Antes só que mal acompanhada
De repente dois riscos de pneus pelo asfalto. Contribuíram tão-somente para que a colisão tivesse menor impacto. Descemos dos veículos e olhamos os estragos – primeira reação natural após uma batida de carro. Eu estava completamente errada. No entroncamento, bem à minha direita havia uma enorme placa de regulamentação – parada obrigatória -, mas julgando-me imune às ocorrências acelerei meu carro e por um instante o senti refugar-se.
- O senhor não poderia ter segurado seu carro, pisado mais fundo no freio? – falei em tom áspero, arqueando as sobrancelhas.
- Mas esta via é preferencial e a senhora vinha de uma secundária, portanto, pelas regras de legislação a primeira tem preferência em todos os aspectos sobre a segunda. – Ele falou com tamanha elegância.
Eu, aparentemente mais calma e ciente do erro propus que chamássemos uma viatura de polícia para que fosse lavrado um boletim ocorrência. Afinal, a seguradora iria exigir.
Enquanto esperávamos a viatura, tive a oportunidade de observá-lo. Homem de uns quarenta e oito anos, cabelos bem aparados, barba cortada, alto, olhos castanhos claros, fala mansa. Não era o homem que uma mulher madura adoraria ter, mas se o tivesse certamente estaria satisfeita. Não era belo, apenas esnobava um físico atlético.
Meu carro não quis dar na partida. Outro problema: seria rebocado pela seguradora e, eu ficaria a pé. Pelo menos até a seguradora enviar-me outro.
- Você quer uma carona? Ele solicitamente ofereceu-me.
- Talvez nossos destinos não coincidam – argumentei.
- Estou indo para o bairro São Tomé e você?
- Vou para o próximo bairro: São Lucas. Tenho um escritório de consultoria empresarial na Avenida Presidente Kennedy.
- Levo você até lá. Ele prontificou-se.
Durante o percurso conversamos muito, o que resultou num convite dele para que jantássemos. Era sexta-feira e eu não tive domínio nem vontade para recusar o convite.
No horário marcado ele ligou e disse que estava esperando-me defronte ao meu escritório. Mas eu não podia sair daquele jeito. Afinal, precisava me trocar e marcamos para que ele me apanhasse no meu apartamento, não no escritório.
- Não me sinto confortável para sair sem me preparar. Falei-lhe.
- Você está muito bem e o lugar ao qual iremos não exige tanta frescura. É um local em que a maioria dos frequentadores, principalmente nas sextas-feiras, é funcionário ou estudante que atraído pela cerveja deixa-se levar pelos embalos da noite e da boa prosa.
- Já vou descer. Eu disse meio entusiasmada em poder reviver épocas estudantis ou de quando, jovem, funcionária que me juntava ao grupo nas sextas-feiras para tomar cerveja.
Chegamos ao restaurante e realmente a maioria dos frequentadores era de jovens com mochilas, vindo da escola – quem sabe apenas matando aula, ou funcionário de uma empresa próxima após um árduo dia de trabalho. Tomavam cerveja, gargalhavam descontraidamente numa demonstração clara de relaxamento.
O local não era apropriado para uma bebida quente, mais sofisticada – próprias para momentos românticos - pedimos então cerveja. Em pouco tempo entramos no clima. Esquecemos até mesmo o jantar, afinal, bastava-nos um tira-gosto.
Como tinha trabalhado o dia todo, mais a batida pela manhã, a falta de banho, embora estivesse achando o ambiente bastante divertido, o cansaço começava a me invadir.
- Leve-me para casa. A seguradora não me enviou ainda o carro. Sinto que amanhã terei que ficar enfurnada naquele apartamento, sem nada para fazer.
- Sim, naturalmente. Disse ele, levantando-se.
Convidei-o a entrar. Aceitou cordialmente e enquanto eu tomava o banho ele ficou ouvindo música e tomando cerveja – tinha algumas na geladeira. Voltei revigorada do banho, peguei uma cerveja e fui sentar-me ao seu lado. Não tardou ele me despiu e fomos para a cama. Fizemos amor com loucura. Não tenho lembranças de alguma vez ter gozado tanto. Foi realmente maravilhoso. Não o deixei ir embora, aconselhei-o a usar a minha vaga na garagem. Dormimos alta madrugada, enfim o cansaço nos venceu.
No outro dia ele acordou foi à cozinha e preparou-me o desjejum. Foi direto ao assunto:
- Eu e você somos separados – disse ele pausadamente enquanto mastigava.
- Sim e daí – perguntei-lhe apreensiva.
- Poderíamos habitar o mesmo teto, o que acha?
- Mas assim de supetão? Indaguei olhando-o bem nos olhos.
- Sim desse jeito mesmo. Você tem predicados que me agradam. – ele disse coçando a barba.
- Mas você me conheceu ontem e ainda numa situação constrangedora; batida de carros, nervosismos – deixa-me pensar um pouco, pelo menos até à tarde.
Voltaram ao leito e deixaram-se levar pelos prazeres carnais. Ele saiu. Pensei durante todo o dia e ao final, decidi:
- Analisei a sua proposta e conclui que será uma relação proveitosa. Portanto, à noite tome o rumo de casa.
- Sim querida! Logo, logo estarei ai. Será uma mulher feliz, creia! – Ele falou.
Uma semana se passou e o relacionamento de vento em polpa. Eu sentia-me cada dia mais segura; sempre odiei a solidão. Dificilmente um dia em que ele não me trazia um presente. Ele preferia ficar em casa, mas não me incomodava essa preferência – proporciona-me gozos alucinantes. Eu não poderia confidenciar a alguém que o estivesse amando, não tinha esse conceito solidificado. Queria-o sempre ao meu lado, talvez por ter experimentado anos a fio não me apegar a alguém.
Sexta-feira. Ele pediu-me para deixar o escritório mais cedo. Já havia ido ao supermercado comprar as cervejas e reservado a área de churrasco. Queria “bebemorar” a nossa relação – três meses. Apressei os expedientes e consegui chegar às 17:40. Começamos então a tomar cerveja e apreciar a carne assada. Tudo transcorria dentro da maior normalidade: beijos, abraços, carinhos...
Aguçados, não resistimos e fomos ao apartamento para transarmos. Ele estava ainda sóbrio, mas diferente: olhos arregalados e não me tocava como de costume. Na ânsia de ejacular, apertava meu pescoço com as mãos com tanta fúria que senti que ali seria o meu final. Numa oportunidade, apertei-lhe os testículos com o que me restava de forças. Nesse momento, ele afrouxou-me a garganta e eu enrolando-me numa toalha saí em disparada rumo à portaria.
- Chame a polícia! Rouca, gritei para o porteiro.
- Sim senhora. Respondeu-me com o telefone junto à orelha.
A polícia o pegou dentro do veículo quando dava a partida. Minutos após, o policial aproximou-se, empunhando uma lista enorme e disse-me:
- A senhora tem muita sorte em estar viva. Correu sério risco de morte. Para sua ciência temos dois mandados de prisão expedidos contra esse senhor. Ele é de altíssima periculosidade, psicopata, durante atos sexuais estrangulou duas mulheres.
Voltei para o meu aconchego e prometi a mim mesma, dada a circunstância, que continuaria sozinha – antes só que mal acompanhada.