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     O celular e a caixa-d'água  



     
     Os fatos aqui narrados se deram em vilarejo distante e bucólico, onde as pessoas se reuniam sentadas às calçadas ao final da tarde, a fim de cumprir o sagrado dever do falar do próximo! A mídia televisiva e informatizada ainda não estendera seus poderosos tentáculos sobre aquele vilarejo, e havia a promessa, reiteradamente proferida por um ardiloso político da região, da breve instalação de uma torre de telefonia celular... Por enquanto, aos moradores mais jovens e mais afoitos pela tecnologia, restava o consolo de subir ao ponto mais alto da cidade e erguer-se na ponta dos pés em desarmônico e arriscado movimento, a fim de captar inconstante sinal oriundo de cidade próxima, fato que acabava por resultar em tentativas de diálogos de imprevisível desfecho, dada a difícil interpretação sonora adequada das palavras, que às vezes irrompiam aos ouvidos como se pertencessem a outro idioma.

      Acontece que o tal ponto mais alto do vilarejo, por obra e graça da moderna engenharia e do correto aproveitamento do relevo geográfico natural, localizava-se em soberba colina, no topo da qual erguia-se imponente a grande caixa-d’água, procurado ponto turístico em função da maravilhosa visão do horizonte que ali se descortinava, diurnamente frequentado pelos admiradores da natureza e palco noturno de inenarráveis embates amorosos, emoldurados pela fria luz do luar... Pretensos amantes, jovens e nem tão jovens discípulos de Afrodite esmeravam-se em maquinações e artimanhas, a fim de verem realizados seus ardorosos anseios... Por isso os frequentes atos notívagos de contorcionismo explícito que ali se viam, ora motivados pelas frustrantes tentativas de uso do aparelho celular, ora por motivos outros, mais primitivos aos olhos dos interessados observadores.

     Por conta então desses percalços a prejudicar a correta comunicação interpessoal, muitos contratempos acabavam por se tornar comuns àquele bucólico vilarejo, fazendo a alegria dos contadores de causos daquela região: como por exemplo, os involuntários banhos a que eram submetidos muitos dos acrobatas aspirantes ao improvável contato telefônico, ao se depararem repentinamente com perigosas soluções de continuidade entre a irregular cobertura e o conteúdo líquido de grande volume, o que acabava por resultar em úmido aniquilamento da almejada possibilidade de contato... Ou de outro lado, o fato de que muitas tentativas sucumbiam perante as incongruências de horários incompreendidos ou palavras insuficientemente transmitidas, findando-se as noites em cantorias inebriadas, regadas pelo mais sórdido vinho.

     A verdade inconteste é que aquele lugar tornara-se palco de amores impossíveis, desilusões e também inesperados flagrantes, além de local inspirador a pretensos e eternos poetas, filósofos e compositores do dia-a-dia... Ou pelo menos de uma única noite! 

     Mas a torre celular finalmente acabara por lançar seus tentáculos àquele vilarejo.  

     E a magia da caixa-d’água transformara-se em história...
Max Rocha
Enviado por Max Rocha em 27/01/2010
Reeditado em 03/03/2012
Código do texto: T2053296
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