A LADAINHA DO CALVÁRIO

Beirando os trinta anos eu o conheci já desgastado e num meio viço, porém ultimamente ele dera para cambalear pelas ruas do seu curto entorno e vez ou outra era socorrido por quem ali passava, que o recolhia sem sentidos e o devolvia para o seu barraco de taipa, ou para um serviço de saúde pública mais próximo.

"Ele está bêbado, bêbado!", era o que bem de longe ouvia ao recobrar os sentidos.

Mas equivocadamente não, ele não havia bebido.Apenas tomava alguns remédios para controlar a teimosa doença, medicamentos cujo estreito limiar farmacológico terapêutico esbarrava nos efeitos adversos, e quando por iniciativa própria pulava uma dose do remédio, caia sem consciência a se debater no chão. Houve uma vez que caiu debruçado sobre a chama do fogão e carbonizou alguns dedos da mão direita, e noutra foi retirado de dentro da fossa sanitária aberta no quintal do barraco.

De lá me lembro que saiu muito machucado e muito mais longe de resgatar a dignidade que os palanques da vida sempre lhe prometia. Levou por meses uma infecção num dos dedos que lhe sobrara e que não cedia com medicamento algum.

"Ele bebeu, ele bebeu!", era a ladainha de todos da rua.

Em muito pouco tempo perdera a coordenação dos movimentos mais finos e o equilíbrio da marcha, porém sei que o que mais lamentava era não ter perdido o entendimento da mente e o sentimento do coração, que milagrosamente ainda pulsava forte, alheio ao peso da sua cruz.

"Não, ele nunca provou duma gota de álcool" sempre esclarecia a quem quer que fosse, a sua plácida esposa tão ou mais desnutrida que ele, mas que angariava forças para lhe segurar na posição supina quando por milagre ele sozinho dignamente se levantava da cadeira.

Nunca tiveram filhos, embora houvessem tentado muito, e certo dia sei que alguém cometeu a audácia de pensar que Deus deveras sabe o que faz.

Tentavam há anos os benefícios previdenciários, mas aquela pergunta de sempre e que nunca lhe abandonara pelas rotas da vida- "ele bebe?"-, deveras truncava os caminhos menos árduos para a caminhada da sua cruz.

Certo dia, enfim, comemoraram: Uma "boa alma" lhe concedera os tais benefícios depois de sete anos de espera, dentre os quarenta e cinco do que chamavam de vida.

Brilhava nos seus olhos a alegria de receber a "caridade" com a ânsia de quem agarra um prato de comida para saciar a fome de tantos anos de espera.

Aquele dia planejaram uma festa!

Primeiramente reservariam parte dos recursos para a reforma do telhado do barraco que ruíra na última chuva.

Mas a vida nem sempre nos concede tempo para o luxo das nossas necessidades prementes e foi assim que me chegou a notícia de que no último temporal um cano d'água rompeu dentro do barraco que explodiu pelos ares.

Naquele chão de sempre, tombou eternamente soterrado, porém feliz por um dia ter tido a ilusão de sonhar um sonho bom...sem nunca ter sorvido sequer uma gota do brinde dos fracos.

Baseado em fatos reais.