Por que eu não fui no shopping?
Passava do meio-dia, quando Renê ouviu batidas fortes e insistentes na porta de seu apartamento. Ao atender, deparou-se com um homem de feições duras, barba por fazer, olhar ameaçador e um jeito de falar frio e autoritário.
- Oi, tá lembrado de mim? – perguntou apressado, e vendo o rosto patético e amedrontado de seu interlocutor, prosseguiu:
- Eu sou o Jazão. Aquele cara que tu e o Albertinho conheceram no décimo quinto distrito.
- Ah tá! – concordou sem muita convicção, lembrando-se, que há duas semanas, entrara para uma entidade de auxílio e proteção aos direitos dos presidiários, por influência de um amigo. Tentou argumentar, mas foi empurrado e quando viu, o bandido, suado e sujo, já estava sentado no sofá.
- Pois é, vocês mandaram eu procurar vocês sempre que eu precisasse – justificou-se Jazão.
- Ah tá – cada vez mais indeciso e amaldiçoando a hora em que deu ouvidos ao amigo e entrou na tal organização.
- Pois é, eu tô precisando.
- É problema com a polícia? – perguntou receoso.
- É e não é. É que eu fugi lá da delegacia, mas antes entreguei uma quadrilha lá da vila pros home e agora os cara me juraram de morte.
- Credo! – estremeceu Renê ao sentir a fria em que estava embarcando.
- Pois é. Faz o seguinte: vai até a janela e vê se eles me seguiram até aqui.
- Eles, quem?
- Os caras da vila, homem!
Renê pensou em desmaiar, mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Foi até a porta da sacada, abriu uma fresta na cortina e exclamou:
- Ai meu Deus! Por que eu não fui no shopping?
- O que é?
- Nada, nada.
- Não tem ninguém?
- Não tem ninguém?! Ah, ah, ah, - deu uma risada nervosa. – O otimismo dele! Tem uma excursão inteira atrás de ti, criatura.
- Tá brincando?!
- Tem no mínimo uns dez. Tudo de metralhadora na mão. Fora os três que estão no carro e não dá para ver como eles estão armados.
- Então o negócio é resistir – falou, enquanto retirava os revólveres da cintura.
- Violência não! Por favor! Vamos tentar o diálogo – implorava ao bandido, que sem se importar com a súplica do dono do apartamento, carregava as armas.
- Com essa gente não tem conversa. Eles só sabem cumprir ordens. E a ordem é matar eu e quem estiver comigo.
Renê sentiu um suor frio escorrer-lhe pelas costas, mãos e testa, além de uma enorme vontade de chorar, gritar e até desmunhecar se isso o fizesse acordar do pesadelo.
- Ai meu Deus! Por que eu não fui no shopping?
- Agora não adianta se lamentar. Sabe atirar?
- Não, não! – respondeu apavorado, quase berrando.
- Nunca é tarde para aprender. Só tem que ficar frio.Entendeu? – perguntou ao humanista, que andava de um lado para o outro a procura de uma solução.
- Polícia, nem pensar – continuava o fugitivo. – A gente nunca sabe de que lado eles estão.
- Ai meu Deus! Até alguns minutos atrás, eles estavam do meu lado ou eu do lado deles, agora... Ai meu Deus! Por que eu não fui no shopping?
Jazão começou a irritar-se com o companheiro, devido à sua insistente lamentação.
- Pára com isso, cara! Afinal, por que tu não foi no shopping?
- Eu estava indo, no dia em que entrei para essa maldita entidade. Lá ia eu, todo faceiro pela rua, pensando no que ia comprar, quando encontrei o Albertinho e um amigo dele, um tal de Pedrinho Júnior. Foi só eu dizer aonde ia, que os dois viraram umas feras. Chamaram-me de burguês, de fútil, disseram que eu tinha que ter valores mais elevados, mais consciência social e que devia assumir posições menos consumistas, que ajudassem no crescimento da nossa sociedade. Foi aí que eles me levaram para essa entidade e foi nesse dia que eu te conheci. Por que eu não fui no shopping? – gritou, serrando os punhos e dando pulinhos no meio da sala, quase aos prantos.
- Bom, agora não adianta mais chorar, o negócio é resistir – procurou consolá-lo Jazão.
- Valores mais elevados, se ainda fosse dólar, libra ou euro. Por que eu não fui no ... -interrompeu sua reclamação ao ver a cara furiosa do visitante. Ficou alguns segundos em silêncio, pensativo, e até um pouco constrangido e amedrontado, como criança que sofre uma advertência de um adulto. De repente teve uma idéia:
- Já sei! Vou ligar para o Albertinho!
- Não adianta. Antes de vir pra cá eu passei na casa dele. Não tinha ninguém.
- Então vou ligar para o Pedrinho Júnior.
- Também não está em casa
- Ele deve estar na sede da entidade.
- Acho que não.
- Mas é uma esperança – animou-se Renê, voltando logo ao seu estado de tensão, ao saber, através da secretária, que não sabia onde ele se encontrava. Na certa, reuniões políticas em benefício social da nossa comunidade – completou a doutrinada funcionária.
- Não está – explicou o dono do apartamento ao marginal. – Não está e a secretária não sabe onde ele se meteu.
- Tô te falando, o negócio é a gente mandar bala nesses caras.
- Já sei! Vou ligar para os amigos do Albertinho no jornal.
- Será que eles ajudam?
- Claro! Eles sempre ajudam – respondeu discando o número, num misto de alívio e expectativa.
- Tomara que dê certo – torcia Jazão.
- Vai dar. Vai dar. Alô é do diário? Eu queria falar com o Gilson da redação. Tá no interior, numa reportagem. E o Rogério? Tá de férias. Ai e agora...E o Humberto? Foi despedido. E o Jair? Pediu demissão. Mas por quê? Não sabe. E Agora? Não tem ninguém aí da política ou da polícia? Só mais tarde. Não, tudo bem. Mais tarde eu não sei se não será muito tarde. Adeus.
Olhou para o bandido e ao notar seu rosto nervoso, limitou-se a se lamentar em pensamento, enquanto o ouvia dizer:
- Tô te falando, cara! Não tem jeito! O negócio é resistir. É meter bala neles. Pior é se eles se juntaram com a turma do Dirceu.
- Quem é o Dirceu?
- O Dirceuzinho.
- E quem é o Dirceuzinho?
- O Dirceuzinho. Não conhece ele dos jornais?
- Não – respondeu impaciente.
- O Dirceuzinho é filho do Dirceuzão. Entendeu? – como a resposta fosse negativa, Jazão explicou melhor. – Eles são uns traficantes que eu roubei no ano passado e que até agora andam me caçando.
Quando recuperou os sentidos, Renê estava deitado no chão, mirando o teto. Por alguns segundos, teve a impressão de que o pesadelo acabara, mas foi só ver o semblante do visitante, para ter a certeza de que seu calvário não havia chegado ao fim.
- Tu tem algo aí para a gente comer?
- Só uma torta de cereja.
- Então traz – ordenou-lhe o fugitivo.
- Sim senhor – correu para a cozinha, repetindo a frustração de não ter ido às compras. Serviu a torta e voltou para buscar uma cerveja gelada, conforme pedido de Jazão.
- Credo! Além de não ter ido ao shopping ainda virei a doméstica desse bandido. O Albertinho e aquele amigo dele me pagam.
Ao retornar com a bebida e um copo brilhando de limpo, como o visitante exigiu, o dono do apartamento teve a idéia de chamar o vizinho do andar debaixo, um halterofilista, praticante de tiro ao alvo e fã dos filmes de guerra.
Dez minutos depois, chegou o reforço. Jazão que dispensara os talheres, ficou com um pedaço de torta, entre os lábios imóveis, a olhar surpreso para aquele homem musculoso, com uma fita na testa prendendo os cabelos, cartuchos cruzados no peito, duas granadas e dois revólveres na cintura.
Paulão foi logo explicando que não podia deixar de auxiliar um vizinho, mas para um desconhecido, precisava saber de que lado estavam os mocinhos. Após uma curta conversa, enquanto ajudou a devorar a torta, sempre atendido pelo atencioso serviço da casa, o Halterofilista não teve mais dúvidas.
- O amigo pode ficar tranqüilo. Continue o seu lanche, enquanto que eu e o Renê vamos buscar mais armas lá em casa.
- Mais?! – Surpreendeu-se o dono do apartamento.
- Pelo que eu entendi, essa gangue que persegue o nosso injustiçado amigo – termo que empregou, depois das mentiras que ouviu para convencê-lo a abraçar a causa de Jazão – deve ter pelo menos uns sessenta elementos – calculava Paulão.
- Credo! Ai meu Deus! Por que eu não fui no shopping? – dizia Renê, tentando manter-se em pé, apesar das pernas trêmulas.
- É bom a gente se armar até os dentes – afirmava o halterofilista, empurrando o vizinho para o seu apartamento.
Após meia hora, já estavam entrincheirados com três espingardas de caça, revólveres, pistolas, caixas de munição e mantimentos não perecíveis que dariam para mais de um mês.
Em pé, no meio da sala, desolado, Renê olhava para os móveis cobertos pelo equipamento bélico, sacos de arroz, feijão, massa, garrafas de água mineral e latas de cerveja. Pela disposição de seus companheiros, sentia que só voltaria à rua no ano seguinte, isso se tivesse a sorte de permanecer vivo. Procurou o santo de sua devoção, ao lado da estante, mas não o encontrou. – Ai meu Deus, Por que eu não fui no shopping? – resmungou, enquanto se dirigia ao telefone, tentando contatar com alguém da entidade. Ao discar, ouviu o estrondo de uma granada e só teve tempo de se atirar ao chão, por cima do fugitivo, que mesmo deitado, não largava o copo de cerveja. Alguns segundos depois, Paulão retornou da sacada, faceiro.
- Pronto. Botei essa cambada para correr.
O dono do apartamento teve vontade de chorar, mas não teve tempo. Seus colegas comemoravam com um forte aberto de mão e pediam mais bebida. Há todo momento, o halterofilista se postava na sacada e com a mão em aba sobre os olhos, numa posição de vigia, como nos filmes de faroeste, procurava os bandidos. Da janela, Renê via as pessoas apontando para o homem armado em seu apartamento. Temendo uma tragédia ainda maior, correu ao telefone, mas na casa do Albertinho e no escritório do Movimento de Defesa dos Direitos dos Presidiários, ninguém atendia.
- Ele deve estar em alguma delegacia ou presídio ajudando algum detento – afirmava Jazão.
- Só pode ser – concordava Renê. – Ele vive para isso.
- Um grande cara. Ele merecia uma estátua por tudo o que faz. Que coração! Que humanismo! – exclamava o fugitivo, profundamente emocionado.
- É, tem um bom coração. Mas bem que podia não ter me metido nessa – lamentava-se o humanista.
- Agora não adianta reclamar, o negócio...
As palavras de Jazão cessaram quando os três ouviram uma barulheira ensurdecedora de dezenas de sirenes. Renê foi à janela, e de olhos arregalados e lábios a tremer, contou mais de vinte viaturas de polícia. Correu para o telefone, tentando contatar com o único membro da entidade que conhecia, fora Pedrinho Junior.
- Aonde será que o Albertinho anda? – repetia para si, no momento em que escutou o Paulão, na sacada, ordenar aos policiais:
- Rendam-se! Estão todos na minha mira!
E um agente perguntava:
- Vocês têm reféns?
Renê tentou aparecer na varanda. Era sua chance de cair fora da enrascada, mas foi seguro pelo fugitivo, que dando tiros a esmo, acertou no peito do pingüim, em cima da geladeira. Arquibaldo tombou no chão, estraçalhado.
- Agora, além das quadrilhas e da polícia, vocês conseguiram atiçar a ira dos habitantes do Pólo Sul – falava Renê, olhando os cacos do bibelô, antes de sofrer um ataque de choro.
- Por que eu não fui no shopping? Por quê?
Foi consolado pelo vizinho, que lhe cedeu seu ombro.
- Calma companheiro. Nós vamos sair dessa.
- Duvido. Du-vi-de-o-dó. Por que eu não fui no shopping? Por quê? – repetia, secando as lágrimas, e logo a seguir respondendo ao fugitivo:
- Não tem pudim de leite!
- Mas por que não?! Tu e os teus companheiros vivem a exigir uma vida digna para os presidiários. Tu já pensou em vida direita e digna sem pudim de leite? – indagava o visitante, obtendo a adesão do halterofilista, o que obrigou a vítima a ir até a dispensa, procurar os ingredientes para o pedido.
O cerco policial entrou pela noite. Apenas um lampião iluminava a peça, já que a energia havia sido cortada. Renê andava de um lado para o outro, atendendo as necessidades alimentares dos companheiros. Paulão contentava-se com carne e macarrão. O outro exigia feijoada, bife e batatas fritas, fazendo questão de lembrar, a todo momento, para o dono do apartamento, da calda de chocolate sobre o pudim. Preparando a sobremesa, o humanista ouvia as bombas de efeito moral, que eram lançadas para que eles não pudessem dormir. A cada estrondo, o cozinheiro levava um susto, deixando algum talher cair, escutando logo a seguir a ordem do fugitivo para lavá-lo. Paulão respondia às autoridades, lançando-lhes um artefato semelhante, o que fez com que grupos especiais da Polícia Federal e do Exército fossem acionados para combater os subversivos.
A situação ficava cada vez mais tensa. Os vizinhos reclamavam à sindica, que ameaçava despejar o bagunceiro e ainda cobrar pelos estragos no edifício. Dona Elvira chegou à porta do apartamento e aos gritos implorava ao morador:
- Pelo amor de Deus, seu Renê. Vamos acabar com isso. O senhor sabe o que são mais de oitenta soldados usando a água do condomínio? A moradora do 203 já disse, que este mês, não paga, se tiver excesso. Sujam o hall de entrada, pedem a toda hora para usar o banheiro da dona Giorgina, coitada, logo ela que sempre gostou de morar no térreo.
Ao tomar conhecimento do número de adversários, o refém desmaiou. Foi acordado pelo Jazão, que o levou para a sacada sob a mira de um revólver, gritando para os policiais:
- Ou vocês me deixam partir ou a gente acaba com a vida dele, agora mesmo!
- Podem acabar – blefava um tenente. – Esse cara e mais dois vivem lá na delegacia enchendo o saco da gente. Nós vamos invadir!
- Não façam isso, pelo amor de Deus! – implorava o prisioneiro. – O apartamento está todo desarrumado.
- Não interessa. Nós vamos invadir!
Jazão procurava um novo trunfo, por isso, tratou de inventar dois reféns.
- Nós temos uma amiga dele e a filha de colo como prisioneiras.
Para certificar-se de que não era mentira do assaltante, o tenente pediu para ver a mulher e a criança.
- Nada disso – gritou o seqüestrador.
- Ou aparecem ou a gente invade.
- Elas estão amarradas na cama.
- Desamarra, monstro!
- Não.
- Nós vamos invadir!
- A mulher vai falar com vocês. Se bem que com o Q.I. de vocês, era melhor que o bebê negociasse – concluiu com uma sonora gargalhada que irritou o policial.
- Olha o respeito, desgraçado.
Jazão retornou à sala e depois de encontrar Paulão no banheiro, sentado na privada, pediu-lhe que imitasse uma voz feminina. Ao voltar para a mira das autoridades, tendo o dono do apartamento como escudo, o fugitivo ouviu os gritos da suposta mulher.
- Socorro! Socorro! Eles querem me estuprar. Me amarram na cama. Vão me matar! Negociem com eles, por favor! – seguiu-se um curto choro infantil, emitido por Paulão, enquanto procurava o papel higiênico.
- Nossa que voz horrível! Deve ser um tremendo de um jacu. Se não fosse pela criança a gente já devia ter invadido – comentava o negociador com um dos policiais, acompanhado pelo sorriso malicioso dos colegas.
O apelo dramático fez com que o oficial responsável pela operação negociasse, ao mesmo tempo, em que um grupo de fiéis chegava para orar pelas vítimas e um fim pacífico para o impasse.
- O que tu queres, Jazão? – indagava o tenente.
- Eu quero um milhão de dólares, um carro para fugir e que a Zulmira, minha namorada, venha aqui comigo. Depois de me darem tudo isso, eu solto o pessoal.
Na manhã seguinte, a única exigência atendida foi a presença da amante. A mulher, apesar de magra e uma estrutura frágil, tinha uma voz alta e metálica como se falasse através de um alto-falante. Chegou aprontando o maior alvoroço, tornando a situação ainda mais nervosa. Gritava com os soldados, pedindo que deixassem o homem dela em paz, afinal ele era gente fina. Matar dez, qualquer um mata. Ameaçava as autoridades, dizendo que tinha um cunhado que era cabo do exército.
Entrou no apartamento aos berros, ignorando Renê e seu vizinho.
- Mas Jazão, qual é a tua? Me bota num compromisso desses e logo hoje. Tive que deixar a faxina lá de casa, a mãe no sofá atacada do reumatismo, ainda sem televisão, que tá quebrada. A velha perdeu a dentadura e tu me faz andar de camburão...
- Pode deixar meu amor, que se o meu plano der certo eu compro uma televisão de cem polegadas pra tua mãe.
- É mesmo?
- Aquela, tipo cinema.
- Jura?!
- É, tão grande que eu vou ter que botar ela lá no quintal e fazer um puxadinho.
- Credo!
- Quanta mentira – suspirou o refém. – Ai meu Deus. Por que eu não fui no Shopping? – lamentava-se, sem dar bola ao olhar repressor que o bandido lhe lançava, por estar importunando sua conversa.
- Além disso, eu vou comprar uma dentadura de ouro para ela.
- Hummm! A mãe vai virar gente fina!
- Vai virar dama da alta, cheia de ouro na boca.
- Ai, como tu é bão, Jazão!
- E agora, deixa de papo furado e vamos lá pro quarto, que eu te chamei aqui foi pra isso.
- Mas quais são as tuas intenções comigo, seu malandro?
- Casar contigo. Tu ainda dúvida? Vamos pegar essa grana e fugir daqui.
- E a televisão e a dentadura da mãe? – perguntou desconfiada.
- A gente compra em Miami.
- Miami?! Aonde fica isso?
- Bem longe daqui.
- Depois de Cidreira?
- Mais, bem mais. Eu acho que é na Bahia.
- Ah bom!
- E agora, enquanto que eles não mandam a grana e o carro, vamos aproveitar a vida.
- Trouxe a camisinha? – perguntou a namorada.
- Já vem tu com besteira. Tu sabe que o meu negócio é tamanho dezoito. Só cabe em ti.
- Ah, é verdade! O que é a natureza? Ainda bem que a gente se encontrou. Fomos feitos um pro outro.
- É isso aí.
Antes de entrar no quarto, o assaltante avisou seus companheiros:
- Eu não quero ser interrompido por nada nesse mundo. Ouviram bem? - e ao dono da casa perguntou:
- Os lençóis estão limpos?
- Foram trocados hoje pela manhã – respondeu Renê, murmurando, logo após:
- Ai meu Deus. Por que eu não fui no shopping?
Foi só o casal se trancar no quarto, e a polícia voltou a chamar pelo fugitivo. Em seu lugar, Paulão foi dialogar com as autoridades.
- Ele agora não pode. Está transando com a mulher.
O povo aplaudiu o amante que apreciava situações de extremo perigo. Os fiéis benzeram-se, deixaram de orar e começaram a protestar contra o amor livre.
- Com qual das mulheres? – indagou o tenente.
- Com a Zulmira, com quem mais vai ser? – respondeu, sem lembrar, que há pouco, imitara uma voz feminina.
- E a outra?
- Que outra?
- A que estava amarrada na cama?
- Continua amarrada.
- Na cama?!
- É.
- Mas isso, além de seqüestro está parecendo filme pornográfico – disse o oficial, surpreso.
- E a criança? – gritou um agente.
- Vai bem. Manda lembranças.
- Mas ela já fala?
- Ah cara, vai tomar... – terminou a frase com um gesto.
A conversa fez com que os religiosos empunhassem cartazes, protestando contra a devassidão no apartamento. Renê lamentava-se, cada vez mais, ao ver faixas pedindo as cabeças dos depravados, outras condenando o sexo antes do casamento, além do sexo em grupo que rolava no quarto.
Do corredor, vinha a voz da síndica, que ameaçava o inquilino:
- Se não for expulso pela bagunça vai pela orgia, seu Renê! O senhor sabe muito bem. Está escrito no regulamento do condomínio, que não podem acontecer encontros suspeitos nos apartamentos.
- Suspeitos?! – respondeu espantado o refém. – Aqui está todo mundo prá lá de declarado. Ninguém está fazendo nada escondido!
- E o senhor ainda assume essa sem-vergonhice, seu safado! – questionou, indignada dona Elvira.
Enquanto isso, a multidão mais liberal gritava:
- Garanhão! Garanhão! Dá-lhe Jazão!
E os crentes contra-atacavam:
- Ira, ira, ira. Zulmira é uma galinha!
O nervosismo aumentou quando Paulão, com medo de que sua parte feminina fosse envolvida no caso, fez uma revelação:
- A outra mina é muito macho. Estão ouvindo?
Os fiéis ergueram tabuletas pedindo o fim do homossexualismo e cadeia para a refém lésbica e os devassos. Grupos simpatizantes às minorias entraram em conflito com os crentes. Eram tapas, socos, puxões de cabelos, gritos, gemidos e xingamentos para as mães de ambas as partes. Por alguns instantes, a polícia teve que deixar de lado as negociações, para separar os bandos rivais, que transformavam a rua em um ringue de luta livre. Sem sucesso, as autoridades contaram com a sorte, pois um grito, aflito e assustador, pôs fim a toda confusão. Estridente e desesperado como era, ninguém teve dúvidas de se tratar da Zulmira. A briga cessou. Uns deitados no chão, outros na calçada ou em cima dos carros. Vários com um soco interrompido a um palmo do rosto de seu oponente. O silêncio era total. A platéia sabia que algo importante estava para acontecer. Os policiais colocaram-se apostos, certos de que os terroristas haviam degolado uma das reféns. Após segundos de apreensão, escutou-se o grasnar da namorada do Jazão:
- Mas como que isso nunca te aconteceu antes?
- É a tensão amor.
- Tensão uma ova. Isso tem mulher na jogada.
- Não tem.
- Claro que tem.
- Não tem, eu juro!
- Não jura em falso, sem-vergonha. Porque eu ouvi quando o policial falou numa outra mulher, que estava amarrada na cama.
- Não era mulher. Era o Paulão.
A conversa foi cortada por um berro de pavor de dona Elvira a
síndica, como se ela estivesse a ponto de ser dividida por uma serra elétrica.
- O Paulão! Um rapaz tão jovem! Pratica um monte de esportes, até halterofilista é, e também sofre dessa doença. Coitadinho – caiu em prantos, antes de perder os sentidos no corredor. Ninguém a socorreu, estavam todos paralisados, atônitos com a revelação. Muito vizinhos diziam que era por isso que ele tinha se metido lá no apartamento do Renê. Começaram a surgir certas histórias sobre os dois, que alguns moradores juravam serem verdadeiras. Na rua, a multidão e até os policiais balançavam suas cabeças, quase não acreditando no que ouviam. Os religiosos, calados para não perderem o desfecho, se benziam.
- Além de broxa, agora deu pra isso? – indaga Zulmira.
- Não é o que tu tá pensando – interrompeu-a o assaltante muito nervoso.
- Como que não?! E tu me mentias que a gente tinha sido feito sob medida um para o outro.
- A minha transa com o Paulão não é essa.
- Ai credo! Quer dizer que o negócio dele é que só cabe em ti?
Não adiantou o fugitivo tentar argumentar. Perplexa, a mulher entrou em transe. Paralisada, olhava para a parede, tentando coordenar as idéias e entender aquilo que sabia, que não entenderia nem em um milhão de anos. Seu namorado, amaldiçoando o momento em que tivera o lampejo de convocá-la, correu de arma em punho, para tirar satisfações do povo que gritava:
- Bicha! Bicha!
Quando chegou à sacada, o coro aumentou. Paulão, atrás do bandido, alternava seu dedo indicador das costas de Jazão , nas quais fazia um gesto afirmativo, com o polegar, e para seu próprio peito, sinalizando que não tinha nada a ver com as preferências sexuais do fugitivo. Os fiéis entraram novamente em luta corporal com os membros da entidade de apoio aos gays, que elegeram Jazão seu presidente. A polícia não conseguia conter os ânimos. Populares entravam na briga, aderindo aos dois grupos. Pessoas rolavam agarradas pela rua, calçadas e jardins. Jacinta, a organista da igreja do bairro, aproveitando o tumulto, passava a mão boba pelas partes de todo mundo, não escapando nem homem nem mulher. Ao saber da confusão na rua, a síndica, já recuperada do desmaio, gritava, lá do corredor, para não pisarem ou deitarem na grama.
- Liguem para o Albertinho. Ele sabe o que fazer – apelava Renê da sacada de seu apartamento, transtornado e arrependido, da maldita hora em que aceitou entrar naquela entidade. Não se importando de levar um soco ou um tiro, só se lamentava de não ter ido ao shopping.
- Tarado. Depravado. Tu ainda queres mais um – gritava o sacristão, preso por uma Drag queen, que só por deboche lambia sua orelha.
- Albertinho garanhão! Albertinho garanhão! – gritava a platéia, que assistia a tudo, sem tomar partido nas lutas corporais.
- Ai meu Deus. Por eu não ter ido ao shopping, dei início à uma revolução! – orava o refém, com os braços levantados para o céu, em busca da ajuda divina.
- Quem é esse Albertinho? – indagava aos berros um membro do exército, recém-chegado com uma tropa de reforço, juntamente com os bombeiros, que causaram frenezi nos grupos gays, que ao som de “Macho Man”, que tocava a todo volume em uma Van, não paravam de puxar os soldados para dançar ou simplesmente se desvencilhavam de algum crente agarrado ao seu corpo, e tentavam pelos menos tirar uma casquinha daqueles soldados.
- Aquele cara que ia nas delegacias e nos presídios comigo, conscientizar os presos de seus direitos.
Uma hora mais tarde, as brigas haviam terminado e a multidão acompanhava apreensiva o desfecho da estória. Com um revólver apertando sua cabeça, Renê sentia cada minuto se transformar em uma eternidade de angústia, medo, e nada do colega de militância.
Ao avistar o tenente, que retornava da décima tentativa de encontrar o Albertinho, o dono do apartamento foi perguntando:
- Conseguiu telefonar?
- Consegui.
- E ele? – indagou mais aliviado.
- A mãe dele disse que ele não estava em casa. Saiu com um tal de Pedrinho Júnior.
- E ela não disse aonde que eles foram? – perguntou meio desanimado.
- Foram no shopping! – gritou o oficial.