Em mais de vinte anos Manuela pouco mudou. É esse tipo de pessoa que o tempo poupa de algumas marcas. Atenção, eu friso, algumas.
Ela sempre foi destituída de atributos físicos, os traços não eram harmoniosos não levando em consideração, aqui, padrões de beleza.
Quem a conhecia, logo nos primeiros minutos chegava à conclusão de que não era bela, mas tinha gentileza e educação extremas e raras.
Fazia amizades com uma facilidade extraordinária e por onde ela passasse logo se ouvia; “Como é boazinha!”
Distribuía carinho, consolo, ajuda material ou não, a quem precisasse, sempre com a voz doce, um carinho, um afago. Era maternal com todos independente de idade ou sexo.
Orgulhava-se das inúmeras amizades que ia angariando vida afora e sorria satisfeita quando ouvia o quanto era “boazinha.”
Apaixonou-se perdidamente incontáveis vezes; sempre por grandes amigos e confidentes, alguns de beleza ímpar, muitos com relacionamentos estáveis e outros tantos companheiros de suas melhores amigas. Portanto, buscou sempre amores impossíveis.
Muitos deles sequer imaginavam o sentimento que ela nutria. Até o momento em que ela lhes contava e, aí, estabeleciam-se duas situações dramáticas: o amor e a certeza de não ser correspondida.
Era notório o fato de que ela buscava sempre o “impossível”, pois sendo desde o início impossível, ela não correria riscos.
Não haveria risco de ser rejeitada, pois não dera certo por inúmeros impedimentos e não por não ser correspondida. Por outro lado, desapareciam, também, os riscos que uma relação íntima envolve.
E por tudo isso ela passava sendo sempre “tão boazinha”.
Todos que a conheciam sabiam que ela gostava e considerava “sua” a música “Sapato Velho”, cantada por “Roupa Nova” e composta por Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós.
Tânia, uma amiga a quem fazia confidências chamava sua atenção, com insistência, para essa auto-sabotagem que ela usava como recurso para proteger-se de amores não correspondidos, relacionamentos que poderiam acabar, sofrimentos, sim, mas também Vida!
Ela negava e recusava-se sequer a cogitar tal idéia, mas agradecia à amiga dizendo que “quem tivesse uma amiga assim não precisaria nunca de analista”.
E seguia a vida, tendo como tema a mesma música e sendo “boazinha” tanto com os amigos quanto com os amores que, muitas vezes, eram os mesmos.
Um dia Tânia foi à casa dela para entregar seu convite de casamento. Ao ser atendida pela empregada, subiu direto ao quarto onde sempre conversavam.
A porta estava aberta e lá estava Manuela sozinha, falando baixo como que praguejando mesmo e raivosamente rasgando fotografias. Em cima da cama, uma foto ampliada do noivo de Tânia, tirada no último churrasco.
Percebendo com um susto a presença da amiga, Manuela, explicou nervosamente que estava livrando-se de recordações de amores antigos.
Falava enquanto colocava os pedaços rasgados em um saco de lixo, mas sem a rapidez suficiente para impedir que a amiga visse seu próprio rosto estampado em um dos pedaços.
Ainda tentando sorrir de forma “boazinha”, acompanhou o olhar de Tânia para a foto ampliada em cima da cama.
Os versos martelavam a cabeça de Tânia: “Você lembra, lembra!/ Daquele tempo/ Eu tinha estrelas nos olhos...”
Nesse momento Tânia enxergou as marcas invisíveis que o tempo deixara em Manuela; enxergou o rancor, a amargura, a ira e o desamor. Havia tudo lá, menos a bondade.
Enquanto olhava a cena a música passava insistente pela sua cabeça: “Prá poder buscar/ Flores-de-maio azuis/ E os seus cabelos enfeitar...”
Em pouco tempo Tânia começou a notar que alguns amigos comuns estavam afastados dela; outros passaram a evitá-la e Manuela continuava extremamente “boazinha” quando encontravam-se por acaso.
Tânia até tentou conversar com amigos mais próximos, desistindo ao perceber que não era “boazinha” o suficiente para combater o veneno já disseminado. Essa constatação, aparentemente em total insensatez, deu-lhe um alívio imenso.
Com o tempo, perderam o contato e hoje Tânia tem, ainda, “estrelas nos olhos”, mas escapa rápido quando conhece uma pessoa muito “boazinha”.
Frequentemente se pega pensando por quanto tempo uma pessoa consegue permanecer, ilesa, à espera, como um sapato velho...