A Rua da Labuta
Naquele dia, ela se lembrava bem, não tinha brisa nem flores, era um dia bonito, com cheiro de fim. Na parede ia pregado o retrato da santa. “Ai, que a comadre gostava tanto de santo! ” E então, um cheiro de café. Dona Josefa nem chorava nem entristecia, tinha sempre a mesma cara. Só reclamava. Pendurado no canto da boca, ia o cigarro feito de papel velho:
– Mas logo no dia de Santa Teresa, comadre!
Era que tinha novena na paróquia e dona Josefa também era devota ardente da santa. Tinha feito na noite de ontem o bolo de fubá a pedido da comadre, e esta se foi assim, por mal-educada mesmo.
Sim, e o bolo... a idéia veio encomendada pela defunta, olhou-a estendida no caixão preto, e aquela vozinha de taquara lhe chegou bem dentro do ouvido:
- Serve o bolo, ô Josefinha, pra num perder a farinha! “Que seja” – pensou.
E lá ia bolo, café, a hora passando, o povo chorando. Às vezes fumaça, às vezes cachaça, milagre que passa o frio e o medo no fundo da alma. Alguns soluçavam, se era pela dor da comadre não se sabe, mas pela própria dor certamente. Dona Josefa chamou os presentes, era chegada a hora da defunta. Já iam levá-la pra onde o escuro e a solidão a esperavam para o sempre. “Comadre não enxergava mais, pra ela tanto se faz como se fez” – pensava dona Josefa.
O padre, de luto desde sempre, talvez já esperando esta inconveniência da vida em noite de novena da paróquia, ia balançando uma fumaça, resmungando das formigas no chão e rezando a despedida da comadre. O povo seguia. A fila até que era grande pra reputação da coitada: “Ô danada, nunca me falou da amizade desse aí, e é no dia da novena que ela resolve vesti o terno de madeira.” – dona Josefa também ia, resmungando, rezando, se arrastando.
Defunta posta no fim da tarde, choraram todos mais um pouco de hora. Depois iam saindo, de volta para suas casas, cada qual com a sua cisma, a sua vida e sua morte. Era já noite densa, e dona Josefa sozinha com a lápide da comadre. Olhou, suspirou, no chão viu uma florzinha roxa. Deixou-a lá, junto com uma lágrima, em cima do túmulo da comadre, que afinal, não teve tempo de morrer em outro dia nem em outro lugar.
Dona Josefa descia a rua devagar, pensando que não ia ter nem jantar nem reza essa noite. Ia pensando. Também não ia ver a tv, pois que era luxo demais. Ligava só de vez em quando pra não gastar a luz. A luz que demorou tanto... A geladeira era tocada a querosene, dona Josefa tinha ganhado de um irmão seu chegado da cidade; ele a tinha trocado por uma novinha, azul da cor do céu, funcionando à eletricidade. Olhou pra travessa da frente e pôde ver as luzinhas da igreja: “A novena” – pensou entristecida. Não iria não, o povo havia deixado bastante bagunça na sala amarelada por causa dos muitos cafés e bolos.
Chegou em casa e tirou os chinelos, por respeito, já que vinha do lugar dos mortos, e por hábito porque era assim. Principiou juntando as xícaras, reclamava e juntava; depois os pratos, mais reclamava. No cantinho perto da porta viu a cadeira da comadre, onde ela passava os dias fingindo ver o pouco movimento da rua, e viu também a própria comadre sentada: - Ô diacho ! desgruda carrapato, num já morreu não? - mas era só nuvem de pensamento. Lembrou-se então da estória. Comadre chegou em casa num dia de chuva trazida pelo marido de dona Josefa. Já nesses dias era cega e fraca, mas estava na idade de trabalhar: - Fica com a moça, ô Josefa, nem que for pra lhe fazer companhia. – dizia ele. E o tempo foi indo, e o destino de ouvido atento à casa de dona Josefa levou o marido embora pra não sei onde, deixando ela e a cega sozinhas. Dona Josefa vivia das rendas que vendia na feira e da horta do quintal. No mais, fazia ela mesma o sabão, criava bichos pequenos e entrava no troca-troca nas quermesses da igreja. Um belo dia, deu-se com a solidão e passou a tratar a moça, que já era velha, por comadre. Assim se deu.
Perdida nessas lembranças, até o coração quis amolecer, mas não era mulher para isto. Deixou a vassoura de lado, encostou a porta, apagou a lâmpada e foi indo no escuro para o quarto no fundo da casa: - Morto é morto, tem de cuidar é da vida que sobrou – resmungou ainda antes de se trocar pra dormir.
Ao lado da cama, além da outra cama, estava uma vela que seria acesa naquele instante e um copo com água pro caso de sentir sede durante a noite. Recostou-se no travesseiro, ajeita de um lado, de outro, não dormia. A cama pinicando. Pegou no terço, deitada mesmo. A ladainha ia acabar tendo função, pois dona Josefa falava sem dar uma pausa e sem alterar o ritmo da reza. Reza de palavras sem sentido, mas com efeito de fazer dormir. Dormiu.
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De manhã cedo dona Josefa fez o café e vestiu-se para a feira. Ia mais para vender do que comprar, pois que este era verbo escasso em sua casa. No entanto, o dinheiro da venda da renda ainda dava umas poucas coisas, para o que não desse, trocava. O dia estava morno e sem vento, era assim sempre que tinha de ir à feira. Ia indo e vendo os próprios passos, a sacola de rendas pendurada no ombro. Já era meio torta para um lado, de anos que fazia aquilo. Passava sempre pelo mesmo caminho: a Rua da Labuta, com suas casas pintadas de verde e cinza, grande conhecida da comunidade masculina na cidade, pois havia ali putas de todas as idades e de todos os preços. Igual a mercado livre, onde pechinchando sempre se consegue algum bom negócio.
A vida foi assim até a feira, seguindo pelo meio-fio enlameado antes pela sujeira alheia que escorria da casa dos outros do que por água limpa ou de chuva. Dona Josefa ia dizendo aos que encontrava uns bons-dias com jeito de mais ou menos. Mal-humorada, azeda, murrinha, tudo. Mas mal-educada jamais, isso não.
Pensava ainda na comadre morta, mas já com pouco sentimento porque, enfim, ocupava-se com a praticidade do quotidiano.
Ao final da ladeira, pensou que viu um vulto. Espremeu a vista e esticou a cabeça para frente tentando identificar quem fosse. Não conseguiu. Frustrada pela limitação dos olhos, passou a resmungar. Resmungava assim, por muito pouco, mas o suficiente para durar o dia todo. A noite, ela reservava para se redimir, levemente, mas ainda assim era um pouco de remissão. Os homens são assim. As mulheres também. Erram, quase acertam, erram e acham que acertam. A pretensão, aliás, é sempre presente no íntimo destes seres. Comer, vestir, se banhar, dormir, às vezes trabalhar. O quotidiano se faz desta forma, por via de ações consecutivas e conseqüentes.
Ia dona Josefa pela ladeira. No finalmente chegado, havia as bancas. Comida imprestável pelo chão fedorento. Muitos bichos vivos e pessoas faziam a composição, numa mesma massa sonora, de um quadro irreversível. O cheiro era cheiro de feira, de alimento pisado, de bichos vivos, de pessoas suadas, mas também da comida que se come. Dona Josefa não se incomodava, nem ninguém. Faria apenas o necessário enquanto alguns pensamentos queriam residir na sua cabeça. Desistiram. Ficou então com o vulto no lugar dos pensamentos, e estes logo começaram pensando: “- Acho que era pelo chapéu. Bobagem, ninguém conhece alguém pelo chapéu. Era o sol”.
Estendeu o pano de amianto no tablado que servia de banca, do lado já estava a banqueta de caixote esperando – gentileza de uma antiga ex-ocupante da banca, já falecida. Oferecia sua mercadoria com um meio-sorriso no canto da boca disputando espaço com o cigarro sempre trabalhador. Pessoas. Pessoas de toda a qualidade de caráter, de gênio, de procedência. A feira tem este poder de reunir pessoas. Acotovelam-se, gritam, xingam e pechincham. Dona Josefa basicamente observava. Às vezes melhorava a cara porque, afinal, era uma comerciante, tinha que conquistar freguesia. Moedas entrando, renda saindo. Dona Josefa passava deste jeito os finais de semana, na feira. Ao final, recolhia com os colegas, o arroz e o feijão que não fora vendido pra comprar mais barato. Era a janta e o almoço do outro dia. A carne era a da galinha que tinha na criação do quintal, ou o ovo e mais a horta. Vivia.
O dia caiu e dona Josefa começava a juntar as sobras de renda para voltar para casa. No caminho olhara de novo para as casas da Rua da Labuta. Mas desta vez não lhe ocorreu nenhum pensamento. Simplesmente olhou, com olhar de mulher. Ia para casa, o sol já incomodando a vista. - Acabou-se mais um dia.- suspirou. Nada havia mudado. Nem mesmo a morte da comadre, nem o vulto, nem o arroz e o feijão. Talvez dormisse melhor esta noite.
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A casa hoje estava toda amarelada. As paredes, o chão, as portas, as janelas, dona Josefa sentia-se também toda amarela, de uma tonalidade doída, sem graça e sem salvação. O sol ia frio. Dona Josefa foi pra porta de casa, puxou um banquinho na varanda e sentou-se. Olhava a rua de forma indiferente, estava apenas passando o tempo. Fumava seu cigarro, na fumaça que subia via o passado: as cores, os cheiros, os gostos de um tempo distante. E homem. Há muito não lembrava de homem, em tantos anos que viveu para sobreviver nessa vida amarga de pouco dinheiro e poucas alegrias. Filhos não tivera. Antes assim, pensava. Como faria agora sem ter um homem-seu-marido ao lado? Não que ele fosse muito necessário e importante, mas a vida já era bastante difícil para ela e a comadre sozinhas, se fossem mais a comer na mesma casa...
Fumava e pensava pensamentos de descanso. Ia labutar depois do almoço: fazer sabão, colher a horta, os ovos. Dona Josefa passava a vida. Pela vida, só. A poeira era muita e o frio do sol começou a incomodar. Levantou-se, encostou o banquinho, suspendeu-se e olhou para os próprios chinelos: estavam em estado de miséria, mas comprar outros saía muito caro. Pensou em fazer chinelos novos, tinha algum resto de tecido em algum lugar pelo quarto e a sola arranjava na feira, onde tudo se arranja; de um jeito ou de outro.
Mas antes dos chinelos, simplesmente enrolaria mais fumo em papel de pão e sentaria novamente no seu banquinho pra pensar no dia que ia indo. Ia como ela própria ia também, marginal, amarela, sem gosto nem graça. Via a fumaça subindo e quis estar em estado de fumaça; sem precisar comer nem vestir. Fluir em outro meio, em outra densidade. Às vezes o pensamento tem dessas coisas. Vontades. Insanidades.
E o vulto da feira? Aquele chapéu pardo, encardido. Quase ouviu uma voz. O homem-seu-marido. O chapéu. A feira. – ê pensamento, arre !! – praguejou. Será que os acontecimentos tinham afetado sua cabeça? Sentiu vontade de café. Era sempre assim, quando não achava meio de organizar as coisas, sentava e tomava seu café no bule esmaltado. O líquido circulava no seu corpo mulambento, fazia uma excursão no seu interior, desde o pensamento até o pé, que andava aliás bem mais rachado que de costume. “ Êita que cê tá porca demais Josefa !”. Levantou-se. O sol estava tão pálido quanto ela própria, tão sem jeito como seus pés. Quando se descobre o escorrer dos tempos e se acomoda a linha do início e do fim, então nem mesmo o café do bule esmaltado, nem o cigarro companheiro e nem o fantasma da comadre servem de consolo. Sentiu-se morta ela mesma.
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Como prosseguir naquela via? Como fazer com o serviço de todo-dia, se nem todo-dia ela estava viva? “menos pensamento” – acreditou. Caminhava como de costume pela Rua da Labuta, as putas todas espreguiçando nas janelas. Umas coçando a barriga, umas cutucando as unhas. Novos preparativos. Novo dia, nova noite, mesmos clientes, mais preparativos. Aquilo era suficiente? Elas sabiam o dia de depois, pelo menos isso.
Dona Josefa acordou desconjuntada, começou tudo bem devagar, como sempre, mas agora o mundo já ia a galope. A cabeça não prestava mais, o vestido também não. Aquele corpo que nunca foi bonito junto com a cara grande e achatada, sempre com olheiras roxas e a pele amarelada por causa do fumo constante...Nada de novidade, nem pensamento diferente. Ela admirava mesmo eram as moças da TV, quando ligava em noite sem lua. Tudo tão bonito na tv, tanto amor arranjado, tanta mentira.
Então, de fato, o dia ia muito estranho. Nem passarinho no céu, nem galinha ciscando. E mesmo ela não se reconheceu no espelho. Os móveis da casa mais pálidos que de costume, a poeira mais irritante e o sol mais amarelo. Sentia uma dor. Assim sem muita explicação nem localidade certa; só uma dor.
Passou na feira como quem passa amanhã. Nem ouviu os gritos dos moleques, nem os palavrões do homem do pastel, nem a pechincha da renda. Pensava vagamente. Um zumbido no ouvido lembrava a ela que era preciso pelo menos fazer de conta, tentar. Como sempre, o dia ia indo, se acabando.
Na volta pra casa, a ladeira castigou mais que de costume. Dona Josefa ia descendo pesada, arrastando o corpo molenga e barulhento. Passou os olhos nas janelas das casas da Rua, alguém estava fazendo café. O cheiro do café entrou na alma de dona Josefa, esquentou o mole do corpo e saiu pelo canto do olho. Não resistiu. Chegou-se na janela perfumada com curiosidade.
E, de repente, o susto. Uma cara que era um sorriso borrado de rosa encarnado abriu uma gargalhada que ecoou na Rua toda, olhando direto na cara de dona Josefa. Dona Josefa olhando pra dentro da janela ouviu, baixinho, mais gargalhada. Então, tudo se calou quando ela decidiu ir embora sem pedir desculpa para dona do café e já ensaiando um rosário de pragas, porque só estava gostando do cheiro do café, nada de mais.
Mas aí, o carrossel do mundo parou. Antes que ela pudesse tirar o nariz achatado da janela da puta sorridente, um corpo florido e castigado que fazia par com a cara borrada apareceu também do lado de dentro da janela. A puta não ria mais, só esperava que dona Josefa se acalmasse, ou talvez que uma caneca de café fresco comprasse sua simpatia, pelo menos naquela hora.
Dona Josefa parou até de respirar. A cabeça rodando. Os pés formigando. Olhou as unhas longas e vermelhas das mãos da puta. Será que ela tinha tanto dinheiro que podia mesmo comprar esmalte vermelho? E aquele vestido florido, tão florido? Sentiu outros cheiros vindo de dentro da casa e a curiosidade e falta do que fazer venceram finalmente os brios fracos de dona Josefa.
Quando respirou de novo já estava na sala da puta, tomando seu café cheiroso numa caneca de alumínio. O quente do café esquentava o pensamento dela. Sentiu-se toda café, preta, cheirosa e quente. Teve vontade até de sorrir. Os pés confortáveis dentro dos chinelos esfarrapados.
Nesse dia ela não terminou de descer a Rua da Labuta. Ficou por ali, aprendendo o ofício de puta e tomando café preto, deixando o amarelo da pele e da vida sem graça escorrer dentro do vidro de esmalte vermelho. E a lembrança da comadre se espalhou na do homem-seu-marido como a fumaça do cigarro fedorento se espalhava pelo ar. “Há de tá os dois no inferno” – ainda pensou. Pitou seu fumo fedido com as unhas pintadas e apagou de vez a memória dos mortos e feridos. Junto com sua nova decisão de vida, dona Josefa se sentiu ela mesma numa pessoa só, sem lembranças e sem ressentimentos. Gostava bem do rumo que as coisas iam tomando. Gostava de ficar na janela de dia e na putada de noite. Gostava dela mesma.