UM JOSÉ QUALQUER
Irei relatar uma história de um José qualquer, que sobrevive como milhões de outros Josés brasileiros. Era operário da construção civil ao invés de marceneiro, como tantos outros, ele também não tinha um lugar digno para morar, como o de Nazaré que com sua esposa Maria, não teve aonde pernoitar. O meu apesar de ser pedreiro e já ter ajudado a construir vários prédios e mansões, não tinha onde cair morto. Morava num ranchinho no bairro mais pobre da vizinha cidade turística de um dos maiores pólos turístico do Sul do país. Ficava ao pé do morro, num loteamento que fora invadido por algumas centenas de famílias vindas de outros estados e regiões do Brasil.
Era migrante como os vários José que migram de cidade em cidade procurando “um lugar ao sol“. Até parece uma sina de todos os Josés; recordamos daquele de Nazaré; sim, o pai de Jesus, que teve que fazer o seu recenseamento em sua terra natal. Durante a viagem, sua mulher teve um filho. A casa do nosso José não era uma estebaria, mas como já disse, um ranchinho de madeira com papelão, um único cômodos de 6/6 que servia de cozinha, sala e quarto trepado num morro. Morava ele, a mulher e 3 rebentos.
Seu lar não tinha água potável, esgoto e banheiro. Ali não existia tratamento de esgoto, água tratada, apesar de já ser uma cidade centenária.
Nosso companheiro tinha vindo do interior do Paraná, seus pais e avós foram lavradores rurais como ele tinha sido até uma boa parte de sua existência, mas a política agrária dos últimos governos, fez com que ele como os outros tantos milhões de José, abandonassem a sua terra e partisse em busca de novas terras, onde corresse leite e mel como fez o povo do Egito.
Como tantos outros, veio atrás de trabalho para a sua sobrevivência. Começou como servente de pedreiro e mais tarde a levantar parede nas construções aonde trabalhava. Mas era mal remunerado como a grande maioria dos trabalhadores. O que ganhava, mal dava para sobreviver.
Por muitos anos, ia para o trabalho de bicicleta, mas depois de terem lhe roubado três, começou a ir de ônibus.
Leitor, e agora que se inicia o ocorrido com o meu personagem.
Uma tarde, já cansado de um dia de labuta, José tomou um ônibus lotado, uns dos raros horários em que passava em seu bairro, e no meio dos 7 quilômetros que separava do serviço até o seu lar, bateu uma forte vontade de “ ir aos pés”. Amigo leitor, você não sabe o que é “ir aos pés”? As pessoas mais velhas quando tinham vontade de fazer as suas necessidades fisiológicas, diziam que iam “ aos pés”. O historiador Izaque de Borba Correia, fala em seu livro “Pirão com Milongas” que encontrou esta expressão na bíblia. Esse ditado era porque eles “cagavam” de cocara no mato e bem mais tarde foram cagar na privada.
Privada era uma casinha que ficava fora dos aposentos da casa, onde se fazia coco e xixi... José tinha uma na sua humilde residência, pois ainda não tinha tido condições de construir um banheiro decente em seu racho. Tinha feito pedido de um na prefeitura do município, daqueles que o governo federal financia e dar construído, mas por não ter influencia política, ainda não tinha tido uma resposta da prefeitura. Estava esperando a próxima campanha eleitoral para conseguir um com os candidatos locais. Era a época que o pobre tinha voz e vez.
Mas não fazia muita questão por ser uma morada provisória. Aliás, sonhava em se mudar daquele casebre para um lugar mais decente, mais plano, perto de escola, supermercado, com ruas calçadas, esgoto sem ser a céu aberto, mas já estava residindo ali há seis anos e nada de realizar seus sonhos.
Fazia nove meses que começara a pagar um lote de terra a prestação, tinha comprado do prefeito da cidade, mas já tinha duas atrasadas, pois seu filho mais novo adoecera e o dinheiro que ia para o pagamento do terreno tinha sido gasto com os remédios, pois teve que correr as pressas para o hospital e pagar a consulta para salvar o menino, porque no posto de saúde do bairro aonde morava, já estava fechado às 21 horas, e no hospital teve que arcar com as despesas de uma consulta, exames e remédios.
Quando estava começando a realizar o seu sonho, o imprevisto bateu a sua porta e tal realização teve que ser prolongada. Estava preocupado se no próximo mês iria ter condições de colocar em dia as prestações, pois se deixasse atrasar a terceira, perderia todo o dinheiro que já pago e o terreno voltaria para o seu dono, pois quem vende quer receber em dia. Quem tem fartura na mesa, nem sonha que milhões de brasileiros passam fome.
Quiçá, daqui uns 5 anos a sua casa de banheiro de água encanada, chuveiro elétrico, estivesse pronta, mas naquele instante de desespero, a sua privada seria o banheiro de uma suíte de um hotel mais luxuoso do mundo. Por falar em banheiro, à vontade de cagar de José, estava aumentando a cada instante.
O ônibus levava de 15 a 20 minutos até chegar em sua casa, mas naquele dia parecia que não chegava mais no ponto em que ele desembarcava. Estava lotado, ele em pé com o nariz no sovaco de uma domestica bem suada de um dia digno de trabalho. Seu desodorante era “Avanço” e estava vencido fazia horas.
A barriga de José estava fazendo um barulho estanho, teve que se trancar todo para não soltar gases, suava frio, sentia arrepio da cabeça aos pés. Sua vontade era de sapatear, pedir para que o motorista parasse em qualquer “matinho” para que pudesse cagar, pois sua bosta serviria de adubo para algum canteiro de flores, que por sinal era o que não faltava naquela cidade turística. Diferente daquela que morava.
A dor de barriga aumentava a cada instante. Lembrou-se que em sua marmita tinha sobra de maionese do almoço do dia anterior e um molho acebolado de cachorro quente de sábado à noite. Mas a fome que estava, não lhe deixou perceber se estava azeda, e o resultado de seu apetite foi uma dor de barriga fora de hora. Aliás, essas coisas não marcam hora nem lugar. Chegam sem pedir licença. Atingindo qualquer classe ou posição social e seguidores de todos os credos religiosos. Até mesmo o quem se dizem ateus.
Tem situações em que nos igualamos e conseguimos realizar aquilo que o partido comunista durantes anos sonhou e não conseguiram, o da igualdade. Quando estamos defecando, somos todos iguais: fazemos caretas, gememos e tanto a “merda” do presidente da república como a de um operário braçal como o José, fede por igual. E como fede, nossa!
Você pode amar a mulher ou o homem mais lindo do mundo, mas quando “vai aos pés”, a merda dele ou dela, catinga igual a de qualquer ser humano.
Voltando a história, naquele momento o que José mais desejava era sentar-se em seu trono feito um rei, e descarregar toda “bosta” que estava em seu intestino; mas a lotação parava em todos os pontos. Encontrou todos os semáforos fechados, e a dor de barriga aumentando a cada minuto. Até a hora em que ele escutou um grito lá de trás:
- Motorista pare o ônibus! Roubaram a carteira do meu bolso com 600.00 Reais dentro.
O motorista parou imediatamente e gritou:
-Daqui ninguém sai nem entra!
José ligeiro grita:
Por favor! Abra a porta! Preciso ir ao banheiro, é urgente!
Correu para a porta atropelando vários passageiros que estavam à sua frente e batia, esperneava até que soltou um grito bem forte com a seguinte frase:
- Abra esta porta, estou cagando nas calças!
O motorista gritou novamente:
- Daqui ninguém irá entrar ou sair antes de devolver a grana que foi roubada.
Nisso já tinha umas dez pessoas em cima dele, achando que tinha roubado a tal carteira, quando de repente ele soltou um pum. Espalhou-se gente para todos os lados, e José cagou-se todo.
O aroma naquele ônibus tornou-se insuportável. Como se não bastasse o cheiro de suor, sovaco, chulé misturado ao de perfumes baratos, surgiu um fedor que dominava todos os outros já existentes naquela lotação. O de merda. Parecia que o sujeito tinha comido um Urubu podre ou camarão estragado.
Rápido alguns passageiros começaram a ter ânsias de vomito, outros não resistiram chegando às vias de fatos. Essa mistura de aromas se tornou infernal, pois estávamos em pleno janeiro, pique do verão, hora em que os operários braçais e as domésticas estavam voltando para o seio do lar, fatigados pela luta diária.
Nessa altura dos acontecimentos, os passageiros já tinham esquecidos de descobrir quem era o ladrãozinho batedor de carteira, e não viam a hora de sair daquela lata de sardinha podre. Era unânime o pedido para que o motorista abrisse a porta. Esse por sua vez, estava resfriado e com as narinas trancadas, a ponto de suportar aquilo toda aquela podridão sem reclamar com aquela bomba de merda que tinha invadido o seu instrumento de trabalho, que, aliás, era a sua primeira viagem com aquele ônibus zero quilometro. Quando olhou aquela lameira de vomito e escarros pelos acentos e corredor, ficou desesperado e começou a berrar:
-Meu deus, quem fez isso no meu ônibus zero bala? “Estou no olho da rua” falava ele, mas seu objetivo era apanhar o ladrão que estava tonto e passando mal com aquilo tudo. A situação ia se agravando a cada instante.
Uma mulher que estava nos últimos dias de gravidez começou a ter as primeiras contrações ali, e um senhor de 53 anos quase morreu de ataque cardíaco, outro aposentado deu um derrame e ficou aleijado para o resto de seus dias.
O motorista pegou o celular e ligou para a policia, que veio o mais rápido que pode, depois de meia hora.
A esposa de José já estava preocupada com a demora do marido, que não acostumava atrasar-se tanto como naquele dia. A mulher do senhor do derrame foi avisada e a que estava grávida acabou dando a luz ali mesmo, e o menino foi batizado com o nome de Merdevaldo Sufocado da Silva. Quem fez o seu parto foi uma estudante de enfermagem que estava ali naquela lotação fedorenta, toda de branco e com a maleta de primeiros socorros, mas naquele momento já se encontrava toda suja de vômito, sangue nas luvas e o suor escorriam pela sua fronte.
Quando os policiais chegaram, o motorista abriu a porta do ônibus, José saltou correndo pelo meio das pernas deles e saiu correndo um maratonista rumo a sua casa.
Agora mais do que antes, estava louco para chegar em casa e tomar um banho de rei. Pois além de estar fugindo de dentro daquele ônibus, estava agora fugindo dos abrutes que já começavam a lhe acompanhar como a esquadrilha da fumaça. Em poucos minutos, tinha uma nuvem deles sobrevoando sobre a sua cabeça, querendo lhe devorar.
Os policiais tentaram entra no ônibus, mas quando sentiram àquela mistura de mau cheiros, deram dois passos para trás: não suportando o fedor. Nisso os passageiros começaram a descer gritando:
- Sai, sai, sai satanás! Cagaram no mundo e agora esse cheiro não irá sair mais.
Não adiantou o motorista gritar para que permanecessem todos no ônibus, pois tirando a mulher que deu à luz, o senhor do derrame, o cardíaco e a enfermeira que estava prestando os primeiros socorros, restara apenas um deficiente visual que foi pego quando já estava descendo os primeiros degraus do ônibus. Quando os policiais os abordaram o pobre ceguinho, esse se cagou todo nas calças de susto. Os outros caminharam quilômetros até suas casas para escaparem daquele mau cheiro horrível. Foram horas debaixo de chuveiros para tirar aquele odor que tinha ficado entranhado em seus corpos.
Isso sem contar do cagão do José, que não possuía chuveiro elétrico em sua residência, era na base da canequinha.
A roupa foi direto para uma cova bem funda, pois não tinha sabão em pó ou produto de limpeza que desse jeito naquela roupa cagada. Pois quem suportaria lavar toda aquela cagança? Não tem a hora da cagada mal dada? José tinha dado uma e bem mal dada.
Todo ser humano tem as suas, por isso não estamos aqui para julgar o nosso personagem. Quantas vezes na vida eu e você não fizemos a coisa errada na certeza que estávamos fazendo o certo? Quem de nós já não teve uma dor de barriga num passeio? Sem ter um banheiro por perto? E quando damos um peidinho e acabamos nos borrando nas calças?
E com José aconteceu no ônibus lotado, e virou palco de espetáculo. Daquela data avante, além de ter pagado 150 reais da lavação do ônibus, todas as vezes que ele tomava aquele ônibus, o motorista berrava:
- Zé, não vai cagar o meu ônibus outra vez. Os passageiros quando o avistavam, davam uma risadinha de deboche e falavam piadinhas sem graça para o pobre do José, que fazia que não era com ele, pois para viver era necessário dar uma de tonto de vez em quando. Ninguém ganha nada levando a vida ”a ferro e a fogo”, o mau e a vingança nunca deram “panos para as mangas” para camisa de ninguém.
Devemos deixar que o destino se encarregue de fazer as suas justiças, pois não cai uma folha sem que não seja da vontade de Deus.
Essa foi uma das histórias de um José qualquer, que sempre lutou para sobrevive. Fico aqui torcendo para que ele tenha conseguido realizar o seu sonho de ter uma casa com um banheiro, antes que desse uma semana de chuva e acontecesse uma calamidade no seu barraco e desabasse de morro a baixo.
Mas você deve estar se perguntando o que foi que aconteceu com deficiente visual que estava descendo do ônibus quando os policiais chegaram para pegar o ladrãozinho de carteira. Os guardas o revistaram, apesar do mal cheiro que estava por ter se “ borrado” nas calças. Apesar do susto, acharam a carteira de identidade da mulher que fora roubada e o levaram para a delegacia. Demoraram um bom tempo para perceberem que o rapaz era cego de nascença, não podendo ser o ladrão de carteira; ou será que já existe deficiente visual batedor de carteira? Dera-lhe um banho frio e o soltaram.
O ladrão tinha fugido com a grana, e na hora do apuro, colocou o documento da mulher no bolso do cego, sem contar que chegou a roubar as únicas moedinhas que esse estava levando para a casa, ganho de esmola de uma criança. Pobre José Marcelo, que andava mendigando umas miseras moedinhas pelas calçadas cheias de obstáculos como: buracos, placas, latão de lixos e cachorros soltos, orelhão.
Mas como todo bom José, ele tinha paciência para suportar tudo aquilo calado, com a esperança de ter um amanhã mais promissor.
Fim.