Não sei, Letícia!
Às vezes me perguntam de onde é que vêem as idéias para as coisas que escrevo. Muitas delas são tiradas do dia a dia, muitas outras são loucuras mesmo, momentos de insanidade temporária. Letícia foi quem me fez essa pergunta pela primeira vez, ela tinha 14 anos e u 19, isso então virou rotina, ela me perguntava pelo menos uma vez por semana. Eu respondia sempre da mesma maneira.
- Não sei, Letícia.
Na adolescência eu escrevia a mão, em cadernos de brochura, depois veio minha primeira máquina, uma velha Olivetti, foi então que desaprendi a escrever à mão, fiquei igual àquela personagem de Ruben Fonseca, Minolta, mas ao contrário dela meu nome não era marca de máquina fotográfica e eu não andava nu pela casa, pelo menos não naquela época. No entanto, assim como Minolta, eu só sabia escrever à maquina, foram longos anos dessa dependência, se pegasse um lápis ou uma caneta, pronto as idéias fugiam da minha cabeça. Letícia queria saber o porque?
- Não sei, Letícia. – Eu respondia também nessas ocasiões.
Letícia queria saber de muitas coisas, por isso talvez tenha se interessado pelos livros, no principio começou a ler filosofia, desde os pré-socráticos e foi avançando, meio trôpega é bem verdade, mas sempre enfrente até que chegou a Nietszche, foi então que me perguntou o que ele queria dizer.
- Não sei, Letícia.
Eu não entendo Nietszche, quem entende? É um saco, todos eles são um saco, um bando de velhos babões. Nunca gostei de seus bigodes, suas barbas e seus ares de sabichões.
Letícia parecia cada vez mais interessada em tais coisas, lendo livros cada vez mais velhos, mais grossos, mais chatos. E eu sempre dizendo.
- Não sei, Letícia.
Acho que foi por isso que ela se cansou e foi embora com apenas dois anos de casamento.
Três anos e ainda sinto saudades dela, alguns de seus livros ainda estão espalhados pela casa, ela os deixou, deve ter esquecido na hora da mudança, de modo que estão juntando poeira pelas estantes. Não é que eu não goste de livros, isso não é verdade, pelo contrario, alias, como poderia, afinal eu sou escritor, ou pelo menos imagino ser, finjo para mim mesmo e para os outros.
Com apenas 14 anos Letícia já era um mulherão, escrevi muitos poemas nessa época, ela foi minha mais adorável musa. Ela lia os poemas e sempre queria saber o significado dessa ou daquela palavra.
- Não sei, Letícia.
- Ora, não foi você quem escreveu?
E a conversa ficava por ai. Está ai uma coisa interessante e que nos remete a uma duvida no mínimo curiosa, poderá o poeta, o escritor, não saber realmente sobre o que deveras escreve?
- Não sei, Letícia.
Bem, ela agora está vivendo com um sujeito que aparenta saber das coisas, professor universitário, filosofo, diga-se de passagem, todo certinho, parece-me que ela finalmente encontrou alguém capaz de lhe responder todas as perguntas, saciar toda a sua curiosidade.
E eu? Pois é, continuo em meu mundinho, agora um mundinho não mais povoado por Letícia alguma. Quase todas as noites eu me pego penando nela, sua testa levemente enrugada sempre que me perguntava alguma coisa, e em seguida o ar de decepção que a tomava assim que eu repetia meu quase bordão.
- Não sei, Letícia.
No fundo antes de fazer a pergunta ela já conhecia minha resposta, dizia que eu tinha preguiça de explicar, por isso me limitava a fingir ignorância. Às vezes acho que ela poderia de fato estar certa, mas não na maioria das vezes. Resumo da ópera; eu era mesmo um grandíssimo ignorante, desinformado e sem nenhum pingo de curiosidade, totalmente ao contrario de Letícia.
Ela, no entanto, se dava muito bem com minha mãe. Mamãe sempre parecia saber de tudo, ficavam horas em uma lengalenga interminável, um saco, conversas sem sentido, minha mãe também tinha o mau habito de ler Nietszche e companhia limitada, sempre velhos babões e chatos, enfim, uns pés no saco.
Eu tenho uma coluna semanal em um jornal que muita gente lê, o jornal e não exatamente a minha coluna. De modo, que mesmo assim, recebo muitos e-mails, geralmente ofensivos, devo esclarecer, confesso que não sou muito querido pelos pouquíssimos leitores de minha coluna. Não sei como ainda escrevo para esse mesmo jornal a mais de uma década e ainda não demitido por incompetência, seria justa causa. Minha coluna se intitula O BESOURO.
- Por que O Besouro?
- Não sei, Letícia.
Acho que foi exatamente nesse momento que nossa relação de fato começou a desmoronar ate culminar mais tarde no que seria um divórcio amigável.
O Besouro era uma espécie de cronista urbano, ou seja, escrevia sobre coisas em que ninguém estava interessado em ler, e digamos que minha prosa também não era das mais brilhantes, somando a tudo isso à imensa futilidade dos temas abordados dava-se os e-mails pouco amigáveis que recebia.
A algumas semanas atrás recebi um e-mail de uma moça chamada Letícia, coincidência ou não, ela parecia ser bastante curiosa.
“Caríssimo Besouro (aqui devo abrir um parêntese e explicar que O Besouro é o nome da coluna e não o meu pseudônimo)...Às vezes, muito raramente, leio sua coluna, quando estou de bom humor, geralmente entendo muito pouco do que escreve, talvez por que seu texto seja vazio demais, não diga nada sobre coisa alguma, resumindo, uma merda. Fico curiosa em saber como consegue escrever uma pagina inteira sem dizer absolutamente nada...”
Respondi somente;
- Não sei, Letícia.
Mas é claro que escrevi com letras maiúsculas tamanho 26 e cor vermelha, para que ficasse claramente documentada minha completa ignorância.
Recebo elogios também, as vezes. Em um desses e-mails havia um que dizia “Gostei muito do sentido que o senhor deu a palavra ABOBORA, fiquei até com fome.” Talvez por esses e-mails, esse malfadado reconhecimento do publico eu ainda insista em escrever semanalmente em O BESOURO.
Há alguns meses atrás o telefone tocou às três horas da tarde, era Letícia, queria saber o número do telefone da minha mãe
- Não sei, Letícia.
- Não sabe o telefone da própria mãe, vá se ferrar!
Eu fui.
Escrever não exige necessariamente talento, qualquer idiota alfabetizado pode fazê-lo, a prova disso sou eu e mais uma meia dúzia de outros escritores, alguns inclusive de fama internacional, o fato é simples; o papel em branco e uma idéia na cabeça geralmente é uma arma na mão de um idiota. Li isso em um dos e-mails que recebi, era de um senhor que mandou uma foto em anexo, mostrava a língua e o dedo em uma pose obscena. Ah, se chamava Rodolfo, me lembro bem do bigode, enorme, tinha um grão de arroz grudado em um dos cantos. Respondi-lhe, na ocasião, mandando-lhe uma foto do meu pênis, ampliada três vezes para que o homem não tivesse a menor duvida sobre a identidade do objeto da fotografia.
De fato eu não sabia mesmo o número do telefone da minha mãe, era ela quem sempre me ligava e eu quem desligava. Quando éramos casados era Letícia quem se pendurava no telefone com a sogra, geralmente falando grego ou alguma outra língua alienígena, que eu desconhecia por completo.
- Do que tanto falavam?
- Coisas de mulher meu bem.
Ali estava a prova de que as mulheres realmente eram seres de outro planeta. Minha mãe sempre que nos visitava trazia pequenos mimos para Letícia, quase nunca trazia alguma coisa pra mim, entendam bem, eu não estou com ciúmes, mas venhamos e convenhamos, o filho, nessa história toda, era eu. Ou não era?
Eu descobri a ironia nos primeiros meses de casamento (mas nunca consegui diferencia-la do cinismo, afinal, talvez fossem a mesma coisa.) não foi uma experiência muita clara, nem mesmo percebi a coisa toda, aconteceu em uma tarde de sábado.
- Você cortou o cabelo, Letícia?
- Não seja irônico, já faz uma semana que o cortei, se não gostou diga claramente. Não gostou?
- Não sei, Letícia.
Pronto, eu já não era mais um jovem ingênuo, estava descoberta a tal ironia, e nos anos que se seguiram eu usei e abusei dela, no entanto, hoje percebo que era mais uma espécie de idiotice bizarra do que propriamente ironia.
Certa vez defini a palavra IRONIA em uma das publicações semanais de minha coluna, como sendo “uma piada sem muita graça, às avessas.”De fato eu era irônico, não havia mais duvidas, foi isso que um rapaz escreveu em um curo e-mail ofensivo. “Vá a merda com sua ironia, seu veado!” ele também era irônico e não havia a menor graça no e-mail, tive vontade de mandar para esse também a foto ampliada de meu pênis, mas não o fiz, seria ironia demais, ponderei.
O grande problema de se ser colunista de um jornal de certo prestigio é que as pessoas o julgam pelo que você escreve, nem sempre o cara por detrás das palavras se parece com o que diz, mesmo não dizendo nada, como, aliás, é o meu caso. Eu procurava passar uma imagem seria, por isso escrevia com o dicionário, escolhendo as palavras, gostava daquelas que deixavam escapar um certo ar de sobriedade, mesmo que carrancudas. Recebi um e-mail de uma mocinha perguntando o que eu quis dizer com a frase; “ O proletário azul defenestrou a meretriz!” Na verdade não queria dizer nada, pelo não menos não que eu soubesse, e eu nem mesmo poderia dizer que se tratava de uma metáfora sobre a sociedade estamental ou alguma outra bobagem do gênero, eram apenas algumas palavras que eu gostava.
Dessa vez eu não respondi ao e-mail.
Resolvo procurar Letícia, 3 anos depois. Ela tem uma dessas campainhas antigas tipo ding-dong, a casa está toda enfeitada para o natal, luzes pisca-pisca, sapatos nas janelas, arvores coloridas, enfim coisas desse tipo.
Toco a campainha sem cessar, sou impaciente.
- Já vai! – Ouço gritando de dentro
Ela abre a porta.
- Arthur?
Fato importantíssimo, porem ainda não revelado, meu nome; Arthur, coisa da minha mãe, era o nome de um poeta, um cara meio doidão, que traficou até armas, Rimbaud, esse era o nome do tal sujeito, bem coisas de mãe.
- Quanto tempo! – Ela diz.
- Três anos e algumas semanas.
- Mais ou menos.
- Faltavam algumas semanas para o natal, quando você foi embora.
Ela não diz nada, apenas fecha a porta e me mostra a sala, entendo nesse gesto um convite para entrar e me sentar, então caminho para a poltrona no canto da sala.
- Não sente ai. Essa é a poltrona do Geraldo. Sente naquela outra.
Ela mostra a tal poltrona com o dedo indicador.
Geraldo é o tal filosofo sabe tudo e mais um pouco, imagino.
Eu me sento obediente.
- Eu tenho lido O Besouro. – Ela diz.
- Não perca seu tempo, Letícia.
- Eu gosto, verdade, sempre gostei de seus textos.
Conversamos por alguns minutos. Na verdade ela fala na maioria do tempo, sobre o tempo, sobre o passado, sobre os livros que anda lendo, sobre Geraldo a enciclopédia ambulante e blá, blá, blá, eu me limito a apenas ouvir.
Em dado momento eu me levanto e resolvo que é hora d ir embora. Ela me leva até a porta.
- Quando nos veremos de novo? – Ela pergunta.
- Não sei, Letícia.
Como sempre isso é tudo que consigo dizer.
24-12-09.