A Herança
A família estava reunida na sala à espera do diagnóstico do doutor Percival. A existência da matriarca, dona Candinha, era questão de horas. Aurora servia chá. Maria Eugênia pediu-lhe que fechasse as cortinas. A luz pálida de tarde outonal lhe deprimia, mas, o telefone tocou pedindo prioridade.
- Querem falar com alguém da família – disse a doméstica, dirigindo o olhar para Maria Eugênia, que já há algum tempo era quem dava as ordens.
Maria Eugênia pousou delicadamente a xícara sobre a mesa, levantou e caminhou até o telefone, demonstrando contida impaciência. Na certa, era alguém querendo notícias sobre o estado de saúde da mãe.
Segundos depois, sua surpresa e exclamações encheram o ar de expectativa e apreensão, fazendo com que as conversas cessassem e deixassem Otávio e Luís Augusto imóveis, com as xícaras suspensas a meio palmo de suas bocas, tentando pinçar alguma palavra que revelasse o segredo, que só a irmã tinha o privilégio de saber.
Maria Eugênia agradeceu, pousou o telefone, deu um leve suspiro e sem perder sua habitual frieza, disse aos familiares:
- Nosso irmão Valtinho morreu – e antes que alguém lhe fizesse alguma pergunta, antecipou as três respostas que todos aguardavam.
- Hoje à tarde. Do coração. Em um bordel.
Isabel foi a única que demonstrou algum sentimento pelo falecido. Os outros trataram de balançar levemente suas cabeças, mais preocupados no escândalo do que na perda de um ente não tão querido. No entanto, foram unânimes quanto à mãe. Ela não poderia saber da morte do filho. Que morresse em paz.
Mas, com o que ninguém contava, era que Otávio Júnior corresse em direção ao quarto, para ser o primeiro a dar a notícia para a avó. Foi seguido pela doméstica, que retornou inconformada, por não ter conseguido evitar a eutanásia.
A morte de Valtinho foi um grande alívio para a família. Maria Eugênia deu graças a Deus que o irmão havia falecido. Os outros acabaram concordando, afinal todos passaram a vida inteira tentando esconder da matriarca os problemas e escândalos arranjados pelo caçula.
Valtinho era um conhecido boêmio da cidade, mas, para a mãe, os irmãos haviam dito que ele era um famoso médico, respeitado em todo o território nacional e até no exterior. Suas noites na farra eram explicadas à dona Candinha, como extenuantes plantões em um hospital de caridade, realizando as mais difíceis cirurgias no setor de emergência. Quando o jornal noticiava a prisão do irmão por bebedeira, vadiagem e atentado ao pudor, misteriosamente o periódico sumia, ou então, explicavam-lhe que o exemplar da assinatura não havia sido entregue. Porém, a mais difícil das situações foi sua prisão por sociedade em um concorrido bordel e cassino. A longa ausência do filho foi explicada à mãe, como uma viagem ao exterior, para um seminário sobre medicina preventiva e um curso na Suíça sobre medicina popular. Isabel tratava de escrever as cartas, que recebiam um selo da coleção de Luís Augusto. Nestas horas, os óculos da mãe sempre desapareciam, o que obrigava a redatora a ler a carta do irmão saudoso e humanitário.
No dia seguinte, após os dois enterros, voltaram a se reunir para discutir a partilha dos bens, que, agora, contava com uma parte maior para cada um. Otávio queria as fazendas, Luís Augusto os imóveis comerciais. Isabel aceitava abrir mão de sua parte dos bens no campo, preferia ficar com aquilo que eles tinham na cidade. Já Maria Eugênia optava pela diversificação de investimentos. Queria as ações, sua parte em tudo que a família possuía, além da administração de duas empresas, que estavam sendo gerenciadas por um executivo, que contava com total apoio e confiança da mãe. Sua proposta gerou o protesto dos irmãos. Otávio acusou-a de querer a parte maior e mais rentável da herança. Maria Eugênia respondeu-lhe que como era a mais velha, tinha o direito de ficar com a administração e zelar pelos bens. Os irmãos não concordaram e ela foi obrigada a se defender lembrando dos fracassos financeiros de cada um deles. Otávio havia perdido diversos imóveis em vários investimentos, que ele jurava ser a oportunidade de sua vida. Luís Augusto pedira para a mãe vender inúmeros bens, para a compra de alguma obra de arte, em um leilão, ou a aquisição de um novo lançamento de carro importado. Mais tarde, como sempre, descobria que sua aquisição não era assim tão valiosa e que havia pago bem mais do que a obra valia. Quanto ao carro, era logo vendido por um preço bem menor que o de mercado, para aproveitar uma nova pechincha, que em poucos dias se revelava um novo engano. Já Isabel, sem dúvida alguma, presumia Maria Eugênia, gastaria toda sua fortuna nas idas semanais aos shoppings.
Seus argumentos não convenceram os familiares que contra-atacaram lembrando-lhe das lojas e da confecção que a irmã levara à falência. Maria Eugênia respondeu-lhes que o dinheiro desses negócios havia sido herança da família do ex-marido.
- Mais um motivo para não confiarmos em você – disse Otávio. – Se não conseguiu segurar o dinheiro de uma herança, como vai cuidar do nosso dinheiro? – Complementou com um ar de vitória.
Maria Eugênia não se deu por vencida e lembrou de outros desgostos que cada um dos irmãos dera à falecida. Otávio por não ter seguido a carreira diplomática, que era o maior sonho da mãe. Luís Augusto por ter se casado com uma mulher, que não era do mesmo nível social da família, e que não contava com a aprovação dos pais. Isabel também tinha suas contas a acertar. Afinal, dona Candinha nunca esquecera a tristeza, que a filha lhe dera, ao manter um caso com um militar casado, dentro da própria casa. Quando dona Candinha pegou os dois, na cama da filha, teve um ataque cardíaco. Isabel arrependida jurou à mãe que nunca mais veria o amante, fez até promessa: se a doente se recuperasse totalmente, ela nunca mais se casaria, passaria a vida inteira a cuidar de dona Candinha e do irmão menor. Mas, apesar de ter cumprido a promessa, o desapontamento da mãe só aumentou, quando a matriarca desconfiada de uma intensa correspondência entre Isabel e uma tal de Odete Green, confiscou um bilhete, marcando hora e local para um novo encontro. Maria Eugênia foi interrompida pelos irmãos, que lembraram que seu casamento havia acabado, porque ela traíra o marido com um guia de turismo em uma viagem ao Rio de Janeiro.
Maria Eugênia sentiu-se atingida por aquela acusação, que contava ser de desconhecimento do clã. Mas, pelo visto, Jardel havia perdido a vergonha e revelado a aventura da esposa para os cunhados. Amaldiçoou o ex e concordou que o impasse estava criado. A única solução era esperar pelo doutor Euclídes, advogado há várias décadas da família, para saber como dona Candinha distribuíra seus bens entre os herdeiros.
Quando doutor Euclídes chegou à mansão, notou a ansiedade de todos, mas não pode deixar de demonstrar certa surpresa por ter sido chamado. Explicou que há meses, Dona Candinha havia nomeado Valtinho como seu procurador e administrador de todos os seus bens e negócios. Ele era o responsável por tudo. Afinal, era o único dos filhos a quem ela não tinha nenhuma queixa, o único que nunca havia lhe dado um desgosto.