A terra e o homem
A TERRA E O HOMEM
Dezembro/2010.
Newton Schner Jr.
Olho para fora da janela e já não vejo a mesma paisagem. Está vazio, como outrora fora. O abacateiro. Os limoeiros. O pé de amora. As tantas outras árvores que eu sequer sabia o nome de seus frutos. Agora, nada mais existe.
É com o barulho da serra elétrica que hoje sou acordado. Em um instante, saudade. As árvores que antes não eram muito notadas, agora me fazem falta.
Hoje, despeço-me de vez do terreno ao lado. Fora vendido. O vizinho comprador prepara-se para fazê-lo de campo, onde deverá estourar foguetes, comemorando um novo ano. Ele deixará lembranças.
Sua terra, durante um tempo, estivera contaminada. Após a morte de minha madrasta, meu pai se casou com outra mulher. Sem apreço pela terra, despejou veneno para livrar-se do que via como puro e simples mato. Com a volta da minha mãe à casa, depois da separação do meu pai, a terra voltou a florescer. Tínhamos uma horta. Era bela. Farta. E dizia meu pai que de fome, ao menos, nunca iríamos morrer.
Ali, foi também o cenário de uma guerra que não era compreendida diante dos meus olhos. Ingênuo, meu pai havia trazido, em uma caixa, um casal de coelhos. Eram belos e macios. Também eram medrosos. Quando vivos, nunca me deixaram que eu me aproximasse. Todos em casa queriam tocá-los. Minha irmã, que na época era pequena, os adorava. Não levou tempo para que se reproduzissem e logo fossem dizimados, um a um, pelos cães de casa. Irado, não era capaz de entender que eles pretendiam defender seu território. Tinham apreço pela terra. E hoje, ela já não mais os pertence também.
Era ali, onde todas as tardes minha mãe ficava. Admirados, os clientes do meu pai chegavam e olhavam para aquela mulher que suada, com o cabelo amarrado e posto dentro de um boné, já suja pela terra, se expunha ao sol do modo como fora criada no sítio. Aquela horta era o seu orgulho. Haviam vezes que ela conversava com as plantas. Contava-lhe seus segredos, sonhos, angústias.
Levanto da cama e olho o cenário por mais uma vez. Noto que todas as coisas, as banquetas e mesas de cimento ainda permanecem. Nelas, meu pai se sentava nas tardes de sol. De bermudas, descalço, sem camisa e com um chapéu de palha que, segundo ele, protegia-o do câncer de pele. "Aqueles, que vivem no mato, é que estão certos... O maior alvo do câncer de pele é a ponta da orelha. Com o chapéu, estou protegido", dizia ele, conciliando o saber científico com o que aprendera como homem simples, do campo. E com as pernas cruzadas, ali ele comia bananas de modo incomum, fazendo-a com uma colher. Acompanhava-o nosso cão, sempre fiel. Sempre estava próximo de si.
Era ali, onde todas as manhãs ele, enquanto cantava aos pássaros, raspava da cuia os restos de chimarrão da noite anterior. Criava adubo. Fortalecia nossas verduras. Alimentava a terra, com aquilo que ela mesmo lhe havia fornecido. Um ciclo. Talvez a mais bela representação viva do Eterno Retorno.
Um pedaço de terra tão pequeno. E, ao mesmo tempo, com tanta vida! Isto só me faz pensar no quanto o ser humano está predestinado a ligar-se com a terra.
Vão-se as coisas dali. Os homens trabalham com esforço. Em algumas horas, tudo deve estar pronto. Não se vêem mais as árvores. Apenas restam alguns troncos.
Depois do que o meu pai havia passado, tendo perdido praticamente tudo o que conquistara, ele ficou abatido. Calado. Não se manifestava. Quando não bebia, seu meio de liberar a angústia anterior consistia em ao terreno. Passavam das seis horas. O consultório estava fechado. E percebendo que não havia ninguém que o observasse, ele tomava para si um facão. Diante de si, um tronco. E nele, meu pai batia. Pronunciava o nome de todos aqueles que o haviam prejudicado, de todos aqueles por quem ele não mais conseguia deixar de ser um alcoólatra. Quantas coisas não deviam passar em sua mente! Eram batidas sempre fortes. Um clima pesado. Mas não mais pesado que pensar nas circunstâncias que o faziam executar tais golpes. Com tudo o que se perdeu de bom no terreno à frente da janela, de onde escrevo, há, ao menos, algo positivo. Pois consigo, também foram aqueles troncos que sustentaram a agonia de um doutor que apesar de bom e sempre lembrado pelo que fez ao povo, não foi poupado da malícia de muitas pessoas.
Olho para esta situação simples. Vender um terreno a alguém. E, no entanto, já sinto sua falta. Sobretudo porque vi na terra algo meu - um elo com o meu ser. Isto me faz pensar no drama dos meus antepassados alemães na Rússia, que perderam suas terras e delas foram expulsos. Ou mais recentemente, faz-me pensar o que ocorre com o povo palestino, expulso de sua própria terra, como se fossem seus ladrões; como se fossem insetos ou pragas. Não é apenas um pedaço de terra que lhes é tomado, mas também grande parte da sua história e identidade.
Não é apenas algo natural, mas resultante de uma nobreza interior, a forma com que o ser-humano percebe a terra. Por ela, tem-se apreço. Está enraizado nela, do mesmo modo que uma árvore.