Apenas palavras

Quando o assalto foi anunciado no ônibus Janaina mal podia crer, fazia apenas três dias desde que passara o reveillon na praia onde uma grande festa foi organizada para entreter um público recorde de mais de duas milhões de pessoas. E agora estava numa situação difícil naquele coletivo.

Ela preferia tentar manter a calma se refugiando nas lembranças boas da passagem de ano e diminuindo seu grau de estresse, algo tinha despertado tais memórias recentes dentro dela, talvez um mecanismo de alto-preservação disparado mecanicamente pelo cérebro ou simplesmente o apego comum e humano às boas recordações contrapostas à realidade adversa na qual se encontrava naquele instante, afinal uma festa é sem dúvida alguma muito melhor do que um assalto, de modo que a moça preferiu não olhar para o homem que andava dentro do ônibus com uma arma em punho recolhendo os pertences de todas as pessoas ali presentes, embora uma curiosidade mórbida também estivesse a impelindo fazê-lo.

Janaina olhou para a janela de vidro ao seu lado e rememorou a noite de reveillon.

No dia da festa, a organização do evento tinha preparado um espetáculo pirotécnico da mais alta qualidade e Janaina estava bem ali na areia da praia exatamente como mandava o figurino e o protocolo popular. Estava vestida de branco, bermuda e camiseta, havia tirado o tênis e deixado junto dos pertences de seus colegas que com ela tinham ido prestigiar o mega-evento.

Pouco antes de o céu ser colorido pelas milhares de explosões que pintariam e iluminariam a noite sendo o ponto alto da comemoração; ela fora até as proximidades de um grande palco montado na areia e lá extasiada pela música e pelo movimento frenético das pessoas, aproveitou os minutos que antecediam a virada.

De repente uma contagem se iniciou vinda das torres de alto-falante; a multidão praticamente urrou os números em ordem decrescente; Cinco, Quatro, Três, Dois, Um; e finalmente os primeiros riscos luminosos cortaram o céu, subindo como que das águas. Grandes filetes prateados como estrelas cadentes com caldas imensas e de forma invertida, subindo rumo ao céu e não ao contrário como o convencional.

Ao fundo as luzes dos grandes transatlânticos, praticamente enfileirados que do meio do mar contemplariam todo o espetáculo, eram uma atração a mais para ser considerada e ajudava a dar um “quê” de fantasia àquela cena tão esperada por todas as pessoas que estavam reunidas ali num mesmo espírito. Muitos haviam aguardado todo o ano para presenciar aquilo e outros tinham esperado toda a vida, como era o caso de Janaina.

Os filetes luminosos se abriram como leques incandescentes e a luz como um “flash” banhou toda a orla seguida pelo barulho das explosões, várias, simultaneamente e outras em seguência que davam o tom da celebração divisando o crepúsculo de um ano da aurora de outro.

Janaina nunca tinha participado de algo semelhante, seus olhos ficaram encantados com o sincronismo dos disparos e a beleza quase galáctica dos desenhos coloridos espocando no fundo negro da noite; a chuva que tinha castigado todo o estado havia dado uma trégua como que cooperando para a felicidade daquela multidão que gritava a plenos pulmões felicitando o novo ano que chegava.

Luzes azuis, fachos e explosões verdes, vermelhas, prateadas e douradas subiam do mar e rebrilhavam no céu como se fossem pequenas constelações. Havia ali naquela praia e por toda a extensão da orla pessoas de todo o país e até mesmo muitíssimos turistas que também demonstravam nas faces e nos olhos todo o fascínio que aquele espetáculo quase onírico estava causando.

Quase quinze minutos após o início da pirotecnia, algumas nuvens de fumaça tinham se formado lá no alto, mas ao contrário do que as pessoas pudessem pensar elas também faziam parte do espetáculo na medida que ocultavam novos disparos luminosos feitos das balsas; tais disparos só eram vistos quando efetivamente chegavam ao ponto máximo de sua trajetória e quando finalmente estouravam, iluminando toda a nuvem como se ela própria fosse feita de gás néon. Era algo magnífico.

A multidão de nativos e turistas impressionada com o grau da beleza e do profissionalismo daquela obra de arte em pleno espaço aéreo, dividia seu tempo entre acenar para o céu com algum ponto luminoso que tinham em mãos, celular, lanterna, vela ou outra coisa qualquer; tirar fotos e fazer gravações das explosões e da reação de êxtase das pessoas; familiares, colegas ou desconhecidos e abraçar o máximo de indivíduos que se conseguisse desejando os famosos votos de boas entradas para um ano novo maravilhoso e rico em todas as realizações.

Nesse momento Janaina começou a abraçar pessoas loucamente, homens, mulheres e crianças, todos estavam se felicitando mutuamente num instante de congraçamento; naquele espaço de tempo, o mundo era perfeito, não havia nada que pudesse estragar a comemoração, as pessoas estavam felizes; genuinamente felizes, e todo o país estava repetindo o mesmo gesto numa atitude de boa vontade. As mazelas sociais que assolavam não só o país como o mundo não tinham tanta importância quanto a alegria incontida que estavam dando e recebendo.

_Feliz ano novo!_ dizia ela freneticamente abraçando as pessoas e congratulando-as com aquele beijo de amizade em ambas as faces.

Dando e recebendo.

Naquele princípio de madrugada era como se o dia primeiro do novo ano fosse trazer consigo a solução para tudo, absolutamente.

_Um feliz ano novo para você, muita paz! _desejou um rapaz beijando-lhe a face e abrindo um grande sorriso que foi retribuído por ela.

Recebendo e dando.

O rapaz sumiu na multidão tal como todos os desconhecidos que ela cumprimentou durante todo o desenrolar da madrugada e a festa inesquecível continuou tal como devia ser. Impecável, irretocável, praticamente perfeita.

Janaina retornou de suas memórias quando a voz do meliante que estava assaltando o ônibus soou junto dela.

_ Me dê tudo_ disse ele rápido, concluindo_ relógio, telefone, carteira. Tudo!

Ela virou para ele e ao olhar o rosto do rapaz ficou horrorizada, porque tinha certeza absoluta de que ele o havia cumprimentado durante o reveillon. A sensação que despertara nela aquelas lembranças fora na verdade um chamado inconsciente do cérebro quando ela viu aquele rosto conhecido visualmente.

Janaina teve a impressão que ele também a reconhecera, mas aquilo não o perturbou em nada. Ela deu suas coisas sem dizer palavra alguma e o homem deixou o coletivo tão rapidamente quanto entrara.

Ela foi atingida por um pesar profundo, afinal, fora assaltada por uma pessoa que a tinha cumprimentado nas areias da praia como se fosse um cidadão responsável; naquele momento ela pensou em quanto daquelas congratulações e felicitações poderiam não passar de uma hipocrisia; quantas daquelas pessoas e tantas outras no país e no mundo não desejavam de fato um ano novo e melhor, e, só estavam ali cumprindo um ritual de passagem sem nenhum compromisso real em tentar uma novidade de vida.

De repente aquelas palavras:

_...Paz, Sucesso, felicidade...

_... Uma cidade mais limpa, uma cidade melhor...

_Um país melhor e um mundo melhor.

Aquelas palavras, aqueles desejos meio que perderam parte de seu brilho e de seu encantamento.

Janaina se lembrou que na manhã seguinte a festa, um verdadeiro exército de garis tinham recolhido toneladas e mais toneladas de lixo deixado nas areias; entre garrafas de espumante, sacos plásticos e potes diversos. E chegou a conclusão preocupante de que se as pessoas, turistas ou não, foram tão inconstantes a ponto de desejar limpeza enquanto sujavam a praia ou desejar paz e praticar aquele ato tal como o rapaz que a assaltara no ônibus então havia uma possibilidade de que tudo não passasse realmente de uma fantasia e de que muitos dos desejos daquela noite mágica não fossem mais do que apenas palavras.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 03/01/2010
Código do texto: T2009362
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