A Novela

Quando dona Elza esbarrou naquela mulher, no supermercado, não pôde acreditar em seus olhos. Ela era idêntica a uma personagem de uma novela, passada há quase dez anos. Tentou esquecer a idéia, classificada por ela mesma de absurda, concentrando-se nas compras, mas, ao ouvir a voz, que ameaçava entregar a carta, que denunciaria toda trama, revelaria o nome do assassino, salvando o galã; não teve dúvidas. Era Eugênia Constância.

Receosa, aproximou-se da personagem envelhecida, mas que ainda guardava muito de sua altivez e elegância.

- Com licença – pediu tocando-lhe no ombro. – A senhora não é a atriz que fazia a personagem de Eugênia Constância na novela “O Amanhã”?

- Não senhora. Eu não sou a atriz. Eu sou Eugênia Constância – falou no mesmo tom pausado e decidido com que revelava os mistérios na novela, deixando sua interlocutora arrepiada.

Confusa, a telespectadora prosseguiu:

- Ué, mas eu pensei que a novela “O Amanhã” tivesse terminado?

- Bobagem, querida. As novelas nunca acabam. Elas podem deixar de serem transmitidas pela televisão ou rádio, mas fora desses meios, continuam. As novelas ganham vida própria. Não precisam de autores para criarem seus roteiros. São incorporadas normalmente ao cotidiano. Nós de “O Amanhã” já estamos no capítulo três mil quinhentos e noventa e quatro.

- Nossa!

- Pois é. Agora mesmo, eu estou fazendo a novela. Quando a novela é televisionada, essas coisas corriqueiras como ir ao supermercado, limpar a casa e fazer as necessidades não vão ao ar. Só aparece o essencial ou quando há merchandising – explicou de uma maneira didática.

- E me diz um coisa. Como está a novela?

- Ih! Depois que ela deixou a telinha, aconteceu tanta coisa!

- O pessoal não ficou com raiva, por você ter demorado tanto tempo para entregar a carta?

- Se ficou! O Vinicius Alexandre até hoje não fala comigo. Tiveram que cortar todas as cenas em que a gente aparece juntos.

- Ele e a Débora formavam um casal tão lindo! – exclamou saudosa dona Elza.

- É, mas não é que eu queira falar, que eu não sou disso. Mas, nesse tempo todo, quantas cachorradas ele aprontou para ela.

- Não me diga?! Eles estavam tão felizes no último capítulo. Pelo menos no último capítulo que apareceu na televisão.

- Pois é. Mas, depois de tudo o que ele fez para ela, a senhora sabe, não é segredo para ninguém, várias vezes bateu nela, acabou com sua carreira profissional, fez ela perder um filho, foi o culpado pela morte dos sogros, afinal, quem levou o complexo industrial da família à falência, foi ele. Se não bastasse tudo isso e apesar de terem se acertado no final, o safado arrumou uma amante.

- Não é possível?!

- É sim. E tem mais! Uma guria que podia ser até filha dele.

- Mas o Vinicius era um homem, ainda jovem.

- Mais ou menos, querida – deu uma risada maliciosa. – Ele enganava muito. Já tinha passado por um monte de plásticas. Antes de cada capítulo, ele pintava os cabelos, quando apareciam cenas de amor, era um dublê. E convém lembrar, que isso foi há quase dez anos. Imagina, como ele está hoje! Um caco!

- E a Débora, coitada?

- Entrou na justiça. Está querendo uma pensão milionária e metade dos bens. Ela tem direito, né? Afinal, a família dele era muito mais rica que a dela.

- É verdade.

- Mas o pior é que ela também arrumou um namorado. Um safado, um pilantra, que diz ser terapeuta energético.

- E o Júnior ficou com quem?

- Com ela.

- Deve estar um homem.

- Enorme e no analista. Também com tantos problemas. Não aceitou a separação dos pais, odeia o namorado da mãe, repetiu três vezes a mesma série no colégio e ainda dizem as más línguas que ele deseja a madrasta. Tem gente até garantindo, que a primeira noite dele foi com ela.

- Nossa! Que Horror! E os país de Vinicius, o doutor Venâncio e a dona Flora?

- Arrasados.

- Com os problemas do filho, da nora e do neto?

- Que problemas com o filho, a nora e o neto que nada! Ficaram arrasados com o problema deles.

- Mas que problema?! Eles sempre foram tão felizes. No último capítulo da novela, pelo menos no que a gente via, eles estavam tão alegres, dando aquela tremenda festa de casamento do Norton, irmão do Vinicius.

- Pois foi essa maldita festa a causa de tudo. Eu bem que avisei, que essa coisa de juntar gente da vila com socialites, não dava certo. Mas, sabe como é casamento de novela . É todo mundo junto, igual a pacote de bolachas sortidas. Era tanta gafe, tanta breguice, que a família foi expulsa das colunas sociais e da alta sociedade.

- Não diga?!

- É verdade. Até os operários da fábrica, pertencente à família, foram convidados.A ajudante de serviços gerais, diga-se de passagem, uma grande atriz, era a madrinha.

- Pois é. E que vestido lindo que ela usava.

- Não sei onde eles arrumam aquelas roupas, se durante toda a novela, os empregados viviam fazendo greves, reclamando que ganhavam pouco, se lembra? Sempre se queixando que levavam uma vida cheia de dificuldades.

- É mesmo.

- Aliás, eu acho que o autor era meio comunista. Ele acabou com o nosso hit society.Imagina que ele pegou todo mundo solteiro da classe alta e casou com alguém lá da vila. Foi uma verdadeira distribuição de renda. Nenhum partido político, no mundo inteiro, conseguiria fazer tantos ganharem igual, tão bem e em tão pouco tempo.

- A Elvira, aquela jovem linda, educada num internato na Suíça e que tem um apartamento de fim-de-semana em Monte Carlo, casou-se com um pedreiro, que mora na favela, enquanto que o Renato, aquele campeão de tênis que é dono de inúmeras empresas, inclusive no exterior, está de casamento marcado com uma ambulante, ali do centro.

- E eles também foram expulsos da sociedade?

- Evidentemente, querida. Fiquei com pena mesmo foi do doutor Venâncio. Ele ainda tentou argumentar, foi falar com seu melhor amigo, o presidente do Country Club, e sabe o que o desaforado lhe disse?

- O quê?

- Meu caro, dinheiro não é tudo. – E pôs o doutor Venâncio para correr.

- Coitado. Que humilhação para um homem tão fino e educado. E por falar nisso, como vai a filha dele, a Lígia?

- Essa enlouqueceu.

- Por quê?

- Apaixonou-se pelo iluminador da novela.

- Mas ela ou a atriz?

- Se fosse a atriz tudo bem, não haveria problema. O brabo é que foi a personagem e insiste em levá-lo junto para a novela. Já há algum tempo, que fica aquele rapazinho sentado no sofá junto com a família sem ter o que dizer, sem papel na trama. Parece até um adorno. E aonde ela vai, ele está junto. Festas, recepções, jantares, casamentos, vernissages, enfim, sempre mudo, nem um sorriso não dá. Pior, foi quando a Lígia o levou para a cama por esses dias e o coitadinho não sabia o que fazer.

- Credo!

- Olha, não é mentira. Ele ultimamente está aparecendo em quase todas as cenas. Às vezes, a gente até improvisa, como nas refeições, onde se pede que ele coma algo, não faça cerimônia. Mas não adianta. Fica lá parado, com ar perdido, olhando fixo para o prato.

- Coitado do doutor Venâncio.

- Mais ou menos, porque ele também não é flor que se cheire. Já que agora comecei a contar os podres de todo mundo, vão os dele também. Com essa estória de toda hora aparecer um filho, que ninguém sabe que existia, só para o Vinícius já surgiram um irmão gêmeo e mais cinco bastardos, inclusive um japonês e outro jamaicano. Todos de olho na herança do velho.

- Nossa! – exclamou a telespectadora, surpresa com tanta desgraça. – E me diz uma coisa. Eles ainda moram naquela mansão maravilhosa?

- Menina, ela é outra preocupação da família! Há anos que eles querem vendê-la ou trocá-la por uma cobertura, mas estão com dificuldades, por causa do Patrimônio Histórico. A casa é tombada. Ainda ontem, o Venâncio pegou-se a tapas com um engenheiro da prefeitura, durante uma reunião, para ver se eles podiam se desfazer do imóvel. O Norton quer implodir a mansão e transformar o terreno num estacionamento. Está aquela briga.

- Mas hoje em dia só acontecem coisas tristes na novela?

- Mais ou menos, né querida?! Eu, por exemplo, casei!

- Verdade?!

- É!

- Que bom! Eu sempre dizia para as minhas filhas: uma mulher tão fina, tão chique e solteira, coitada. Mas com quem foi?

- Com o Gumercindo.

- Aquele pobretão que saiu lá do interiorzão só com um saco de viagem nas costas?

- Esse mesmo.

- Mas um homem tão grosso, sem um pingo de cultura e ainda por cima pobre de dar dó!

- Engano seu, darling. Da quarta para quinta-feira da semana passada, ele trabalhou tanto, que se tornou bilionário, e ainda por cima ficou tão culto e requintado.

- É mesmo?

- É.

- Você deve estar pulando de alegria.

- Mais ou menos.

- Ué, por que? - Indagou de costas para Eugênia Constância, enquanto pegava um produto. Quando se virou, a mulher havia sumido.

Dona Elza ficou parada sem saber o que fazer. Olhava de um lado para outro, procurando encontrá-la. Queria continuar a conversa, principalmente ter certeza de que tudo aquilo não havia sido uma peça de sua imaginação, um sonho ou até uma pegadinha de alguma emissora de televisão. A última alternativa parecia ser a mais concreta. Sentiu-se encabulada, ao pensar que seria motivo de riso de milhares de pessoas. Estática, nem atinava em colocar o pacote de sabão em pó no carrinho. Observava ansiosa as pessoas que buscavam artigos nas prateleiras, tentando adivinhar qual delas se aproximaria e lhe revelaria, que ela havia sido vítima de uma brincadeira. Só quando uma senhora lhe perguntou se estava bem é que deu por si. Agradeceu e foi para o caixa.

Em casa, virou motivo de preocupação. O marido pensando que poderia ser stress, mal que também atingiu seu genro Genilson, motorista de ônibus. As filhas achavam que poderia ser efeito colateral de alguma medicação. Só o caçula é que acreditou em dona Elza e procurou consolá-la:

- Já pensou mãe, se fosse o Freddy Gruger, o Jason ou o Drácula?

Ainda atordoada, a dona de casa apenas balançava a cabeça concordando.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 06/01/2010
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T2014880
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