Inventário de sonhos

Manhã de um domingo ensolarado e ela acordou mais tarde. Levantou, tomou um banho demorado, relaxante, água morna deslizando pelo corpo, num prazer quase sensual. Secou o cabelo caminhando entre as plantas que cuidava com desvelo de mãe, pois era sua a tarefa de podar, limpar e regar diariamente. Nos momentos de crise, jardinar era sua terapia mais desejada.

Todos na casa já haviam escolhido um programa para aquele domingo e na algazarra das conversas, soube que alguns iam ao clube, outros iam passar o dia com amigos e ainda visitar um parente convalescente... ninguém a convidou para nada, o que achou ótimo pois precisava mesmo de um dia só para si, coisa rara naquela quase “república” .

Quando o penúltimo saiu porta a fora, o silencio reinou absoluto. Ficou um tempo de bobeira zapeando na TV depois se dirigiu ao quarto resolvida a fazer uma “arrumação”, coisa que preferia fazer sozinha, sem ninguém para dar palpite. Do fundo de armário tirou uma pasta e derramou sobre a cama o seu conteúdo.

Ali estava o que chamava de INVENTÁRIO de sua vida afetiva. Cartas de antigos amores, de amigas e amigos queridos, cartões de idos ou ausentes, bilhetes, cartões de floricultura, poemas de amor escritos a mão e entre eles, flores secas. Olhou aquilo tudo lembrando a provocação do terapeuta... Porque guardava tudo aquilo? O que queria mesmo preservar, reviver? Precisava mesmo da “presença física” de tudo aquilo?

Não. Não precisava. Tudo aquilo já estava dentro do seu coração. Já era ela e dela. Tocou delicadamente cada um daqueles tesouros de afeto e uma sensação boa de saudade e ternura por cada momento revivido se instalou. Antes de perder a coragem, picotou tudo e colocou num saco de lixo. E não reprimiu as lágrimas que vieram junto com a despedida... Desfazia-se ali de elementos fundamentais para a construção de sua autoestima, de sua constituição como ser, como mulher.

Refletia, sem sobressaltos, que tinha uma vida afetiva boa, saudável. Nunca fora dada a grandes paixões, pois construía seus afetos com tranquilidade, com delicadeza e mesmo agora quando seu segundo casamento entrava num período critico, vivia sem maiores inquietações.

Concluída a primeira etapa, foi para o micro e acessou uma das pastas de seu email. Resolveu reler alguns arquivos guardados com o mesmo carinho das cartas e bilhetes impressos. Se sentiu tocada, enternecida com a beleza, o carinho explicito em cada um.Como era bom ter amigos e amigas tão generosos e especiais!

Tinha de admitir que ali também era um espaço afetivo especial. Quantas vezes tivera em momentos de tristeza e solidão apenas aquele “colo” virtual?Quantas vezes partilhara seus temores, suas dores, suas alegrias apenas naquele espaço?Resolveu que apagaria tudo aquilo também, pois desse seu inventário tão especial, ficaria apenas o que sua memória afetiva pudesse preservar.

O certo é que mesmo destruindo todos os objetos, rasgando todas as cartas, apagando todos os emails, o carinho e a delicadeza contida em cada frase, cada poema, cada escrito estava desenhado em sua alma. Não precisava mais reler nenhum deles, pois já estava gravado em seu coração o sentimento da alegria, da felicidade que cada um lhe proporcionara ao longo da vida. Todas as suas boas lembranças agora constavam no seu inventário de sonhos.

Da série : Histórias de vida de mulheres comuns