As alianças
Ela olhou para as próprias mãos e deu um sorriso meio sacana. Não tinha ainda as manchas da senilidade e ela pensou, como sempre gostou de anéis, e não usava aliança. Fez as contas e pensou, pra mais de trinta anos. Essa foi sua primeira transgressão. Lembrou como se fosse hoje. O marido começou a tirar a aliança, as vezes esquecia nos bolsos, na pia do banheiro, na mesa de cabeceira. Ela não disse nada. Não fez qualquer cobrança porque sabia que o encanto estava acabando e num gesto de rebelião, tirou a sua também. Para ela a aliança era um símbolo sagrado de amor, respeito, fidelidade. Era um elo muito forte, infinito. E lembrou das palavras do pai que costumava dizer: formiga quando quer se perder cria asas. E ela sofreu. Só quem já foi traído é que sabe e naquele momento seu castelo de cartas desmoronou. Chorou rio de lágrimas, de repente olhou para o relógio. Era a hora de pegar as crianças na escola. Lavou o rosto, fez a maquiagem, colocou a mascara na face e foi alegre buscar as crianças. Pois assim é que deveria ser. E daquele dia em diante só tirava a mascara quando estava só e quando estava com os seus, voltava a usar a mascara. E aprendeu que não seria preciso procurar vestígios de traição pois o homem se entrega e como se entrega. Nessas artes a mulher se sai melhor, ela finge melhor. Ele fica ridículo, passa a agir como garotão, passa a falar com a mulher sobre fulana que é ótima funcionária, fulana que está com a filha doente, fulana que ultimamente vem sentindo muitas dores de cabeça e ela passou a mão na testa a procura de alguma saliência, mas não encontrou nada, estava bem lisinha. Nunca mais usaram aliança. Muito tempo depois, do nada, ele apareceu com uma aliança muito esquisita, fininha, de ouro amarelo, e trazia outra no dedo. Os filhos ficaram emocionados. Ele fez uma entrega solene, só pediu a ela que não comentasse com as amigas. Era em segredo que ele colocara a aliança no dedo dela. A filha muito emocionada disse, viu mamãe como papai te ama? E ela disse sei... E soube por intuição que a aliança não era com ela. Aí lembrou que nas bodas deles, ela não queria festa, muito menos qualquer comemoração religiosa e quando soube que os amigos estavam fazendo uma festa surpresa para eles, com missa e tudo o que tinha direito, ficou vermelho, como todas as criaturas de pele clara ficam na hora do ódio. Ela lembrou que o padre poderia chamar o casal para a benção das alianças e saiu para comprar. As mais leves e fininhas que encontrou. Afinal para que gastar vela com mal defunto. Mas ela foi linda a festa. Usou um vestido perola, com a pala toda bordada, de cintura baixa, com laço de fita. Sapatos dourados e na cabeça um lindo arranjo prendendo os cabelos numa espécie de coque, dourado com perolas. Parecia uma jovem noiva foi o que comentaram. E foi justamente aí que ela começou a transgredir. Passou a amar os gatos, não o gato homem, gato bichano mesmo. Tudo começou no dia em que a filha de um amigo dele apareceu com um gato amarelo e ela adotou. Depois, quando mudaram de residência, ela ganhou um gatinho preto. Quando ele viu o gatinho preto disse a ela: suma com esse bicho imediatamente. Ela ficou magoada com o tom de voz e a prepotência, era o domínio do macho sobre a fêmea. E ela não gostou de nada disso e começou a trazer para casa todos os bichanos que encontrava abandonado e a família foi aumentando. Todas as vezes que em que ele esquecia de vir para casa ou mandava ela esperar por ele no cinema e não aparecia, ou não atendia o celular, viajava e voltava com presente que recebia dos amigos, eram cd’s de músicas de intérpretes que ela não gostava, não faziam o seu estilo. Aí ela arranjava o gato. Certa ocasião, desfazendo a mala dele, separando as roupas para a empregada lavar, ela notou que o fecho da calça estava quebrado e o bolso da camisa rasgado. Ela pensou, ele deve gostar de amor selvagem mas não precisava rasgar as roupas. Saiu e arranjou mais um gato. Chegaram a criar 22 gatinhos, todos muito bem tratados, porque ela sabia que no bicho homem não dá pra confiar e fez uma aliança com os animais; cuidava deles e em troca recebia lealdade. Hoje ela só tem 16 gatos, os outras já partiram. E, por ironia do destino, ele deve a vida dele a um dos gatos dela. Se não fosse o gato branco, hoje ele estaria comendo capim pela raiz. Só que agora ela está com muita vontade de começar uma criação de furões. Até já imagina, uns dez furões soltos pela casa. E já está aceitando doação.
Nosso maior poder pessoal é a liberdade de escolha.