FALSOS MENDIGOS
- O que é que você olha tanto nessa varanda menina?
- Peraí!
- Desde cedo você está aí parada. Debruçada. Está olhando o quê?
- Peraí, mãe!
- Esqueceu que a prova começa meio dia? E até agora, desde que se levantou não saiu dessa varanda? O que diabo você olha tanto?
Dizendo isso Aurora, mãe de Maduca, chegou perto da filha e olhou também para a portaria do prédio que ficava logo abaixo da varanda do seu apartamento.
Apartamento 102 comprado com muito suor.
Aurora depois de muito estudar e da formatura em Administração de Empresas, conseguiu ser promovida a gerente geral de vendas de uma rede de farmácias onde, quinze anos atrás, entrara como balconista.
Maduca recém nascida foi abandonada pelo pai que saiu de casa para comprar pão e nunca mais voltou. Até hoje ninguém sabe dizer o que aconteceu com Zé do Carmo, pianista de casa noturna em Boa Viagem.
A polícia desconfiava de sequestro seguido de morte talvez por envolvimento com o tráfico de drogas, mas Aurora tinha outra versão para o desaparecimento misterioso do marido.
Desde que ficara grávida, Zé do Carmo mudou. Havia rejeição em tudo o que ele fazia para ela e para o bebê. Com a ilusão de melhorar o nível de aceitação, quando a menina nasceu, Aurora disse que o nome dela seria Maria do Carmo.
Apesar da homenagem, Zé do Carmo jamais pegou a filha nos braços, jamais ajudou em algo e nem sequer olhava para ela. Antes de completar um mês de nascida, Zé do Carmo saiu para nunca mais voltar.
Com trabalho e dedicação, Aurora conseguiu dar instrução decente a Maduca que daqui a pouco iria fazer a última etapa do vestibular seriado que vinha fazendo desde que entrara no ensino médio.
Era praticamente certa sua entrada na UFPE, tendo em vista os dois dez que tirara nas provas anteriores. Seu desejo era fazer Medicina, seria cirurgiã. Quando acordou e olhou para baixo, Maduca viu a movimentação estranha na portaria.
Vários carros da polícia estacionados nos arredores desde a madrugada e sem alarde, quando clareou, os policiais se aproximaram. Falavam em voz baixa com o vigia noturno e quando chegou o porteiro da manhã, entraram no prédio.
O elevador subia até o 19º andar, de lá para a cobertura, subia-se por uma escada de mármore branco, helicoidal, com guarnições douradas. O porteiro tocou a campanhinha e aguardou.
Tocou novamente e uma voz sonolenta perguntou lá de dentro.
- Quem é?
- Polícia! Abra a porta! Temos um mandato!
Longos minutos se passaram. Nenhum som vindo do apartamento.
- Abra ou vamos arrombar a porta.
- Calma, já vou abrir.
Impecavelmente vestido, o dono da cobertura abriu a porta de cerejeira. O rol se iluminou com o sol que penetrava pela janela envidraçada da sala ampla, forrada de tapete azul com mobília de cerejeira. O jarro de cristal sobre a mesa, projetava um arco íris no teto.
- O que os senhores desejam?
O policial entregou o mandato.
- De que sou acusado?
- O senhor e sua esposa são acusados de exploração e tráfico de menores; vadiagem; associação para o tráfico e formação de quadrilha, tráfico de drogas...
- Deve haver algum engano. Sou um cidadão respeitável e exijo um esclarecimento. Isso não vai ficar assim.
Apesar dos protestos o casal foi levado em viaturas separadas. A porta do apartamento foi lacrada com fita adesiva e as chaves entregues ao porteiro que assinou o termo de fiel depositário. A grade de ferro que isolava a passagem do 19º para o 20º andares foi trancada com mais dois cadeados grandes cujas chaves a polícia levou.
A nota no noticiário da TV foi muito breve para esclarecer o que de fato tinha acontecido. Apenas dizia que a quadrilha de exploração de menores havia sido desbaratada.
Luiz e Amélia foram crianças pobres nascidas e criadas no Morro da Conceição nos arredores do Bairro de Casa Amarela.
Vida pobre, tudo pouco, dificuldade para todos os lados.
Vizinhos desde sempre, nutriam um pelo outro, afeição maior do que simples coleguismo de infância. Estudaram no Grupo D. Vital, bem perto do mercado público onde o pai de Luiz carregava frete. A mãe de Amélia não sabia dizer quem era o pai dela e viviam dos minguados centavos recebidos por cada trouxa de roupa lavada.
O tempo passou e os meninos tiveram a brilhante ideia de pedir esmolas levando os vizinhos menores para o sinal da Av. Norte. A coisa tomou tal vulto que eles decidiram sair dali. Precisavam de um local melhor de maior fluxo, onde as pessoas dessem esmolas maiores.
Mudaram para a esquina das avenidas Conselheiro Portela com Conselheiro Rosa e Silva. No primeiro dia a arrecadação quadruplicou e consolidou a profissão muito bem remunerada.
Já viviam juntos e resolveram mudar para um local mais nobre. O edifício onde agora moravam, estava sendo construído e eles compraram a cobertura.
Os dois filhos foram mandados para a Europa, onde o ensino era melhor e onde não poderiam saber da ocupação dos pais.
Diariamente, logo cedo, alugavam as crianças e mal vestidos, muitas vezes maquiados, iam para a esquina (que era deles), fazer a arrecadação.
O aluguel das crianças era de mil reais por mês cada uma, com direito a pagamento em dobro no final do ano.
Estava tudo muito bem organizado até que, alguém interessado no ponto para venda de drogas, fez a proposta a Luiz. Era coisa simples. Ele ficaria encarregado da entrega dos papelotes. Uma pessoa do outro lado da rua daria o sinal indicando a pessoa a quem ele deveria entregar a encomenda já paga. Nem ele nem Amélia pegariam no dinheiro, apenas, semanalmente receberiam a comissão das vendas do período.
Luiz foi taxativo quando se negou dizendo que tinha dois filhos e que não gostaria de ver seus filhos sendo consumidos pela droga.
O traficante, com livre acesso ao poder público, recorreu aos amigos, mexeu com os pauzinhos e eles foram denunciados pela vadiagem, mendicância além de venda de drogas.
A pólicia, atendendo ordens superiores, agiu rápida e o casal acima de qualquer suspeita, moradores na cobertura, incapazes de incomodar a vizinhança e assíduos colaboradores com o condomínio, foram levados presos pela Polícia Federal.