Chuva, liberdade, limitação

Pousa sobre mim uma gota... e depois outra, e outra. Sucessivas gotas vão pousando sobre mim, sobre nós todos que caminhávamos fechados e entretidos com nossos destinos. Olho para o céu, que não era azul, mas sim grosso. Estava grafite, e este céu furioso brandava aos quatro cantos que não quisera brincar, nem de poesia.

E pousava sobre mim gotas empedradas, cada vez mais pesadas, dolorosas... a chuva dominava a rua, as pessoas ocupavam os passos em busca de um abrigo, outras em procurar seu guarda chuva na bolsa, as meninas com seus cabelos esticados choravam sua farsa descoberta ao encolhe-los... Notei o quão diferente eu estava: queria tomar banho de chuva! Queria me molhar todo!!! Me banhar daquela água sem taxas, sem cloro, sem estação de tratamento, nem política pública que a regulasse. Não me importava se seria uma chuva ácida ou se límpida como foi, se o céu grosso me castigava ou se desabafava comigo.

Eu me banhava naquele véu de gotas empedradas, as ruas que eram formigueiros de pessoas, tornaram-se passagem de riachos que se formavam. As meninas com suas farsas descobertas irritavam-se com meu sorriso no rosto, com as lágrimas que escorriam de meus cabelos naturalmente cacheados; irritavam-se mais que o céu com minha roupa ensopada e relevavam o fato de que carregava bolsas pesadas de compras, o que de certa forma me daria um status de prazer a mais, já que não só passeava lunaticamente pela chuva, mas trabalhava lunaticamente tomando um banho de chuva.

Mas eu percebi que alguém um pouco mais especial que eu era muito esquecido nessa história. E me comoveu. E foi real, tal como essa história toda, porque eu gosto de ficção, mas eu prefiro o drama. E eu vi aquele drama se arrastar em pé.

Um senhor negro, idoso, se arrasta o mais rápido que poderia fazer tal ato. O objetivo era fugir do acaso da chuva. Mas ele não podia com ele, e eu sentia sofrer em seus passos. Ele naturalmente transparecia sequela de sua doença, uma paralisia do lado direito, provavelmente um AVC lhe tirou a liberdade ou ao menos a limitou. E ele se banhava de chuva como eu, mas não lunaticamente, e sim machucado. Realisticamente, ele não curtia a chuva como eu, apesar de tambem escorrer pelos seus cabelos já grisalhos e crespos algumas lágrimas de chuva.

Talvez o céu irritado tivesse permitido que todos observassem aquele senhor, que na chuva tornara-se especial, e antes dela nada era. Ou era um coitado. Ou um doente. Continuara doente, mas sua limitação não era mais ignorada, era esbanjada embaixo daquele temporal. Era luxuoso ver o homem se arrastar pela chuva, pois em cada olhar preocupado em si, com cabelo falso ou abrigo ou guarda-chuva, havia um senhor que se banhava de chuva, diferente de mim que optei, aquele fora obrigado. Obrigado pela sua limitação.

Enquanto nada podia fazer por ninguém, me banhava com mais certeza de que eu, enquanto podia, deveria e muito me banhar de chuva. Pois me era uma dádiva escolher.