O Estranho
Após estacionar seu carro o homem caminhou pela calçada, maldizendo o calor insuportável que sentia sob o terno impecável.
A expressão séria, carrancuda, corroborava sua fama de esquisito e mal humorado. Secretamente, ele gostava disso e alimentava a fama, pois ser esquisito colocava-o numa espécie de zona de conforto onde raramente era cobrado por algum gesto ou atitude.
Afinal, o esquisito podia quase tudo, pois ninguém esperava um comportamento normal de alguém que, definitivamente, era ...esquisito.
- Tio! – a voz de menino que andava apressado para alcançá-lo interrompeu seus pensamentos.
- Não sou seu tio – respondeu o homem secamente, como sempre fazia com garotos de rua e continuando a andar.
- Tá bom – respondeu o menino enquanto tentava acompanhar os passos do homem, emendando em seguida:
- Doutor, então?
- Quem falou que sou doutor? – retrucou o homem caminhando irritado com a insistência do menino. Detestava abordagens como essa e normalmente conseguia espantar a todos com a primeira resposta.
- Ué, com esse carro bacana e essa roupa deve ser doutor...e se não gosta de tio nem de doutor, como é que vou chamar?
- Não chame, ora! – respondeu rispidamente o homem, olhando com um pouco mais de atenção para o menino que não desistia fácil. Reparou no tênis velho, nas roupas gastas e na mochila com a alça remendada que carregava nas costas.
- Mas tio...moço – consertou rapidamente o garoto.
Indignado com tamanha teimosia, o homem estacou de súbito e com a expressão carregada que intimidava até mesmo seus pares na empresa, encarou o garoto pela primeira vez.
- Chega moleque! – exclamou irritado – Não sou seu tio, não o conheço, não quero comprar balas e não dou esmolas! Fui claro agora?
- Foi sim – respondeu o menino olhando fixamente o rosto raivoso do homem e continuando:
- Mas eu não vendo balas nem peço esmolas. Saí da escola agora e estou indo encontrar meu pai para pegarmos o ônibus pra casa. Só chamei você pra avisar que deixou cair isso – explicou calmamente o menino enquanto estendia a mão e entregava um objeto ao homem.
Surpreso e aturdido o homem pegou das mãos do menino o chaveiro que, com certeza, havia desprendido do molho de chaves quando saiu do carro.
O chaveiro era um presente da filha pelo dia dos pais. Foi confeccionado na escola, como acontecia todos os anos. Era uma espécie de mini-livro, com sete páginas, carimbadas em letras minúsculas, mensagens de otimismo e alegria.
Tudo isso passou pela sua cabeça em poucos segundos e, quando olhou, o menino já se afastava.
- Ei, menino! – chamou o homem. Como o menino, ignorando o chamado, continuava a andar ele insistiu:
- Ô moleque, espera!
O menino parou de repente encarando o homem com uma seriedade destoante de sua pouca idade.
- Não sou moleque. Tenho um nome – dito isso, voltou a caminhar.
- Espera – pediu o homem – eu não sei o seu nome, como vou chamar você?
- Não chama...ora! – retrucou o menino – minha mãe falou que eu nunca devo conversar com estranhos e meu pai sempre me espera no ponto de ônibus porque diz que tem muito bandido pela rua. Hoje eu desobedeci aos dois falando com você, que é muito estranho, mas fiquei com pena de deixar você perder seu chaveiro. Mas quando chegar em casa explico pra eles.
Em seguida voltou a caminhar, agora quase correndo para não se desencontrar do pai.
O homem permaneceu ali, parado na calçada, esquecido do sol, tentando entender o que continuava a incomodá-lo, junto com uma estranha e desconhecida sensação de desconforto.