Sobrevivente do Haiti, Anjos do Brasil
Quoeir Jean Massiv permaneceu no escuro, sentia a dor aguda em uma das pernas e na cintura, mas não sentia a outra perna; a direita. Tudo aconteceu muito rápido, não houve tempo para absolutamente nada que não fosse um meio grito que ficou abafado assim que o teto veio sobre ele.
Agora ele se limitava a respirar em pequenos sopros, tragando um ar viciado, impregnado por poeira, resíduos de concreto e cimento. Passara as primeiras horas chorando porque fora açoitado pelo sentimento de que não mais veria sua família nem conhecidos; ainda não entendia bem o que aconteceu, não sabia o que tinha acontecido consigo mesmo e com as demais pessoas da escola onde estava no momento em que o caos se fez presente.
A terra tremeu violentamente e Jean teve a sensação de que o chão lhe tinha sido tirado de sob os pés, no momento seguinte ele viu pessoas correndo para todas as direções e quando tentou fazer o mesmo num puro instinto de auto-preservação, foi como se o céu caísse sobre sua cabeça; ele sentiu o peso de uma pancada que automaticamente o lançou ao solo, pareceu que a própria terra tinha se tornado uma espiral sugando tudo para as profundezas, mas ele sabia lá no íntimo que na verdade era o piso cedendo e toda a laje do segundo andar em que estava ruindo como se fosse feito de vidro.
Os momentos seguintes foram dominados por uma agonia indescritível, primeiro porque Jean perdeu completamente os sentidos e acordou sem saber ao certo quanto tempo passara desacordado, segundo porque as dores tinha se irradiado por praticamente todo o corpo, começando na cabeça, passando pelos braços, cintura e pernas. Uma delas pelo menos.
Tentou mover as mãos e percebeu que a esquerda estava presa pelos dedos por toneladas de concreto destruído; passou muito tempo tentando decifrar o que havia se passado até que a lucidez retornasse á sua mente e ele finalmente aceitasse a explicação mais lógica. Terremoto.
Gritou com a força que ainda tinha, mas o berro foi absorvido pela escuridão mortal do lugar onde estava, tentou novamente, esperava que alguém ouvisse seu desesperado pedido de socorro, mas novamente foi em vão. Sabia que deveria permanecer calmo se quisesse sobreviver àquela situação, mas a batalha interior era algo que somente pessoas submetidas a tais circunstâncias podem descrever, confrontar ou vencer.
A fome e a sede apertavam, provavelmente tivesse ficado dias desacordado, não sabia, provavelmente estava sob toneladas de concreto destruído e ferragens retorcidas do que antes fora a escola onde trabalhava.
Com o tempo as dores foram amainando e ele ficou apenas com a esperança de ser resgatado daquela prisão escura infernal; sua boca já estava cheia de grânulos de concreto, os olhos também estavam congestionados pelos mesmos motivos, mas ele insistia em tentar mantê-los abertos a despeito das sombras que o engoliam a qual ele tinha a sensação de que a cada segundo decorrido o absorvia um pouco mais até que não restasse mais nada a não ser um corpo sem vida.
“Quantas pessoas estariam naquela mesma situação como ele?”_ pensou. _ “Quantas não haviam sobrevivido como ele?”.
O ar ficava cada vez mais difícil de ser sorvido e cada vez mais carregado; a montanha de cascalhos destruídos avançava vagarosamente sobre ele e parecia uma única massa uniforme e viva tentando consumi-lo gradativamente como um monstro feito de trevas. Avançando e quebrando seus ossos um a um até que não restasse mais nada para ser partido em seu corpo.
Vez por outra o silêncio naquela prisão de concreto era quebrado por barulhos estranhos, estalos e estalidos, e, então a massa se movimentava sutilmente comprimindo um pouco mais o seu corpo já cansado da resistência.
Pensou ter ouvido vozes, estava lutando para permanecer acordado, talvez estivesse delirando. As vozes voltaram; gritos, muitos gritos desencontrados; ele tentou gritar também, soube que não era um delírio quando uma grande quantidade de pó de cascalho caiu sobre sua face, havia pessoas em algum lugar, ouviu as vozes de outras pessoas, um idioma que não compreendia, latidos e um barulho estranho.
Tentou gritar novamente mais a voz não saiu; os latidos estavam mais fortes e próximos, a ansiedade tomava conta de seu corpo, tentou se mover, mas o corpo, preso pelas extremidades, reclamou.
De repente um pequeno filete de luz do sol apareceu e imediatamente feriu-lhe a visão; mais latidos e vozes que não compreendia, eram vários homens, estavam falando rapidamente com um tom de urgência. Quoeir Jean piscou algumas vezes para que a visão se acostumasse com a claridade tênue e abençoada que passava pela fenda feita. Havia um cão farejando; a abertura por onde passava a luz foi alargada rapidamente e uma mão passou por ela para retirar alguns blocos de pedra que faziam resistência ao avanço daqueles que procuravam.
Um rosto apareceu pela fenda; um homem com uma espécie de capacete e óculos de proteção, aquela figura disse algo para Jean que ele não entendeu, em seguida pronunciou palavras ainda desconhecidas para ele, mas no fundo Jean sabia que o homem estava informando a outros que ali havia um sobrevivente.
O homem falou em idioma francês:
_Você está bem? _ perguntou.
Jean, mesmo soterrado e parcialmente dolorido respondeu que sim e sorriu de uma forma que seu rosto negro ficou iluminado pela possibilidade de salvação; possibilidade essa que já se tornava quase uma realidade.
O homem do lado de fora continuou retirando os blocos de pedra com as mão, demonstrava um cuidado excessivo para que algo não desse errado e depois de abrir bem a passagem se esgueirou para dentro do buraco, a cápsula vital que tinha mantido o hatiano vivo mesmo com toda a dificuldade pela qual passara.
O rosto daquele que resgatava transmitia uma firmeza, os olhos dele, ainda que protegidos pelos óculos reforçados, passava uma sensação de que tudo ia acabar bem afinal.
O tempo passou e o homem trabalhou ali incansavelmente retirando as pedras que mantinham Jean preso, até que finalmente com a ajuda de algumas pessoas fora do buraco ele conseguiu soltar todo o corpo do prisioneiro. Outros homens surgiram pela entrada da passagem e com calma e habilidade imobilizaram o corpo de Quoeir, se utilizando de talas, ataduras e protetor serviçal, prenderam-no a uma maca e iniciaram a remoção cuidadosamente.
Quando finalmente eles o tiraram da cova, houve uma comoção geral nas redondezas as pessoas comemoraram exultantes, embora ele não entendesse o que diziam, era nítida a felicidade nos rostos de cada homem ali, todos trajavam uniformes camuflados e possuíam os característicos capacetes azuis das tropas das nações unidas.
Ele soube que estava salvo da catástrofe que ainda não entendia nem conhecia as proporções e viu um símbolo que denunciou quem tinha efetuado aquele resgate heróico, um símbolo que daquele momento em diante significaria para ele o renascimento e a salvação. Em toda parte ali tinha espalhada uma bandeira que Quoeir conhecia muito bem, a bandeira do país conhecido pelo mundo como sendo o país do futebol, mas que obviamente não era apenas isso; e cujas cores verde e amarela já eram conhecidas pelo povo haitiano; o amarelo, entretanto, naquele exato momento era tocado pela luz que lhe concedia um tom dourado. Sabia que era a bandeira do Brasil.