PEQUENO TESOURO

Zeca destoava das outras crianças que tomavam banho na piscina. Era negro, franzino, cabelos bem curtos e usava óculos com a haste remendada por um pequeno pedaço de esparadrapo. Também tinha personalidade diversa: enquanto os demais brincavam alegres e entrosados entre si, ele mantinha certa distância, como se estivesse pouco à vontade entre os coleguinhas.

O churrasco acontecia no jardim da casa, que Zeca pensou ser maior que o quarteirão inteiro onde morava. Tudo por ali era imenso e espaçoso, aquele era um mundo completamente diferente ao que ele estava acostumado.

As mães das crianças torceram o nariz ao verem seus filhos brincando com um garoto negro, mas tiveram que aceitar caladas, pois o Dr. Sant’Anna, poderoso comerciante da cidade e dono da mansão, fizera questão que José Carlos, o eletricista da empresa, trouxesse Zeca para brincar com seu filho Renato e os amiguinhos, enquanto fazia a instalação de um portão automático na garagem. Mas isso não as impedia de comentarem à boca miúda:

- Ah, não estou falando mal, mas não sei por que razão o Dr. Jair resolveu trazer esse... Garoto para cá. Minha Isabel não está acostumada a brincar com esses meninos do morro, tenho medo de que ela aprenda algo que não preste, sei lá!... – disse Albânia, uma loira de quarenta anos, sem desgrudar os olhos da piscina.

- Parece que o eletricista não tinha com quem deixá-lo, então teve que trazê-lo junto – respondeu Ariane, a esposa do Dr. Jair.

- Eu também não gostaria que Heleno aprendesse a falar palavrão. É tudo o que esses favelados sabem dizer... – concordou Suely, outra convidada.

Estavam debaixo do guarda sol, bebendo seus drinks.

- Não sei, ele quase não abre a boca para falar... – desculpou-se a anfitriã – Além do mais, é somente uma criança, gente. E o pai dele é bastante educado.

Mesmo sem concordar, as mulheres calaram-se.

Depois de duas horas, as crianças saíram da piscina, tomaram uma ducha e entraram na casa para brincar a salvo do sol do meio-dia. Zeca falava apenas esporadicamente, quando alguém perguntava algo, e muito embora nenhum dos novos colegas tivesse dito ou feito algo que o deixasse constrangido, ele continuava deslocado em meio às crianças branquinhas da zona sul.

Em dado momento, Renato entrou no quarto e voltou à sala com uma pequena caixa de papelão nas mãos. As crianças aproximaram-se para ver do que se tratava e o garoto abriu a caixinha com um sorriso eufórico nos lábios:

- Esse aqui é o meu Olho de boi!(*) – disse orgulhoso.

Era um velho selo postal com o número noventa pintado sobre um fundo branco.

Os cinco se apertaram à sua volta, buscando uma visão melhor daquele pedacinho de papel amarelado pelo tempo.

- Ué, mas isso é que é um Olho de boi?... – perguntou Berenice, uma loirinha de sete anos, um pouco decepcionada. – Achei que fosse um olho de verdade...

Renato, do alto dos seus nove anos, rebateu:

- Você é bem bobinha, Berê. É claro que não é um olho de verdade. Tem esse nome por causa do desenho...

- Ah...

Isabel, a outra menina do grupo, após examinar o selo, concluiu:

- Nossa, mas ele é muito feio.

- Feio, é?... Mas sabe quanto papai disse que vale? Oito mil Reais.

As exclamações foram as mais diversas:

- Uau, oito mil!... – Maurinho, de sete anos, arregalou os olhos.

Zeca pensou e por fim criou coragem para perguntar:

- Oito mil Reais é muito dinheiro?

- Mas é claro que sim! Papai disse que dá pra comprar um carro.

Ficaram admirando o selo por mais alguns instantes até que Renato achou que já era o suficiente e fechou a caixa:

- Agora chega, vamos continuar brincando.

Zeca chegou perto de Renato e pediu timidamente:

- Posso ver mais um pouquinho?

Renato ia dizer algo, mas por fim consentiu e tornou a mostrar o Olho de boi. O garoto tentou equilibrar melhor os óculos no nariz, mas acabou derrubando-o sobre a caixa, que caiu no chão com um barulho seco, quase imperceptível.

No momento seguinte, doze mãos ansiosas tateavam o chão acarpetado, tentando encontrar o Olho de boi:

- Droga, veja o que você fez! – resmungou Renato, enquanto Zeca, totalmente sem graça, tentava se desculpar:

- Des... Desculpe, eu não fiz por mal.

As seis crianças esquadrinhavam o chão da sala, mas parecia que o selo evaporara por completo.

- Meu selo, cadê meu selo?... – Renato choramingou – Vocês acharam meu selo?...

Eles procuraram, mas não o encontraram. Havia sumido.

*

- Eu sabia que isso não terminaria bem. Onde já se viu, um moleque do morro!... Só podia dar nisso.

As mães, reunidas num grupinho, cochichavam entre si, enquanto Renato chorava a perda do Olho de boi. Jair entrara e saíra várias vezes da sala, convocara empregados para ajudar na busca, mas nada, nem sinal do valioso selo.

- Pai, eu quero o meu Olho de boi...

- Calma filho. Você tem certeza que foi aqui mesmo que o selo caiu?

- Tenho sim, papai. Os óculos bateram na caixa e ela caiu bem aqui. Todo mundo viu!...

- Os óculos de quem?

- Dele.

O dedo apontou na direção de Zeca, que estava de pé ao lado da estante, e todos os rostos se voltaram para ele.

Jair aproximou-se calmamente do garoto.

- Zeca, você viu onde o selo caiu?

O menino balançou a cabeça negativamente.

- Você tem certeza disso?...

- Si... Sim senhor.

Jair o observava atentamente, enquanto uma das mulheres deixava escapar um "só pode ter sido ele" audível o suficiente para ser ouvido por todos na sala.

As outras crianças aguardavam reunidas no sofá, em silêncio. Jair balançou a cabeça e voltou-se para a esposa, como a indagar o que fazer.

Ela arqueou as sobrancelhas e encolheu os ombros, como que dizendo que também não sabia o que fazer. Jair, por fim, olhando para as crianças no sofá, chamou a todos.

- Crianças, venham até aqui. Fiquem do lado do Zeca, preciso falar com todas vocês.

Elas obedeceram rapidamente.

- Bem, vocês sabem o que aconteceu. Gostaria de dizer o que talvez não saibam: aquele selo é muito valioso, por isso quero pedir a quem fez essa brincadeira que, por favor, devolva o Olho de boi. Foi um presente que dei ao meu filho, e ele gosta muito dele.

Os seis fizeram silêncio. Jair olhou um por um nos olhos, sem conseguir vislumbrar um culpado.

- Vocês têm certeza que não sabem quem pegou o selo?

Mais uma vez o silêncio foi a resposta.

- Dr. Jair, isso é um absurdo! – Albânia interrompeu – Imagine se minha filha iria roubar um reles selo velho... Isso é ultrajante.

- Desculpe, Albânia, eu não estou acusando ninguém de roubo. Foi apenas uma brincadeira de criança, nada mais.

- Ela tem razão, Jair, não faz sentido o que você está fazendo. Mesmo porque todos nós sabemos quem deve ter feito isso... – intrometeu-se Eliseu, o pai de Heleno.

Jair aproximou-se de Eliseu:

- Mas nós "não" sabemos quem fez isso.

- Claro que sabemos. O único aqui que poderia ter roubado o selo do seu filho é o filho do eletricista.

- Ora, não fale bobagem. Já disse que não houve roubo algum, apenas uma brincadeira de criança.

- Pois chame como quiser, o fato é que o selo desapareceu, e nossos filhos não podem ser tratados como delinquentes. Exijo respeito – dessa vez era Suely a falar.

- Vamos fazer o seguinte: revistaremos todas as crianças, uma a uma, começando por ele – Albânia apontou para Zeca, que se encolheu no seu canto – Tenho certeza que encontraremos logo esse maldito selo e tudo voltará a ficar em paz.

- Albânia, não seja tola. Você está assustando o menino.

Com efeito, uma lágrima escorria pelo rosto de Zeca que, assustado, não esboçou qualquer reação quando a mulher, de um salto, colocou-se à sua frente.

- Vamos ver o que você tem aí...

Ela deu um puxão na camisa e outro na bermuda do menino, deixando-o praticamente nu no meio da sala.

- Albânia!... – exclamou Jair – Mas que absurdo é esse!... Pare com isso, eu já disse...

Mas o fato é que ninguém fez nada para impedir que ela revistasse o menino, que chorava petrificado e sem reação.

Quando a porta se abriu e José Carlos entrou na sala, ficou espantado com a cena patética que presenciou: seu filho com a bermuda arriada, sendo revistado por Albânia, enquanto todos olhavam sem intervir.

- Mas o que é isso?... Zeca, meu filho, o que aconteceu?...

O homem ficou desesperado com o choro do menino, que assim que o viu, correu ao seu encontro e escondeu o rosto entre suas pernas.

- Por Deus, Dr. Jair, o que está acontecendo aqui? Por que meu filho está chorando e sem roupa?...

Pego de surpresa, Jair tentou balbuciar uma desculpa, mas não conseguiu explicar a situação.

- Desculpe, José Carlos, é que... Um selo valioso desapareceu enquanto as crianças brincavam, e nós... E ela... Estava procurando...

- Eu não acredito! Juro que não acredito! Então some alguma coisa e meu filho é considerado culpado somente por ser negro e pobre?... O senhor sabe que eu posso processá-lo por racismo? Todos vocês?...

- Não seja tolo. Todas as crianças serão revistadas... - defendeu-se Albânia, afastando-se de José Carlos, por via das dúvidas.

- Será mesmo?... Eu acho que vocês já acharam um bode expiatório. Afinal de contas, o que desapareceu?

- Um selo... Muito valioso – Albânia aproveitou para tentar se defender – mas nós íamos revistar todas as crianças, deve ter sido apenas uma brincadeira, nada mais...

José Carlos tomou o filho pelas mãos e fuzilou a loira com os olhos.

- Pois fiquem sabendo que quem encostar um dedo no meu filho vai se ver comigo. E o senhor – apontou o dedo para o patrão – Pode tratar de procurar outro eletricista.

- Mas José... Você está de cabeça quente, tenha calma...

- Calma? Eu estou calmo, Dr. Jair, muito calmo por sinal, ou o senhor já estaria com o olho roxo. Venha filho, vamos embora desse lugar.

E saiu batendo a porta com força.

*

Contou tudo para a esposa, que ouviu calada e preocupada. Quando terminou, suspirou e sentou-se desanimado.

- E agora estou desempregado. Era só o que me faltava...

- Mas você tem certeza que era a coisa certa a fazer, meu amor? Não dava para tentar deixar passar, sei lá...

- Mas de jeito nenhum, mulher! O que é isso, chamar meu filho de ladrão... Nós somos pobres, mas nem por isso eles podem nos humilhar assim. Você diz isso porque não viu aquela sirigaita revistando o nosso Zeca como se ele fosse um marginal...

A mulher passou a mão em seus cabelos e concordou.

- Tá certo, Zé, tá certo. Mas e agora, com você desempregado, o que vamos fazer, como a gente vai se virar?...

O marido suspirou e balançou a cabeça:

- A gente dá o nosso jeito. Sempre demos, não foi? Aqui ninguém nunca passou fome até hoje. Deus há de nos ajudar a sair dessa...

Foi a vez de a mulher suspirar, resignada.

*

Podia ouvir os barulhos noturnos ao longe, mas em casa tudo era silêncio. Desceu da cama pé ante pé, para não acordar os pais, e preferiu não acender a luz. Seus olhinhos brilhavam de ansiedade no escuro e sua respiração era entrecortada. Foi até a pequena sapateira e procurou o tênis que usara naquele dia, o lugar onde escondera seu pequeno tesouro. Nem fora tão difícil assim roubar o Olho de boi e fingir que estava assustado, o mais difícil mesmo foi conseguir enganar o pai, com aquele olhar sempre desconfiado de quem já o pegara em várias mentiras antes. Ele o olhava, no ônibus de volta para casa, como quem se perguntasse se seria capaz de ter roubado aquele selo. Mas resistira ao olhar, permanecera firme e achava que conseguira convencê-lo.

Pegou o tênis nas mãos, puxou a palmilha e lá estava ele, o pedacinho de papel que valia oito mil Reais!... Um pouco amassado, meio grudado no solado, mas inteiro. Ficou olhando maravilhado para o selo que agora era seu. Oito mil Reais e era só seu!...

Ainda estava em estado de êxtase quando a luz do quarto foi acesa repentinamente. Zeca se voltou, olhos arregalados, a tempo de ver seu pai parado na soleira da porta, com um olhar vazio de quem preferia mil vezes estar errado.

Uma lágrima solitária escorria do seu rosto, mas o que assustou de verdade o garoto de seis anos foi o cinto de couro que ele trazia na mão.

(*) Olho de Boi - Primeiro selo postal brasileiro e segundo do mundo, lançado em 1843.