa para com suas companheiras de sorte. Mulheres pobres e excluídas da sociedade, que habitavam os mais longínquos sertões deste imenso Brasil.

O mais interessante daquilo tudo, era que aquela mulher, sem nenhum conhecimento teórico de medicina, fosse capaz de realizar dezenas e dezenas (talvez centenas), de partos e nunca tivesse a angústia ou desprazer de ver uma parturiente, sequer, morrer de parto em seus braços.

Coisa para a Sapientíssima mestra Natureza, explicar.

Vicente Reinaldo – 19/07/08

VICENTE REINALDO
Enviado por VICENTE REINALDO em 06/02/2010
Reeditado em 14/03/2012
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