O Festival
O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando o meu tempo não era ocupado por outra coisa que não fosse estudar, namorar e trabalhar, não necessariamente nessa ordem.
Conquanto exercesse a profissão de bancário, era feliz, mas na minha felicidade morava uma nuvenzinha: não tinha tempo pra me dedicar ao estudo de música e, muito menos, dinheiro pra sustentar esse capricho.
Havia já dois anos que eu trabalhava naquele esquema de abrir e fechar contas, receber e devolver cheques sem fundos e coisas do gênero. Não conseguia me adaptar a isso e, também, nem queria trabalhar nessa profissão!
Mas, esse sentimento não era feito de angústia. Eu tinha uma poderosa válvula de escape,qual seja, a de “fazer serenatas” – isso mesmo: assim é que se dizia na época. Ninguém falava de serestas e seresteiros naqueles tempos. Por conta das serenetas, sempre achava um tempinho e um pretexto para ensaiar novas músicas com os amigos que comigo tocavam.
Gostava de poesias, do universo literário, mas precisei abrir mão dessas “veleidades poéticas” para cuidar de coisas "mais sérias" e mais úteis, que me trariam algum dinheiro.
A fortuna nunca me sorriu, mas também nunca me fez falta, portanto, nunca me inquietou, embora pensasse ganhar algum dinheiro na área musical...
Um belo dia, andando pelo centro da cidade, entre cartazes que anunciavam o segundo festival de música da cidade, encontrei um amigo que fazia parte de um grupo, um dos primeiros que se organizaram na cidade, para “defender” as músicas nos festivais, acompanhando os cantores e/ou compositores.
Tinha, portanto, o meu amigo, grande interesse em arrebanhar o maior número de participantes possível, pois ganhava pra isso, tocando num famoso conjunto da cidade.
Esfuziante, perguntei ao amigo Augusto: Como posso participar desse festival?
- É só enviar, impreterivelmente, até sexta-feira, a cópia da letra, pagar a inscrição e preencher um formulário, disse ele.
Nesse momento minhas pernas tremeram, pois andava sequioso por apresentar uma música num evento dessa natureza.
- Mas, como funciona isso?
- Ora bolas! é só inscrever-se, mandar a letra e apresentar-se no dia, com o conjunto. O Camargo poderá representá-lo, cantando a sua música. Podemos ensaiá-la e, depois, é só convidar a torcida!
- Mas quem é o Camargo?
- Você não o conhece? Ele canta sempre no Bola 7, no Pauliber,...
- Ele trabalha na prefeitura, mas tem como hobby cantar e, canta muito bem. É afinadíssimo. Vou passar o telefone dele pra você e vocês combinam os detalhes...
Durante o dia todo, com a habilidade de incipiente, reconheci que algumas frases da melodia necessitariam sofrer alterações, por questões de metrificação e outras coisas mais. Arregacei as mangas e consegui aprontá-la no meio da madrugada.
Alguns conselhos mais do amigo Augusto foram fielmente observados e, no outro dia, liguei para o tal Camargo – esse era o seu sobrenome.
Contou-me que conhecia o conjunto que iria lhe acompanhar e demonstrou grande interesse em “defender” a música.
Eu só deveria enviar uma fita K7 com a música acompanhada de voz e violão e, o resto, "deixe comigo e a banda do Augusto", disse ele!
Contou-me, também, que fora transferido, inopinadamente, de cidade. Disse ter deixado lá vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes, mas cantar sempre fez parte de seu estilo de vida e isso sempre levou a sério, tanto que já tinha dois discos gravados.
Seguindo o seu conselho, enviei-lhe a tal fita e, na véspera do festival, pude assistir ao último ensaio com a banda, o que muito me agradou, pois o arranjo ficou muito bom.
Mal pude dormir naquela noite, agitado pela idéia de que teria uma música no famoso festival.
A minha estréia foi um delírio! Amigos, parentes e o teatro completamente lotado. Não havia um só lugar desocupado.
Cartazes impressos com letras garrafais confirmavam o acontecimento despertando em todos um entusiasmo indizível.
Bem depois da hora aprazada, chega o Camargo, ocasião em que os amigos já apelavam para a minha paciência, pois o festival já havia começado.
O fato é que, no momento em que o meu representante chegou, por mais que pudesse disfarçar, não podia encobrir os ares etílico-vaporosos que dele se desprendiam mas, fui consolado pela namorada do cantor quando ela disse: Ele bebe, mas canta melhor ainda quando tá “mamado”. E disse isso tudo trazendo um sorriso nos lábios!
O meu coração voltou a bater compassadamente, levado pelo estímulo verbal da moça. Muito embora meus olhos não partilhassem do mesmo sentimento, nada poderia ser feito pois, quem haveria de reprimí-lo numa hora dessas, minutos antes da apresentação.
Sob palmas e vaias, comum nos festivais, a minha música é anunciada e o Camargo, então, subiu ao palco.
À frente do microfone, o moço ficou uns 5 minutos, estático, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso, mas o olhar perdido no vago.
O público aplaudia calorosamente e o artista parecia em “pleno êxtase”. Ele não lembrava a letra e, muito menos, tinha "alguma colinha" dela. Que fiasco!
Quanto a mim só restava, diante da gravidade do fato, homologar a "sentença de morte ao meu primeiro festival", o sonho antigo era, agora, a prova eloqüente de quanto a boa fé, às vezes, pode nos colocar numa situação extremamente delicada.
- Não se preocupe, disse um dos "amigos". Ao ver-me estupefato, soltou essa: no ano que vem tem outro festival. Graaande incentivo!
A verdade é que meu corpo, agitado por tudo aquilo, tremia convulsivamente dentro da camisa já manchada pelo suor do sovaco.
Bem, quem triunfou, ficando com as honras da noite festiva foi realmente o melhor: um músico experiente e que encerrava todas as qualidades (e defeitos) indispensáveis para agradar a platéia; porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, sempre rindo e trazendo esse riso até no nome: Hilário! Era conhecido como Hilário cantor – ironia do destino!
Quanto ao meu representante, nem no nome trazia uma fórmula de consolação: Camargo - para mim ficou somente "Amargo"- feito jiló!!!
Carlos Roberto Furlan
Eng. Agrônomo/professor